Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 169
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DEMÔNIOS

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O caos se espalha por Ιρονωηεελ.

Os diabretes eram uma praga mil vezes pior que as gangues de macacos rhesus que ainda hoje infernizam Jaipur e outras cidades indianas.

Os diabretes não se limitavam a roubar e a quebrar objetos, embora fossem especialistas nisso. Quando punham a mão em facas, varas ou objetos de tortura, coisas que existiam por toda parte em Ιρονωηεελ, usavam-nas para fustigar e irritar os cidadãos demônios.

Os demônios, por sua vez, quando provocados, mostravam o que tinham de pior para oferecer. Os diabretes eram como crianças maldosas e birrentas. Os demônios eram o mal friamente planejado e executado. Quando irritados, levavam a desfeita para o lado pessoal. Empenhados em capturar e destroçar os diabretes com requintes de perversidade, os exemplares cidadãos demônios de Ιρονωηεελ causavam tanta destruição tanto estes.

Enquanto isso, bairros inteiros estavam sendo arrasados pela fera com que Palemon invadiu a cidade. Mesmo que a criatura fosse dócil, o que não era nem de longe o caso, a destruição seria inevitável. Simplesmente porque a criatura era grande demais para as ruas apertadas e cheias de becos desta área pobre de Ιρονωηεελ.

Qualquer movimento brusco do monstro fazia as construções desabarem sobre os seus não tão inocentes moradores. Inúmeros demônios que se viram encurralados pela fera, foram pisoteados até serem reduzidos a algo parecido com uma pasta. Muitos foram esmagados contra as paredes de pedra das vielas estreitas.

O monstro espalhava pânico e ódio por onde passava. Os demônios, tanto os amedrontados quanto os enfurecidos, pioravam o que já estava ruim. Gritavam, atiravam pedras, investiam com armas improvisadas, fustigavam o monstro com óleo fervente e fogo. A algazarra que faziam enlouquecia o monstro e o monstro reagia se debatendo e investindo cegamente contra tudo e contra todos que se pusessem em seu caminho. Nada parecia capaz de deter a criatura. A destruição só aumentava.

A cidade fora apanhada de surpresa, mas se preparava para reagir. Não fora a primeira vez que fora invadida por diabretes e feras, por mais mortíferas que fossem, não eram páreo para as artes e para a máquina de guerra dos senhores do Inferno.

Os grandes portões da entrada principal do palácio-fortaleza de Alastair se abrem e todo um pelotão da tropa de choque senhorial segue em formação de combate, passo acelerado, ao encontro do monstro descontrolado. Não voltariam antes de dar cabo do monstro. Além das tradicionais espadas de lâmina larga e dois gumes, eles estavam armados com longas lanças embebidas em uma poderosíssima toxina paralisante. Um extrato concentrado da peçonha da mais mortífera das aranhas infernais.

A tropa de choque impunha respeito pelo tamanho e pela aparência feroz de seus componentes. A maioria apresentava forma humanóide, mas com as proporções entre as partes do corpo alteradas de forma grotesca, principalmente os braços hipertrofiados. A armadura e o elmo, guarnecidos por pontas afiadas, reforçavam o efeito intimidador. Os mais baixos da tropa tinham duas vezes a altura média dos cidadãos-demônios comuns.

A tropa de choque tinha uma justificada fama de brutalidade. É claro que, para amedrontar demônios, a brutalidade tinha que ser extrema. A tropa de choque, quando entrava em ação, costumava causar uma destruição até maior que a que o monstro estava causando. Não perdiam tempo em considerações. Chegavam destruindo e infeliz de quem estivesse no caminho.

A carapaça do monstro que, até aquele momento, o tinha protegido de tudo, é facilmente perfurada pelas lanças embebidas em veneno. O veneno atacava o tecido orgânico externo e avançava através das camadas interna de pele até os órgãos internos. Nada o detinha. Não importa o quão forte fosse a carapaça. Queratina, o material de unhas, chifres e carapaças, é orgânico. O veneno corroia material orgânico como acontece quanto ácido concentrado é gotejado sobre pele humana. Em segundos, o veneno alcançara e se espalhara pela corrente sanguínea do monstro.  

Nem seriam necessários tantos soldados. Um único contato com o veneno e o monstro estava condenado. O monstro seria fatiado vivo pela população enlouquecida, num festim de embrulhar o estômago. Dezenas de demônios, desavisados do veneno, acabariam igualmente paralisados ao tentar devorar partes do monstro. 

Quase ao mesmo tempo, no alto de sua torre de estilo modernoso, que contrastava fortemente com o entorno de aparência medieval predominante em Ιρονωηεελ, Crowley destampa um cântaro e uma densa fumaça negra, muito semelhante à forma que demônios desencarnados assumem no plano material, escapa do jarro numa quantidade que parece interminável. A fumaça vai se dividindo em inúmeros tentáculos, que, por sua vez, se subdividem mais e mais à medida que se afastam do ponto de origem, sem, no entanto, perder sua aparência e densidade.

A fumaça se espalha por toda a cidade e alcança os diabretes onde quer que eles se encontrem. Os tentáculos de fumaça agiam como se estivessem vivos e fossem dotados de inteligência. E existia um motivo para fosse assim. A fumaça era, na verdade, formada por demônios capturados em guerras passadas que tiveram a memória apagada e que agora serviam seus captores como armas vivas.

Um diabrete assustado corre na direção de Autólico, mas, antes que o alcance, um tentáculo de fumaça, em elegantes movimentos serpenteantes, captura o monstrinho. Como uma anaconda, a fumaça, ao mesmo tempo em que envolve, se contrai ao redor do diabrete, esmagando-o. O monstrinho solta um grito estridente. Um único grito antes da fumaça invadir seu corpo pela boca. A criaturinha se debate e estremece em sofrimento e, então, começa a se dissolver. Não leva nem um minuto para que esteja reduzida a uma poça fétida de gosma negra. O tentáculo de fumaça se retrai e segue em busca da próxima vítima. Uma cena que se repete em toda a cidade.

Autólico recua horrorizado com a cena, sem atentar para o gigante vestindo armadura de combate que se posicionara logo atrás dele, sorrindo. Acostumado a surpreender ao se movimentar rápida e silenciosamente, Autólico é surpreendido quando é agarrado pelo braço e arrastado pelo gigante para dentro da fortaleza. Ele vê com apreensão o portão ser fechado.

O príncipe dos ladrões engole em seco ao reconhecer os padrões em alto relevo da armadura de seu captor. Um oficial graduado da brutal tropa de choque do inquisidor-mor do Inferno, o arquidemônio Alastair.

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Com o monstro e os diabretes neutralizados, os semideuses perdem a cobertura e o elemento-surpresa. Os senhores do Inferno, novamente donos da situação, eram experientes o bastante para saber que aqueles não eram fatos isolados e que não aconteceram por acaso. Eram ações orquestradas. Não tinham dúvidas que inimigos caminhavam em Ιρονωηεελ. Restava encontrá-los e fazê-los pagar dolorosamente a ousadia.

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HOMENS E MONSTROS

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- Posso acompanhá-lo?

- Se conseguir acompanhar meu ritmo, sem problemas. Saiba que não pretendo faciltar as coisas.  

- E se for o contrário? Se for você que não conseguir acompanhar o meu ritmo?

- É um desafio? Ótimo, adoro desafios.

Jared acelera, mas em segundos, Necker está emparelhado com ele. É a vez de Jared acelerar ainda mais. E assim eles correm quase oito quilômetros ao longo da orla de Venice Beach. Desafiando seus limites. Pelo menos, era o Jared acreditava. Para Necker, mesmo ainda não totalmente recuperado, não chegou a ser nem mesmo um aquecimento.

- Chega,  .. eu me rendo. Ad .. mito a derrota.

- Você já vinha correndo quando eu o alcancei. Eu estava descansado. Portanto, vamos considerar um empate.

- Empate? Ainda estou aqui .. morrendo. Sem .. fôlego. Su .. ando em bicas. Já você .. nem parece que correu. Parabéns. Está .. em grande forma.

- Eu corro todos os dias.

- Eu também. Ou tento. Bem, ..  Não sei quanto a você, .. mas eu estou precisando .. de uma água de côco. Urgente.

- Mais na frente tem um quiosque. Vamos! Eu te acompanho.

- Creio que devemos nos apresentar.

- Lars Necker, prazer.

- Os amigos me chamam de JT.

- Legal saber que me considera um amigo, JT.

- Não conheço ninguém em L.A. Foi legal ter companhia para correr. Fico aqui só mais dois dias e sempre corro de manhã.

- Por mim podemos repetir amanhã.

- Jura. Tá marcado então.

- Está aqui sozinho?

- Com a minha noiva. Se tudo der certo, vamos nos casar ainda esse ano.

- Não é todo mundo que quer se amarrar assim tão cedo.

- Não é todo mundo que teve a sorte que eu tive de encontrar a mulher ideal.

- Parabéns! Ouvindo você falar, até fiquei com uma pontinha de inveja.

-Para as coisas ficarem perfeitas, eu só preciso garantir o papel.

- Papel? Não entendi.

- Desculpe. É que eu sou ator. Não, não precisa puxar pela memória. Não esperava mesmo que você me reconhecesse. Bem, temos sempre uma esperançazinha. Não ser reconhecido significa que ainda tenho um longo caminho pela frente no meu projeto de me tornar um ator famoso e respeitado. Estava fazendo um seriado estilo mulherzinha, mas tenho um teste para o piloto de um seriado de ação, em que vou empunhar armas, dar murros e salvar o mundo de monstros e criaturas sobrenaturais.

- Criaturas sobrenaturais? Que interessante. Você tem toda a razão de estar entusiasmado.

- Estou. O chato é ter que me mudar para Vancouver.

- Conheço. É uma cidade interessante. Você vai acabar gostando.

- De qualquer forma, tendo a Sandy ao meu lado, qualquer lugar vira o Paraíso.

‘Essa noiva pode ser um complicador. Já não seria uma única pessoa a morrer. Passam a ser duas. Sem contar que a morte dela teria que ser de conhecimento geral. Bem, ela pode sofrer acidente. Um horrível acidente de carro. Pode acontecer com qualquer pessoa.’

- Que houve? Ficou pensativo de repente.

- Nada. Está com muita pressa? Depois da água de côco, que tal entrar na água?

- Eu gosto de mar, mas ainda fico meio intimidado com praias de mar aberto. Sabe como é, eu cresci no Texas.

- Não se preocupe, cowboy. É só me acompanhar. Nadar é o que eu faço de melhor. Eu brinco dizendo que nasci com um rabo de peixe.

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ANJOS

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Quem elevasse os olhos na região montanhosa do centro da ilha de Creta veria uma cena sem precedentes na não tão longa história humana. O gênero homo separou-se dos australopithecus há 2 milhões e quatrocentos mil anos atrás. Mas, o homo sapiens só surgiria muito depois: há duzentos mil anos. Uma cena como aquela, em que anjos se posicionavam frente a frente em formação de batalha acontecera pela última vez exatamente naquela ocasião: há duzentos mil anos. Não por coincidência.

Na época, eram dois grandes exércitos. Agora, eram um único anjo de um lado e quase uma centena de remanescentes de um dos exércitos originais do outro. Um exército que sofrera severas baixas no primeiro conflito, e que acabara sofrer novas baixas, mas que ainda detinha um poder avassalador. O anjo solitário parecia estar em esmagadora desvantagem, e realmente estava, mas ele tinha a convicção de que sua causa era justa e que isso faria toda a diferença. Isso e alguns aliados, que se mostrariam no momento certo.

Os comandantes se aproximam. Até quase o alcance de um golpe de espada. Gabriel e seus iguais, os também arcanjos Rafael e Miguel.

- Saiba que nada que diga mudará nosso propósito. Pagará exemplarmente por sua traição. Mas, um dia, o consideramos um dos nossos e, portanto, gostaríamos de escutar suas razões. Diga, Gabriel! A verdade. Por quê?

- Porque vocês estão errados. O Apocalipse não deve acontecer.

- Duvida do acerto das decisões do Pai?

- Não foi Dele a decisão de por o Grande Plano em marcha neste momento.

- Quem disse que não? Kälï? Os bastardos de Zeus?

- Eu estive no futuro. Desta e de milhares de outras realidades. Eu vi as conseqüências do erro que vocês estão prestes a cometer.

- Outras realidades? Não existem outras realidades. É tão difícil crer que o que pensa ter visto não passam de ilusões da demônio Kälï? Devia ser uma questão de fé.

- Estão errados. Estávamos cegos em nossa arrogância. Existem infinitas realidades. Em muitas delas, não existem anjos. Mas, em todas, existem homens.

- Blasfêmia!

- Vocês verão com seus próprios olhos.

Gabriel recua sua consciência e permite que Caläis assuma posse do corpo de ambos. Caläis muda instantaneamente para a forma de tornado. E, como tornado, avança na direção dos anjos em formação, capturando no turbilhão Rafael e Miguel.

Os anjos quebram a formação de falange para não serem pegos pelo tornado, mas hesitam em disparar com suas espadas com medo de atingirem Rafael ou Miguel. Era exatamente o Gabriel esperava.

Um portal se abre.

Caläis atravessa o portal arrastando os arcanjos, que, pegos de surpresa no turbilhão, ainda não tinham recuperado a iniciativa. Os demais anjos, após quase um minuto de hesitação, decidem atravessar o portal. Para resgatar seus comandantes e confrontar o traidor.

O portal se fecha.

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Os anjos emergem numa paisagem diferente. Estavam desorientados. Havia algo de errado com aquele lugar. Algo diferente na composição do ar. Na luminosidade. Na vegetação. Estavam no hemisfério norte do planeta, sobre uma floresta tropical. Não era para existir ali uma floresta como aquela. E ela não existiria por muito tempo. Um observador atento perceberia que o gelo estava avançando em direção ao sul, um pouco mais a cada ano. Em poucas centenas de anos, uma grossa camada de gelo cobriria o lugar onde agora existia uma floresta.

- Aonde nos trouxe, traidor?

- Para outra realidade. Uma destas que vocês se recusam a acreditar que existam. Mas não precisam acreditar nas minhas palavras. Podem olhar para o céu. Nesta realidade, Alpha Tauri, a estrela Aldebaran explodiu muitas eras atrás e está ausente do céu. Aqui a constelação de Gemini também se mostra diferente. Zeus não transformou, nem nunca transformará, Κάστωρ e Πολυδεύκης nas estrelas alpha e beta da constelação e, assim, elas nunca existirão. Ou podem olhar para a Terra do alto. Para o desenho dos seus continentes. O supercontinente de Pangeia já se fragmentou, mas os continentes ainda não alcançaram a posição que ocupam na realidade que acreditam ser a única.

- Não estamos em outra realidade. Estamos no passado da Terra.

- Não escutou o que falei sobre Aldebaran? Quer outras diferenças? Existe um planeta numa órbita intermediária entre Marte e Júpiter. Lembram de ter existido um planeta onde hoje existe um cinturão de asteróides? Aqui ainda existem hidras, megalodons e krakens, lembram-se deles? Eles, por acaso, coexistiram com mamíferos? Na realidade que acabamos de deixar, há quanto tempo eles estão extintos? 

- O que quer que esteja tramando, pare. Não seremos enganados por demônios.

- Querem a prova definitiva? Olhem para o Paraíso. Não vão encontrar a Cidade Prateada. Olhem para o Inferno. Não vão encontrar Ironwheel nem Glorious of Pain. Existe um motivo para isso. Aqui, o Pai não criou seres como nós. Não criou os anjos. E nossas ações não criaram os demônios.

- O que pretende nos trazendo para cá. O que pensa conseguir?

- Na verdade, é um presente que lhes ofereço. Em poucas horas, uma fêmea primata vai dar à luz. O rebento não será igual a seus pais. Ele representa um passo adiante na evolução da sua espécie. Algumas das mutações que apresenta serão latentes e só se manifestarão no cruzamento de descendentes que também apresentem a mesma mutação. Esse pequeno ser ainda não nascido .. Podemos chamá-lo de Adam? Ele será o primeiro desta realidade que poderemos chamar corretamente de HOMEM. O primeiro homo sapiens como eles próprios se batizaram. Ele será em tudo igual àquele que, ao ser criado pelo Pai, nos dividiu para sempre. Se ele sobreviver, esta realidade será, no futuro, dominada pelos seus descendentes. Adam será o pai de toda a raça humana. Se perecer, nunca existirá uma raça humana. Sem homens, não haverá uma razão para o Apocalipse um dia acontecer.

- E o que pretende nos revelando esses fatos?

- Ajudá-los a tomar uma decisão. A mais importante que já tomaram. Deixo o destino de Adam e o de toda essa realidade nas mãos de vocês. Vocês decidem se Adam deve sobreviver ou se essa realidade se tornará para sempre o Jardim do Edén que conhecemos no passado, na véspera da criação do homem.

Um portal se abre e Gabriel o atravessa sem olhar para trás. Sem pressa. Sozinho. Os outros anjos ainda estavam por demais aturdidos para tomar qualquer decisão. Mesmo a mais simples.


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Notas finais do capítulo

24.11.2012



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