Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 103
vida 7 capítulo único




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– Sam, deixa o laptop aí quietinho e vamos. Amanhã a gente trata disso. Eu quero ver gente viva. Dois banhos e parece que ainda estou cheirando a túmulo.

Sam olha para um pequeno despertador na mesa de cabeceira entre as duas camas de solteiro do quarto de motel. Exatamente 21:03.


21:03. Dean sente a vista escurecer. Sente-se estranho, como se estivesse dopado. Uma sensação de fraqueza, de desorientação. Foi preciso reunir muita força de vontade para abrir os olhos. Com a visão desfocada, perscruta o ambiente. Um quarto de motel, em nada diferente dos outros que funcionaram como portas de entrada para outras realidades. Está deitado. Tenta reunir suas reservas de força para se erguer na cama, mas não consegue. Não consegue nem mesmo girar o pescoço. O mais estranho, é que não está amarrado. Simplesmente não consegue se mover.

Toma consciência que está com sede. Sua boca está seca, seus lábios estão rachados. Já fora aprisionado antes sem água. Sabe que está sem beber nada há, pelos menos, vinte e quatro horas. Precisava chamar a atenção de alguém ou acabaria morrendo. Faz força para falar, mas sente a garganta dolorosamente afetada. Como quem gritou até ficar complemente sem voz.

Fome, sente fome também. Muita. Aparentemente fora deixado ali para morrer. Quem e por quê? Estava indefeso. Era só chegar e matá-lo. Mas alguém queria mais que simplesmente matá-lo. Queria torturá-lo. Torturá-lo pela sede, pela fome e pelo frio.

Sim, frio. Sentia frio também, percebia agora. Estava vestido, mas não estava adequadamente agasalhado. As janelas estavam bem fechadas, mas estava num lugar frio. Oregon, talvez. Salvo em sua última parada, em Vancouver, todas as outras vezes estava em La Grande. É lá que estava?

Não custava nada aparecer alguém, nem que fosse para lhe dizer o lugar onde morreria. Ele gostaria de saber, mesmo que a informação não fosse lhe adiantar de nada.

Em resposta às suas preces não formuladas, a porta se abre. Dean percebe, com sua visão periférica, que tratava-se de um homem alto, muito alto. O homem, impecavelmente vestido, de terno, entra em seu campo de visão. Está de óculos escuros, mas tira os óculos e o encara, sorridente. Um sorriso amigável, mas falso.

– Oi, mano. Tudo bem aí?

‘– Sam? Como “tudo bem aí?”. Eu PAREÇO estar bem? É claro que não estou nada bem. Fui deixado sozinho com sede, fome e frio. O que há de errado com você, meu irmão? Essas roupas .. .’

Aquelas roupas eram o sinal mais visível de que algo estava errado. Roupas caras. Esse Sam queria ostentar riqueza. Nunca vira o irmão dar importância a roupas antes. Aonde viera parar desta vez? Quem era esse Sam?

Sam pega uma jarra com água, enche um copo e vai na direção de Dean. Senta na beirada da cama, de forma displicente, com o copo na mão. Dean engole em seco, os olhos fixos no copo. Sam sorri para ele, fingindo não notar o olhar suplicante de Dean. Bebe a água, com calma, saboreando cada gole. Ao final, estica o braço e coloca o copo vazio na mesa de cabeceira, ao lado da cama de solteiro em que Dean está deitado.

– Eu estava mesmo com sede.

Dean queria gritar. Queria socar o irmão. O FDP sabia que ELE estava com sede e estava curtindo com a cara dele. Não queria acreditar em algo assim vindo do irmão.

– É melhor você não beber muito, Dean. Você não tem condições de ir sozinho ao banheiro e seria muito constrangedor para mim, como seu irmão, tocar você em um lugar tão íntimo. Sei que me entende. Estou vendo que está ótimo. Fico feliz de que esteja tão bem. Não vou ficar aqui, incomodando você. Descanse. Volto amanhã para ver como você está. Fica bem, maninho. Te amo.

‘– Bastardo cínico. FDP. O que aconteceu com você, Sam? Porque está fazendo isso comigo? O que aconteceu comigo? Porque eu não consigo me mexer?’ Dean nem percebe que estava chorando. Que lágrimas silenciosas escapavam de seus olhos, sem que ele pudesse usar as mãos para secá-las.

Sam saiu, trancando a porta e desligando a luz. Dean ficou ali, atormentado, sem descobrir se o que o incomodava mais era a terrível sede ou a atitude indiferente do irmão.


Dean não sabe tanto tempo passou até que a porta voltasse a abrir. Muitas horas, já que agora era dia. Ele devia ter adormecido sem se dar conta. Desta vez não era o Sam, era uma mulher. Fina, elegante, com um colar que parecia custar uma pequena fortuna. Uma mulher que ele só conhecera por foto. Jessica Moore. Aparentemente, ela não morrera nesta realidade. O gesto que fez com a mão. Um gesto estudadamente natural, mostrando a aliança na mão esquerda. A mensagem de que estavam juntos nisto.

– Oi, Dean. Confortável? Alguma coisa que eu possa fazer por você?

‘– Me deixar morrer em paz, vaca.’

– Seu irmão está preocupado com você. Se ele, que tinha tão pouco contato com o pai, está arrasado com a morte de John em circunstâncias tão horríveis, imagine você, que convivia diariamente com ele. Sam sempre se preocupou muito com a família, Dean. Eu sou testemunha. No fundo, ele sempre soube que algo assim acabaria acontecendo. Ele sofre muito cada vez que entra neste quarto e vê você neste estado.

‘- Eu vi o quanto ele está sofrendo pelo meu estado.’

– Ele sabe que você prefere morrer a ficar o resto da vida preso a uma cama, dependendo dos outros para tudo. Antes restava a você a opção de fazer sexo com alguma vadia desqualificada, dessas que se entregam ao primeiro que pague uma dose de uísque barato ou acene com uma nota de dez dólares. O Sam me contou o quanto você é pouco exigente quando se trata de mulheres. Agora, até isso é uma total impossibilidade, não é, cunhadão? Agora, que você não tem mais seu .. instrumento ..! 

‘– O que essa vaca está querendo dizer? Eu sei que estou tetraplégico, mas o que há mais para saber?’

Enquanto fala, Jessica se aproxima da cama e acaricia o espaço entre as pernas de Dean. Dean não sente o toque. Não sente nada. Ele cerra os olhos, mas isso não impede que uma lágrima escape e molhe o lençol sujo.

– Pena. Soube que era um motivo de grande orgulho para você. Pena mesmo. O estrago feito pela explosão foi grande, tiveram que cortar muito. Sem pernas, sem braços, sem seu MEMBRO VIRIL. Bem, quanto a isso, até que ficou bonitinho. Ficou parecido com o de uma garota. Às vezes, vão-se os anéis e vão-se os dedos. Bem, existem outras formas de se ter prazer. E de DAR prazer. Você aprende a gostar.

Cada palavra dita num tom falsamente carinhoso era como uma punhalada no amor-próprio de Dean. A tortura não era só física. Era também psicológica. Sentiu nojo quando Jessica aproveitou que estava com os olhos fechados e encostou os lábios nos seus. Vaca.

– O Sam vai trazer um amigo nosso para ver você. Ele fez maravilhas pela gente e tenho certeza que vai ajudar muito você. Claro, existem algumas cláusulas. Mas, ele mesmo conta para você. Não vim aqui para falar de negócios.

Jessica sai e Dean tenta sentir o amuleto no pescoço. Não conseguia sentir o cordão. Não sabia se estava ou não com um amuleto no pescoço. Será que podia alimentar esperanças de deixar aquela realidade antes de morrer de fome e de sede? Mas, se partisse, o que seria daquele Dean, deixado para morrer de forma tão indigna? O que pior do que aquilo ainda podia acontecer?


– Oi, Dean. Saudades?

‘– Trickster! Estava demorando. É como dizem: Nada está tão ruim que não possa piorar.’

– Fiquei sentido por você ter tentado enfiar uma faca na minha garganta. Antes você já tinha partido minha mandíbula a socos, lembra?

Dean estremeceu ao escutar aquilo. O Trickster era o único que podia consertar aquela situação. Bastava que não fizesse nada, que simplesmente o abandonasse ali e a sua vida estava acabada. Talvez morrer de fome e sede em poucos dias não fosse tão ruim afinal. Ficar para sempre naquele estado podia ser algo muito pior. Agradeceu por não poder falar. Se pudesse, talvez fraquejasse. Talvez implorasse ao Trickster para que o tirasse dali. Talvez prometesse fazer o que quer que ele impusesse.

– A sua sorte é que eu gosto de você, Dean. Veja, eu até lhe trouxe um presente.

‘– O Colt? Agora que eu não tenho braços? Que novas torturas está planejando para mim?’

O Trickster ergue o travesseiro em que Dean repousa a cabeça e esconde ali o Colt. Depois enche com água o copo que Sam usara para beber, ergue com cuidado o tronco de Dean da cama e leva o copo até sua boca para que beba. Dean olha desconfiado, mas aceita beber. O que mais tinha a perder?

Dean bebe dois copos cheios. O Trickster impede que beba rápido demais e insiste para que retenha um pouco o líquido na boca para molhar os lábios e a garganta. Ao final, Dean sente que já consegue articular palavras.

– Porque .. está .. me aju .. dando ?

O Trickster não responde. Faz surgir uma tigela funda com o que parecia ser uma sopa cremosa quente. O cheiro era bom. Faz surgir uma colher, pega a sopa com a colher, deixa esfriar um pouco e a aproxima da boca de Dean. Dean aceita, após alguma hesitação. Tinha medo de estar vendendo a alma por um prato de sopa. Não, tinha certeza que não prometera nada. Pelo gosto, era sopa de ervilha com caldo de carne. Estava deliciosa. O Trickster o faz tomar a sopa, colherada a colherada. Ao final, Dean sente que sua fome foi saciada. Aquilo fora completamente inesperado. Dean se sente confuso, com a total inversão de papéis entre o Trickster e seu irmão.

O Trickster volta a ajeitá-lo na cama, com cuidado. Estala os dedos, e o aquecedor elétrico do quarto começa a funcionar.

– O aquecedor desligará automaticamente às 18:30. O quarto deverá estar gelado quando as visitas chegarem. Agora, o importante. Na hora certa, aja sem hesitar. Sem pensar sobre o que pode e o que não pode fazer. Apenas aja.

O Trickster desaparece e deixa Dean com os sentimentos divididos em relação a ele. Lembrou de quando era Dean Milligan e estava nu na noite gelada do Oregon. Ele lhe dera roupas e dissera que um dia ele, Dean, descobriria o porquê. E, mais de uma vez, dissera que aquela jornada tinha uma razão de ser, algo que ele, Dean, precisava APRENDER. E que não terminaria até que ele aprendesse. O que, na verdade, o Trickster queria dele?


Eram 20:55, quando Sam entra, acompanhado de Jessica e de um homem alto, que ele não reconhece a princípio. Pelo menos não até o homem encará-lo com um sorriso maldoso no rosto e expressivos olhos amarelos.

– Maninho. Quero que conheça alguém que tem sido como um pai para mim. Você já ouviu falar muito dele. Azazel. Ele pode aceitar você também como filho. Já pensou? Nós dois novamente como verdadeiros irmãos? Duplamente irmãos de sangue.

Dean podia falar, mas isso denunciaria que tinha bebido água e poria tudo a perder. Estava com sede, mas era uma sede suportável. De qualquer forma, gostaria de beber mais um pouco. Finge impossibilidade de emitir qualquer som.

– ok, maninho. Um pouco de água. Mas nada de ir com muita sede ao pote.

Dean bebe os ¾ de água do copo, enquanto pragueja. O FDP nem para encher o copo.

– Sua adorável esposa falou que você ia trazer um amigo que trataria de NEGÓCIOS comigo. Vamos ser diretos e terminar com isso rápido. É a minha alma que está sendo negociada, Sam? Você vendeu sua alma para trazer de volta a vaca que agora é sua esposa e achou tão bom negócio que recomenda que eu faça o mesmo. É isso?

– Em linhas gerais, é isso. O pacote básico incluiria seu corpo novamente perfeito. Qualquer coisa a mais é entre você e Azazel. Dean, eu posso estar diferente em alguns aspectos, mas você ainda é importante para mim. Você é meu irmão e quero você ao meu lado.

– E um destes aspectos em que você está diferente faz com que ache natural me deixar morrer de fome, sede e frio.

– Apenas quis que pensasse de forma sensata nos prós e contras da opção que estamos lhe oferecendo.

– Entendo. Sam, por favor, me deixe uns minutos a sós com seu amigo Azazel. Nós vamos tratar de negócios.

– Estou torcendo por você, maninho. Para que tome a decisão correta.

– Vou tomar a decisão correta, Sam. Fique tranqüilo.


– Dean, não caia no erro de achar que pode ser mais esperto do que nós. Deve saber que o Inferno conta com os serviços dos melhores advogados. Está tudo previsto no contrato. Não há brechas nas entrelinhas. Uma vez assinado o acordo, não há volta.

– Az, posso chamá-lo assim? Minha alma pela do Sam. Você rasga o contrato que fez com meu irmão e assina um novo mais amplo comigo. Que acha, Az. Temos um negócio?

– Não vejo vantagem alguma em trocar uma alma por outra. Eu ficaria no zero a zero. Mas, vejamos. Sua alma, mais a de Lisa Braeden, mais a do filho de vocês, Benjamim. Sim, ela nega, mas ele é realmente seu filho. Uma mulher admirável, que sabe amar sem sufocar o amado. O menino tem muito potencial. Um bom pacote. E, de brinde, eu garantiria que ficassem juntos. Aqui e do outro lado. E vantagens materiais para a mulher e o menino. Cinco anos para você, dez para a mulher e vinte para o garoto. Eu estou sendo bastante generoso.

– E você pode mesmo restituir meus membros? Também o meu .. você sabe? Nunca ouvi dizer que demônios tenham poder para tal.

– Então você não é um caçador tão completo como imaginei. Não sabe tanto sobre demônios quanto deveria. Podemos fazer qualquer coisa.

– Prove. Recrie o meu braço direito e dê movimento a ele por alguns minutos. Gostaria muito de coçar as minhas costas. Preciso ter certeza de que é capaz. Porque uma coisa eu sei: demônios mentem. E você mesmo disse que uma vez assinado, não tem mais jeito. Depois, o que tem a perder? Eu ainda não teria minhas pernas, nem um dos braços, nem algo muito importante para mim.

Azazel fecha os olhos e se concentra. O ombro de Dean brilha como ferro em brasa e um novo braço vai surgindo como que modelado ali com o metal incandescente das fornalhas do Inferno. Dean grita de dor. Uma dor que parece infinita e interminável, mas que desaparece completamente ao final do processo. Ele tem de volta um braço vivo.

– Permita que me coce por uns minutos. Afinal, isso vai custar minha alma.

Dean voltara a ter o movimento de todos os músculos que permitem o movimento do braço. Enfia a mão sob o travesseiro e empunha o Colt. Então, num movimento rápido, sem dar chance de reação, acerta um tiro na testa de Azazel. Pelo menos nesta realidade estava vingado. Matara o Demônio de Olhos Amarelos.

Sam e Jessica, ao escutarem o tiro, entram no quarto a tempo de ver a fumaça no cano do Colt e o demônio Azazel explodir em chamas e desaparecer.

– Eu disse que tomaria a decisão correta, Sam. E a decisão correta é eu ficar com minha alma.

21:03.

Com uma brutalidade desnecessária, Sam arranca o Colt da mão recriada do debilitado irmão a quem traíra. Com a face crispada de ódio, encosta a arma na testa do irmão e dispara, sem um instante de hesitação. O Dean que conhecemos deixa aquela realidade um instante antes da bala atravessar o cérebro de sua indefesa contraparte.


Invisíveis num canto da sala, o arcanjo Gabriel e um Sam três anos mais jovem observam a cena. Lágrimas dolorosas escorrem da face de Sam.

– É assim que termina, Samuel. Se você vender sua alma a Azazel para trazer Jessica de volta, vai desencadear os acontecimentos que trarão você e Dean até aqui, até o momento em que você mata seu irmão tetraplégico, depois de torturá-lo por meses. Mais alguns minutos e você vai acordar em Stanford. Você lembrará de tudo que viu aqui. Pode até achar que foi um sonho, mas não foi. É a visão de um futuro que você pode evitar. Lembre-se das últimas palavras de seu irmão. A decisão correta é você ficar com a sua alma. Eu garanto a você que Jessica vai ficar bem.


Sam acorda chorando no dormitório masculino de Stanford e a primeira coisa que faz é pegar o celular.

– Dean? Eu ia fazer uma grande besteira. Pode vir aqui me buscar? Eu preciso muito de você, meu irmão. Te amo muito.


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Notas finais do capítulo

13.06.2011