Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 31
vida 4 capítulo 2




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— Pai, vai sair? O senhor NUNCA sai à noite.

— Não saio?

— Não desde que se separou da mãe. Se bem que também não saía antes disso.

— Filho. Você mora com sua mãe, não mora? Como é que pode saber se o seu pai não dá suas escapulidas todas as noites.

— Ah, pai. Conheço o senhor. É de casa pro trabalho e do trabalho para casa. Janta. Dorme cedo. Nunca vai a lugar nenhum.

— Não sou eu quem nunca pegou com uma mulher na vida.

— E o senhor ainda tem coragem de perguntar se meu PADRASTO me trata com amor.

Benjamim corre para o banheiro e tranca a porta. Dean pode escutar o filho chorando.

— Ah, desculpa, filho. Mas também não é motivo para dar um faniquito e ficar aí chorando como mulherzinha.

— Odeio você. ODEIO. Mil vezes o Logan.

Dean se aproxima do espelho. Leva as duas mãos ao rosto. Reza para que a imagem no espelho seja uma alucinação.

Não é.

O Trickster mais uma vez se superou.

Descobrira em menos de cinco minutos que:

> era um fracassado,

> estava fora de forma,

> tinha problemas de saúde,

> conservara na meia idade os mesmos péssimos hábitos alimentares da juventude,

> fora trocado pela esposa por um homem bem-sucedido,

> seu filho nerd preferia o padrasto a ele,

> tinha um pai bêbado,

> perdera o único irmão

e, por último,

> o atual marido de sua ex-esposa era o Trickster em pessoa.

Dean vê no espelho a própria cara de estranhamento. Confusão mental. As lembranças de seu passado de caçador ao lado do pai e do irmão vão sendo substituídas pelas do pai de família massacrado pela rotina.

Uma vida medíocre, marcada por pouco dinheiro e nenhuma realização.

— O que diabo é um trickster?

Sentiu-se cansado.

O desânimo veio com uma onda.

Porque se vestira para sair? Odiava sair de noite. Escutou o choro do filho vindo do banheiro. Lembrou o motivo. Não ia ficar trancado num quarto minúsculo escutando o choro de um pirralho cheio de manias.

Ele era como era por culpa da mãe.

Desceu para o estacionamento e parou em frente ao Chevy Impala 67. Encarou o carro com desgosto.   

— Essa lata velha é a maior prova de que não passo de um perdedor. Se eu ganhasse na loteria, a primeira coisa que eu faria era por fogo na carroceria.

Entrou e ligou o toca-fitas. Toca-fitas. Em pleno 2008. Quando todos os carros têm DVD players e tocam MP3.

E as fitas, então. Led Zeppelin, AC/DC, Black Sabbath. Dinossauros do rock. Só o filho mesmo para curtir esses caras.

Ele até já curtira, mas só quando era muito jovem.

Fora ele quem gravara as fitas. Escutava no último volume. O irmão sempre reclamava que o som estava muito alto. Na época, tinham gostos muito diferentes.

Agora concordava com irmão em quase tudo.

A exceção era os bacon cheeseburgers. Continuava a detestar saladas.

— Droga, porque logo com o Sam.

O mundo não era mesmo justo. Não havia um único dia que não sentisse uma imensa falta do irmão.

Informou-se num posto sobre os bares das redondezas. Quando chegou ao Hot Machine, quase desistiu de tudo. Lembrou do filho. Decidiu entrar.

O tal barzinho era exatamente como suspeitou que fosse. Decadente, escuro, barulhento e esfumaçado. Bebidas e mulheres baratas. Um longo balcão de bar, diversas mesas espalhadas, alvos para jogo de dardos, duas mesas de sinuca, uma jukebox próxima à entrada, um pequeno palco no fundo e uma movimentada escada para um suspeito segundo andar. Nada diferente das centenas de outros, nas centenas de cidades minúsculas para onde seu trabalho de corretor de seguros o arrastava.

E pensar que um dia gostara de lugares como este.

Olhou para os grupinhos reunidos em torno das mesas de sinuca. Estava destreinado, mas ainda se considerava um bom jogador. Lembrou dos tempos em que jogava para conseguir dinheiro para sair com alguma garota ou, até mesmo, para pagar para ficar com uma. Dos tempos em que não tinha um emprego fixo nem um chefe tão escroto como esse tal de Zacariah.

O jogo de dardos também estava animado. Nunca fora especialmente bom nos dardos. E fazia anos que não jogava. Achava que Ben ainda nem era nascido da última vez que jogara. Ainda bem que não era o caso da vida de alguém depender de sua habilidade nos dardos.  

Poucas mulheres. A maioria, acompanhadas. Poucas chamaram sua atenção.

Ficou impressionado com a beleza da garota que dividia uma mesa com três rapazes, que pareciam ser do time de football da faculdade local. Todos eles muito muito jovens. Baby Look Football Team. Prestou atenção também no namorado da garota e no quanto ele parecia apaixonado por ela. Agiam como se só existissem eles dois. Sentiu uma ponta de inveja. Se pudesse voltar a ter a idade deles, disputaria a garota, mesmo que precisasse sair no braço com os três.

A segunda estava sozinha e parecia carente. Razoavelmente bonita. Num bar cheio de homens, podia ser sinal que era depressiva, possessiva, chata ou tudo isso junto. No passado, ele passaria longe deste tipo de garota. Agora, eram a sua melhor aposta.

Mas sabia que a conquista exigiria um tempo que ele não tinha. Se fosse ficar pelo menos mais um dia na cidade. Mas, na manhã seguinte, retornava para San Antonio. E ainda tinha o filho para empatar o pouco de vida social que ele buscasse ter.

É, com essa, só numa próxima vida.

A terceira era claramente uma profissional, madura mas ainda atraente. Usou o sorriso que era infalível na sua juventude. Sabia que não precisava de tanto, mas era sempre bom praticar.

Ela se aproximou, insinuante.

Ele se ofereceu para pagar uma bebida.

Ainda ficaram um tempo num jogo de sedução que ambos sabiam muito bem ser desnecessário, até finalmente subirem a escada para o segundo andar.

Embora suas memórias estivessem rapidamente se adaptando àquela realidade, ainda sentia a estranheza do corpo.

Esbarrara em pessoas e cadeiras como se ainda não conhecesse os limites do próprio corpo, todo ele mais largo.

Chegara sem fôlego ao final de um simples lance de escada.

Mas a maior estranheza foi a demora do corpo reagir à visão de uma mulher receptiva.

Faith se revelava mais interessante à medida que se livrava da roupa de trabalho chamativa e de mau gosto. O corpo ainda mostrava firmeza e os seios turbinados jamais deixariam o jovem Dean indiferente.

Ela soltou o cabelo e balançou a cabeça com graça e sensualidade. A semi-obscuridade do quarto disfarçava bem as primeiras rugas e um início de gordura abdominal.

Ele estava gostando do que via, existia o desejo, mas o corpo não respondia.

Não. Não ia acontecer. Não com ele. Não agora. Procurou afastar da mente o maior medo de qualquer homem.

Faith sente o embaraço do homem, e, como boa profissional que era, não demonstra decepção ou surpresa. Afinal, homens viris e realizados não procuram prostitutas. Estava acostumada. Sabia com agir em casos como este.

O trouxe para si. E começou a exercer sua arte.

O homem se aproximou, buscando sua boca. Faith não costumava beijar clientes, mas os olhos verdes deste denunciavam a antiga beleza e uma natureza sedutora. Resolveu quebrar as próprias regras. Não se arrependeu. O homem SABIA beijar.

Dean sente a traição do corpo, mas não se entrega. Tinha técnica suficiente para satisfazer uma mulher por outros meios. E é isso que ele faz, esquecendo o próprio prazer.

Prostituta ou não, era uma questão de honra que ela não saísse dali dizendo que ele falhou em dar prazer a uma mulher.

Ao final, um último e caloroso beijo antes de fechar a porta atrás de si.

Antes de sentar no banco do Impala, baixar a cabeça no volante e cair num choro silencioso. O futuro que antevia não era luminoso. 

Foi quando sentiu um violento tremor de terra.

Dean, sem o cinto de segurança, é lançado violentamente contra o teto do carro. Teve sorte de não partir o pescoço. Em seguida, a trepidação. O carro parecia que ia desmontar. Até que, finalmente, o terremoto perde intensidade. Dean sai do carro, com os olhos arregalados.

Então, recomeça. Um segundo tremor. Mais forte ainda que o primeiro, se é que isso era possível. O asfalto se parte. Dean é jogado no chão. Com reflexos rápidos, que nem sabia que tinha, rola para longe e se salva de ser atropelado pelo Impala, que se movia de lado, vindo em sua direção.

Escuta, então, bem próximo, um grande estrondo.

O telhado do Hot Machine Bar vem inteiro abaixo, soterrando a todos que lá estavam.


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