Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 133
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Não foi surpresa para Zetes quando Jasão lhe pediu que corresse o mundo e convocasse os sobreviventes de sua tripulação para planejarem a incursão ao Inferno. A primeira coisa que Zetes pensou foi que seu velho comandante ainda não tinha se dado conta que estavam do outro lado do mundo. Pelo jeito, o guia de Jasão no mundo moderno, o tal de Dean, não estava familiarizado com viagens aéreas nem com ventos e suas limitações.

A velocidade do vento na superfície de um tornado pode atingir 600 km/h. Ao longo dos séculos, ele e o irmão competiram inúmeras vezes para ver quem conseguia atingir a maior velocidade e assim criar o tornado mais devastador. Mas o resultado não dependia somente deles. Dependia também das condições climáticas do lugar. Ao chegarem na América, descobriram que, para esse propósito, nenhum lugar do planeta era melhor que o Meio-Oeste americano. Aprontaram muito. Na época era mais fácil, pois ainda existiam muitos espaços vazios e eles eram irresponsáveis o bastante para não se importarem com as conseqüências da destruição que causavam.

Podia percorrer trajetos curtos a 300 km/h, mas uma velocidade sustentável de deslocamento era da ordem de 120 km/h, um décimo da velocidade do som. Nesta velocidade, uma viagem de Los Angeles à aldeia de Karya na Tessália ou à ilha de Santorini levaria não menos de quatro dias. Afinal, eram mais de 11.500 km até a Grécia. Se não quisesse chegar esgotado, de cinco a seis dias.

Não, o mais prático seria pegar um vôo comercial até Atenas e seguir por conta própria somente a partir de lá.

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Já contatara pessoalmente Autólico e falara com Palemon por telefone e ambos ficaram empolgados com a expectativa de serem novamente liderados por Jasão. E, claro, surpresos e curiosos sobre a inesperada volta de Jasão do reino dos mortos.

Encontrar Eufemo também não fora difícil. Estivera há dois ou três anos antes em Santorini e ficara hospedado numa pousada que pertencia a um descendente de Eufemo. O homem era um de seus amigos habituais de noitada. Bastara enviar um e-mail por intermédio do site da pousada. Combinaram que se encontrariam em Karya e, de lá, ambos iriam ao encontro de Idmon.

Era Jasão quem insistia na participação de Idmon. Zetes achava pura perda de tempo procurá-lo. Ele estava muito velho para correr atrás de aventuras. Na última vez que o vira - e isso fora por ocasião da invasão da Grécia pelos nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial - ele andava com muita dificuldade e mal se escutava o que ele falava. Se ele aceitasse participar, coisa que duvidava muito, ia acabar sendo um peso morto para o grupo. Bem, Jasão com certeza se daria por satisfeito com um bom augúrio sobre a empreitada ou algum aviso importante que tivesse a dar.

Para ser completamente honesto, Zetes nunca tivera nenhuma afinidade com Idmon. Achava-o estranho, cheio de segredos. Era irônico que um filho do deus solar cultivasse um estilo tão sombrio e que se sentisse tão obsessivamente atraído pelas artes negras de Hécate. Zetes lembrou do jovem Idmon e riu ao imaginar que, se tivesse se mantido jovem e alinhado com o mundo moderno, Idmon seria hoje um gótico. E daqueles bem singulares.  

Não conseguira falar com Calaïs. Em suas novas identidades humanas não eram irmãos nem tinham qualquer tipo de vínculo, salvo a profissão de ator. Sempre foram unidos, tanto que conviveram juntos por mais de 7000 anos. Adoravam-se, mas não há relacionamento que resista incólume a esse tempo todo. Conheciam-se bem demais para necessitarem de palavras e, de repente, não havia mais nada a ser dito. Resolveram seguir separados e, nos últimos duzentos anos, viveram vidas paralelas, com pouquíssimos contatos.

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Nada como voar. E a melhor maneira de voar era sem dúvida num jatinho particular. Se bem que o termo jatinho não descrevia bem a fabulosa máquina voadora do maior ladrão de todos os tempos. Equipada com duas suítes comparáveis a dos melhores hotéis cinco estrelas, sala de projeção e academia de ginástica. Servidos por comissárias de bordo escolhidas a dedo para proporcionar uma viagem agradável fazendo bem mais que simplesmente servir champagne.

Conta-se que Hermes, ainda um recém-nascido, roubou todo um rebanho de bois que estava sob a guarda de Apolo. Autólico não foi tão precoce assim, mas desde muito jovem tinha fama de ladrão de gado, já que seu imenso rebanho era o único da região que sempre crescia e crescia num ritmo difícil de ser explicado, mesmo que, como afirmava, tivesse as bênçãos dos deuses da fertilidade. Enquanto isso, os rebanhos de seus vizinhos menos afortunados iam se reduzindo pouco a pouco.

O difícil era provar ser ele o ladrão, pois Autólico era cheio de artimanhas e álibis, hábil com as palavras e de uma simpatia inigualável. Sempre acabava parecendo ser ele a vítima e seus acusadores injustos caluniadores. Até que chegou o momento que os proprietários roubados já não queriam provar mais nada para ninguém. Foi esse aliás o motivo de Autólico ter se reunido aos argonautas. Precisava passar uns tempos longe de sua terra natal até as coisas esfriarem.

Milênios se passaram e Autólico nunca deixou de ser um ladrão de gado e de terras. Registrou, em nome de alguma de suas diversas identidades ou de empresas de fachada das quais era o proprietário, gigantescas áreas cultiváveis ou próprias para a pecuária em todos os continentes e, especialmente, na Amazônia, na Austrália e na África meridional.

Ao longo dos séculos, passou para o seu o nome os bens de milhares de pessoas mortas em guerras, acidentes e desastres, ou, simplesmente, usufruiu deles. Usava sua aparência para seduzir e roubar a herança de ricas viúvas e de jovens herdeiras. Abandonadas, choravam a perda do amado, não do dinheiro. Seduzia até mesmo homens, embora nunca tenha ido para a cama com nenhum. Roubava jóias e carteiras em festas ou circulando pelas ruas. Dava golpes em comerciantes e banqueiros. Como empresário, sonegava impostos, roubava no peso e fazia descontos indevidos nos salários de seus funcionários. Seus golpes eram refinados e ele nunca usava de violência.

Autólico possuía objetos de arte de praticamente todas as civilizações. Quando os roubara, nem tinham muito valor. Roubara-os porque os achara bonitos. Como uma gralha, Autólico era atraído por pequenos objetos brilhantes como jóias e peças trabalhadas de ouro, cobre e prata. Hoje, era dono de um tesouro arqueológico de valor incalculável, muitas vezes o acervo de todos os museus do mundo.

Com os cassinos podia roubar de forma ainda mais descarada um número ainda maior de pessoas. Caça-níqueis, dados, roletas e baralhos, tudo era viciado em seus estabelecimentos. E ele, pessoalmente, roubava os ganhos dos poucos que conseguiam sair com algum lucro .

Apesar destas pequenas falhas de caráter, Autólico sabia ser um bom amigo para seus amigos, um amante inesquecível e um guerreiro corajoso. Era melhor tê-lo do seu lado do que contra você.

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Autólico e Eufemo não se viam há milênios e se cumprimentaram efusivamente. Os risos, as piadas, as brincadeiras, as zoações. Pareciam três garotos. Realmente pareciam, pois Autólico e Eufemo não envelheciam e Zetes, em homenagem aos velhos tempos, se condensara na aparência que tinha na época de argonauta: a de um rapaz alado de 20 anos. Estavam verdadeiramente felizes. As amizades da juventude são as únicas realmente duradouras.

Decidiram prorrogar o clima de festa seguindo a pé até o monastério cristão onde Idmon às vezes era visto. Ficava a 8 km a nordeste de Karya e tinha uma bela vista do Monte Olimpo. Uma estrutura com paredes de pedra sem um estilo arquitetônico definido. Linhas retas, ângulos retos, poucas janelas. Não parecia nem era realmente antiga. Não em termos europeus.

O monastério ficava sobre um dos túneis que levavam a cavernas naturais na base do Monte Olimpo. Os túneis haviam sido construídos há milênios e eram parte de um conjunto de complexas edificações pré-helênicas dos quais não havia qualquer registro histórico. Os monges da ordem cristã proprietária do monastério conheciam apenas uma parte ínfima do conjunto. As partes mais antigas eram anteriores até mesmo ao nascimento de toda aquela geração de semideuses que navegou na Argo.

Autólico conhecia as cavernas dos velhos tempos, quando os deuses ainda conviviam com os homens. Hermes era muitas vezes invocado por seguidores de Hécate e a curiosidade o levou a participar de cultos que aconteciam nestas cavernas. Numa destas ocasiões, conhecera sua meia-irmã Circe, filha de Hécate, feiticeira e maligna como a mãe.

Autólico instruiu Zetes sobre a localização das entradas ocultas do conjunto de cavernas e este rapidamente percorreu túneis e câmaras na forma de brisa. Quando encontrou o que buscava, voltou e retornou com os amigos.

Idmon estava sentado imóvel numa espécie de poltrona esculpida de um único bloco de pedra no centro da grande câmara escavada na montanha sagrada. Vendo-o assim era fácil acreditar que a imagem que temos hoje de velhos profetas tenha sido inspirada nele. Um homem extremamente velho, muito magro, grandes olheiras e com cabelos, barba e bigodes totalmente brancos, seus fios compridos e ralos quase tocando o chão, embora a calvície se mostrasse acentuada no topo do crânio. Vestia uma túnica de tecido rústico, com corte grosseiro e sem qualquer ornamento. Não trazia consigo nem mesmo um cajado para ajudá-lo a locomover-se.

O único objeto visível em toda a câmara era um braseiro que, alimentado por gases do subsolo, queimava ervas aromáticas. Embora fosse uma caverna, havia circulação de ar pois a fumaça não se acumulava no ambiente. O fogo baixo do braseiro era também a única fonte de luz do ambiente, mantido numa eterna penumbra. Idmon estava recostado na poltrona, com a cabeça caída para a frente. Sua respiração era tão débil que, não fossem eles semideuses com sentidos muito mais acurados que os dos homens, pensariam que estava morto.

Eufemo e Autólico se aproximaram cautelosamente do antigo companheiro que se mantinha imóvel e se ajoelharam bem próximos a ele para poderem ver melhor seu rosto e avaliar seu real estado de saúde. Até mesmo Zetes, que se mantivera um pouco afastado, se assusta e grita quando Idmon arregala os olhos e, como uma cobra ao dar o bote, estende ambas as mãos e segura com força o topo das cabeças dos dois semideuses a sua frente.

As mãos de Idmon começam a se iluminar e logo todo o seu corpo e os dos seus dois antigos companheiros estão envolvidos por uma tênue luz azulada. Zetes observa, horrorizado, que Idmon está drenando a energia vital de Eufemo e de Autólico e, com isso, está rejuvenescendo.

Idmon se levanta e, sem olhar para os corpos caídos dos antigos companheiros, se dirige a Zetes, que recuara assustado até a parede da câmara.

– Chegaram bem a tempo. Eu estava mesmo esperando vocês.


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Notas finais do capítulo

25.01.2012
Já informei que o vento Zetes assume a identidade humana de Chad Murray e trabalha com ator.
Imaginei o Idmon rejuvenescido com a imagem de um Ian Somerhalder de cabelos desgrenhados e olhar insano. Idmon até soa como Damon.