In Between escrita por dearcamzie


Capítulo 5
Chapter III




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Planeta C-53 — Terra.

 

A culinária, de fato, transpõe fronteiras culturais, transformando-se na linguagem universal que todos compartilhamos. Os alimentos, especialmente aqueles ricos em carboidratos, desempenham um papel único nessa narrativa gastronômica. Estes são dotados com a fascinante capacidade de elevar os níveis de serotonina, que é o neurotransmissor responsabilizado pela regulação das sensações de prazer e bem-estar, e podem apresentar-se de diversas maneiras. 

 

Danvers imergiu nos afazeres gastronômicos do Complexo A com dedicação. Apesar de não conhecer nada da arquitetura e design local, contava com o auxílio de Sexta-Feira, que a instruía numa dança silenciosa através do abrir e fechar de armários e geladeira. Os ingredientes foram dispostos sobre o balcão meticulosamente, e pouco a pouco, ela começou a dar forma a seu imaginário. Duas torradas, cuidadosamente postas sobre um prato, e todas as opções de recheio que ela pôde achar na geladeira, adornavam a agora pronta bandeja. Uma xícara de chocolate quente fervilhava, cortesia de seus poderes, e estava no canto esquerdo superior, posicionada de maneira pensada, sua asa para o lado exterior da bandeja. Por fim, uma pequena tigela com frutas variadas, cortadas habilmente em pequenos pedaços, aderia uma variedade de cores à paleta alimentar. 

 

Estagnada em frente ao balcão, Carol pousou suas mãos fechadas em punhos na cintura. Em sua mente havia uma concorrência entre duas decisões. Não queria invadir o espaço pessoal de Kara, não após a sobrecarga emocional a qual lhe submeteu. Contudo, deixá-la só em um momento tão sensível também não parecia ser a melhor das opções. Seu olhar estava sobre o alimento, mas não era ele que lhe tumultuava os pensamentos.

 

     — Senhorita Danvers? Encontrei mais algumas informações sobre Kara Zor-El como havia solicitado, e também apaguei todas as filmagens que continham sua presença.

 

     — Obrigada, Sexta-Feira. Olharei em um instante.

 

Soltando uma longa lufada de ar, agarrou os pegadores laterais da bandeja, inflada com um bombear de cinco segundos de coragem insana. Seus passos eram cuidadosos, andares acima, em direção ao quarto que comportava a garota. Se surpreendeu quando notou a porta aberta, e a viu sentada da exata maneira que estava na sala. Seus dedos se apertavam ao redor de seus joelhos, como se estivesse tentando controlar-se emocionalmente. Era uma sensação dolorosamente compreendida por Danvers.

 

     — Pensei que pudesse estar com fome.— Forçou um sorriso, erguendo a bandeja quando teve sua presença notada. Esperou por alguma reação e quando avistou um mínimo aceno, adentrou o quarto. - Eu não sabia o que você gostava de comer, então trouxe todas as opções possíveis.

 

     — Ainda não sei do que gosto.— Repetiu o mesmo que falara a Alex quando ele a perguntou se ela gostava de seu quarto em Kaznia. Agora que tinha um quarto aqui, percebeu que não gostava daquele.

 

     — Mas acho que reconhece esse.— Apoiando a bandeja sobre a mesinha na lateral da cabeceira, ela pegou a xícara e a estendeu quando viu o olhar interessado sobre o conteúdo em seu interior.

 

     — "Primeira coisa que bebi."— Explicou, desistindo do inglês por hora.

 

Carol estudou a maneira como ela envolvia a xícara em suas palmas, sem se importar com a temperatura, e levava o líquido à boca, não havendo a menor menção de resfriá-lo antes. Assistiu as feições se tornarem mais leves e até ligeiramente contentes com o sabor.

 

     — Sabe o nome?— Puxando a poltrona atrás de si, ela sentou-se, recebendo uma resposta negativa em forma de acenar. — Chocolate quente.— O nome soou em inglês, enquanto a garota parecia o processar.

 

     — Cho-co-la-te.  – Cada sílaba saiu lentamente, carregada de expressões pensativas que detiveram a mais velha sorrindo. — Chocolate.

 

     — Isso mesmo. Muito bem!— O sorriso era sincero, e se alargou ainda mais ao notar o pequeno puxar de lábios que enfeitou o rosto à sua frente.

 

     — Gosto de chocolate.— A pronúncia ainda era arrastada, mas adorável, definitivamente adorável.

 

     — Eu posso ver que sim.— Suas costas repousaram contra o assento enquanto ria. — Há outras formas de se encontrar o chocolate. Posso te mostrar depois.

 

     — Alex uma vez me deu algo que parecia chocolate. "Biscoitos? Disse que servia para ver o mundo como eles veem. Não sei o que significa, mas tinha gosto bom."— O russo se espaçava conforme ela sorvia mais um pouco do líquido, e quando ouviu a risada da mulher em sua frente, a olhou.

 

O cômodo imergiu em um silêncio confortável, que não incomodou nenhum dos lados. Kara estava empenhada em descobrir o que mais de saboroso havia ali, então puxando a tigela, escolheu ao léu uma fruta. Não exatamente ao léu, ela admitiu para si mesma, havia visto amoras em livros e decidiu experimentar. A fruta estava madura, portanto, terminantemente doce. Era deliciosa, e isso surpreendeu a garota que fechou seus olhos para aproveitar melhor o sabor. Sua tentativa seguinte foi um morango. Era bem diferente, e gerava uma pequena trava em sua mandíbula, mas de alguma forma o sabor também lhe agradou. Agradou muito. 

 

Carol, do outro lado, apenas a assistia. Seu olhar interessado nunca se desviando do foco, quase como se estivesse hipnotizada. Estava cativa às feições alheias, tão expressivas e sinceras, a tornavam um livro aberto, e este fator, mantinha a Danvers atada. Percebeu que agradava-se em vê-la descobrir o mundo, pouco a pouco, uma sensação gratificante, e saber que a responsabilidade das expressões solenes era sua, a impunha ainda mais alegria.

 

     — Sei que pediu para vir ao quarto para ficar sozinha, então lembrei que não se alimentou e pensei que não era boa ideia te deixar aqui desacompanhada nesse momento.— Carol quase se arrependeu de quebrar o silêncio, quase.

 

     — Obrigada.

 

O sussurro e a clareza nas orbes azuis foram o suficiente para que ela percebesse que valera a pena.

 

     — Pedi que Sexta-Feira se informasse sobre você, e buscasse qualquer dado que nos ajudasse a te associar a alguém, ou algum lugar. Podemos olhar juntas depois, se for da sua vontade.

 

Franzindo o cenho em confusão, Kara observou aquela figura enigmática à sua frente. Desde que se lembrava de sua existência, o que se resumia há duas semanas, nunca fora-lhe ofertado o direito de escolha. Todos estiveram dispostos a ditar o que ela deveria fazer, como se soubessem melhor que ela o que era correto e bom para si mesma. Entretanto, aqui estava ela, neste novo lugar, com um quarto que gostava, e alimentos que podia escolher, sendo perguntada por aquela mulher se ela gostaria de saber mais sobre si.

 

     — Sim, por favor.

 

     — Faremos isso depois que comer, se estiver tudo bem para você.— Com um aceno lento, Carol sentiu o peso do olhar sobre si. — Está bem?

 

     — Carol é diferente.

 

     — Você diria isso.— Riu baixinho, tombando a cabeça. Ela era diferente, de fato. — Mas por que está me falando sobre?

 

     — Porque... É a primeira vez que me perguntam o que quero fazer sobre mim.

 

A realização atingiu a Capitã como um soco no estômago, um daqueles que pela surpresa do golpe lhe desnorteia por alguns segundos.

 

     — Não há melhor pessoa para saber sobre seus limites do que você.

 

Ela ensaiou em uma voz baixa, ainda impactada pelo peso das palavras. A garota concordou com um aceno breve e se dirigiu ao seu alimento mais uma vez.

 

     — Por que salvar a mim?— Seus olhos não alcançaram o rosto da mulher, tentando entender como colocaria os recheios em suas torradas.

 

     — Por que não salvar? Todas as pessoas deveriam ter a opção de serem salvas. Não é correto o que estavam fazendo com você.— Repetiu, se aproximando para entregar a faca para a garota, lhe instruindo em silêncio, apenas movimentos, sobre como fazer.

 

     — Parece ser pessoal.

 

Carol retesou, seu olhar preso sobre os cabelos de tonalidade loiro escuro, posto que a cabeça estava baixa, sua atenção focada no que fazia ao deslizar a geleia de amora sobre a torrada.

 

     — Parece?— Estava surpresa pela sagacidade.

 

     — Sim.— Seus ombros se encolheram suavemente, enquanto ela levava o pão aos lábios. — "Como quando disse que não era bom que estivesse sozinha numa hora dessas. Faz parecer que entende. Se entende tão bem, deve ter vivido."

 

     — Você é muito observadora.

 

     — "Pessoas são complexas. Sempre tinha de perceber se estavam num mau dia, para ser cautelosa."

 

Acenando em uma compressão que gostaria de não ter, Danvers voltou a recostar-se. Kara era como uma caixinha de surpresas. Ao mesmo tempo que não parecia saber nada sobre o mundo, sabia tanto sobre as pessoas que pegou Carol desprevenida.

 

     — Como se sente sobre isso? Sobre sua afirmação de que é pessoal.

 

     — "Não sei. Não sei muito sobre muitas coisas. Gostaria que houvesse livros catalogando como se sentir em situações adversas."

 

     — Eu também gostaria.— Sorrindo de canto, tamborilou os dedos sobre sua calça jeans. — Você ainda quer voltar para lá?

 

     — Não sei... "O que falou faz sentido, tem lógica. Se fosse algo que me ajudasse apenas, não deveria machucar."

 

          —  Não existe uma única forma de reaver as memórias. Não é uma ciência exata.

 

     — Se houver outro caminho, poderia tentar?

 

     — Podemos sim.

 

     — Conseguiu as suas memórias de volta?— Sua voz não passou de uma oitava. Teve todos os instantes de mastigação para ponderar se evocava aquela dúvida ou não. Tinha medo de ser punida por mau comportamento, mas não pôde se segurar.

 

     —  Uma parte delas, sim. Só que ainda há um longo caminho a ser trilhado. Você vê, alguns anos atrás eu pensava me chamar Vers.— A frase saiu em um tom de diversão, mascarando e ofuscando toda a dor contida por trás. Ganhando a atenção da garota que, finalmente, pareceu confortável o suficiente para lhe olhar, ela viu as rugas nos cantos de seus olhos, indicando um sorriso.

 

     —  Vers?

 

     — Vers.

 

     —  Eu prefiro Carol.— A frase simples e despreocupada que findou em mais uma mordida na torrada, fez a mulher sorrir.

 

     —  Carol Danvers é mais legal, não é?

 

     — Sim. Antes era só Vers?

 

     — Acompanhado do meu cargo de trabalho. Algo como: Vers, Starforce Kree.— Emoldurando seu tom, ela endireitou a postura como se representasse a si mesma. O próximo som que ouviu foi uma risada, baixa e tímida, mas definitivamente uma risada.

 

     —  Era uma apresentação ruim.—  Ela ainda ria, e Carol precisava concordar, era horrível.

 

Ao notar que seu chocolate quente havia perdido a temperatura desejada, Kara, com uma expressão decidida, canalizou seu olhar laser em direção ao líquido que restava na xícara num ímpeto corajoso. O espetáculo teve início de maneira promissora, com o chocolate retomando o ponto de fervura, borbulhando com intensidade. No entanto, a falta de controle impediu que ela interrompesse a ação antes que a xícara cedesse à pressão, estilhaçando-se em uma explosão abrupta.

 

Cacos de vidro se espalharam pelo ambiente, e a substância açucarada tornou-se uma espécie de confete doce que se dispersava pelo quarto. Alarmada, Carol se ergueu rapidamente em um salto, a surpresa dando lugar à preocupação em seu semblante. Assim que conseguiu, finalmente, conter os lasers, seus olhos se dilataram em pavor ao perceber a aproximação alheia. Um grito de pânico escapou de seus lábios, e ela instintivamente abraçou as pernas, encolhendo-se quase como se buscasse refúgio em um casulo diante da situação, seu rosto devidamente escondido entre os joelhos.

 

     — "Desculpa! Não foi por querer, desculpa!"— Tentava ecoar em inglês, mas o russo escapou aos poucos.

 

     —  Kara, está tudo bem.— A reação havia lhe surpreendido, mas não foi de difícil compreensão. Ousando tocá-la, se arrependeu quando a viu se contrair ainda mais com resmungos incoerentes e quase doloridos. — Eu não vou machucar ou punir você. — Tentou soar suave, querendo lhe transmitir calmaria.

 

Foram alguns segundos até que ela conseguisse entender que não seria punida. Apenas seus olhos escapando do esconderijo emaranhado de braços e pernas.

 

     —  Tudo bem, eu só estou preocupada que tenha te queimado ou cortado...?

 

     —  N-não pode.

 

     — Ótimo, isso é ótimo.— Suspirou aliviada, e se abaixou a altura da outra. — Foi uma bagunça, mas você estava se saindo bem. Fico orgulhosa que tenha tentado. Agora eu vou limpar isso aqui, e você precisa de um banho porque agora não é mais a Kara e sim a Kara de açúcar de tanto chocolate quente que há sobre sua roupa.— Avistando um sorriso de canto, ela prosseguiu. — Vou te conseguir algumas roupas, assim você pode se trocar. Consegue fazer isso?

 

     — Sim.

 

     — Certo.— Tornando a se erguer, ela acionou a IA. — Sexta-Feira, pode auxiliar Kara no que for preciso enquanto busco uma muda de roupas?

 

     — Certamente, senhorita Danvers.

 

     — Você já sabe como fazer.— Incentivou a mesma, a dando liberdade para se mover quando quisesse, ao trilhar seu caminho para fora do quarto.

 

     —  Carol?— Detendo seus movimentos, a Capitã se voltou para saber o motivo de estar sendo acionada. — Obrigada.

 

A sentença provocou um sorriso em seus lábios, um gesto suave que gerou pequenas ruguinhas ao redor de seus olhos, expressando sua alegria com os pequenos avanços que ambas estavam fazendo. Acenando suavemente antes de deixar o quarto, ela respirou profundamente, enchendo seus pulmões de ar fresco. Distraída, percorreu o corredor, deixando seus pensamentos vagarem até que se deu conta de que não fazia ideia de onde conseguiria as roupas adequadas, fazendo-a deter seus passos.

 

     —  Sexta-Feira, onde posso conseguir roupas para Kara?

 

     —  Há uma sala com algumas opções no andar inferior, a maior parte são macacões de treino, mas devem servir.

 

     — Certo... Ah! Eu estive pensando, tinha esquecido de mencionar, mas gostaria de saber sobre o paradeiro de Alexander Luthor. Ele estava encabeçando toda a iniciativa com Kara, e estava lá na hora de minha entrada, só que não me recordo de haver esbarrado nele durante a invasão. Não acha estranho que ele tenha sumido do nada?

 

     — Sim, senhorita Danvers, não é uma atitude plausível para um líder. Verificarei as imagens, um instante.

 

O elevador lhe levou andares abaixo, até a sala indicada pela inteligência. A porta estava trancada, mas fora facilmente aberta. Como informado, as opções não eram variadas, mas Carol conseguiu achar um conjunto de moletom preto que serviria.

 

     —  Senhorita Danvers, segundo minha análise, Alexander Luthor usou um dispositivo para sair da base.

 

     — Que dispositivo?

 

     — Nunca havia visto essa assinatura residual, mas se assemelha a um dispositivo de teletransporte.

 

     — Teletransporte? Isso é... deveras aprimorado. Consegue rastrear o destino?

 

     — Sinto muito, senhorita Danvers, não é possível.

 

     — Obrigada, Sexta-Feira.

 

Com os pertences cuidadosamente equilibrados nos braços, ela suspirou profundamente antes de deixar o cômodo, fechando a porta suavemente atrás de si. Ao pegar o elevador de volta, acomodou as roupas dobradas sobre a cama de Kara e pegou a bandeja para levá-la de volta à cozinha. Após lavar e guardar tudo, os sistemas automáticos do complexo já haviam realizado a higienização do quarto, permitindo que ela se sentisse à vontade para explorar o restante do lugar.

 

 

Kara saiu do banho, enrolada em uma toalha branca, enquanto seus cabelos espalhavam gotículas de água pelo chão, gerando pequenas poças. Incerta de sair, ela espiou antes de voltar para o quarto, temendo dar de cara com a mulher. Sua timidez ainda era um traço forte e marcante, e apesar de Carol lhe transmitir uma confiança boa, ainda se sentia na defensiva. Quem poderia julgá-la afinal de contas? 

 

Deparando-se com o conjunto monocromático, ela foi até a porta, encostando a mesma apenas por precaução, embora estivesse certa de que nos níveis acessáveis só havia ela e a loira. As roupas deslizaram rapidamente por seu corpo, e ela secou o excesso de água que havia em seus fios, deixando a toalha de volta ao banheiro. Pensativa, tentou se decidir sobre qual seria seu próximo curso de ação.

 

     —  Huh... Sexta-Feira?— Experimentou em um tom baixo.

 

     —  Sim, senhorita Zor-El?— O vocativo lhe era estranho, Zor-El? Ela se chamava Kara... Talvez estivesse desconfigurado por ela ser nova ali.

 

     —  Onde está Carol?

 

     — A senhorita Danvers se encontra na biblioteca no térreo, gostaria que lhe guiasse até lá?

 

     — Sim, por favor.

 

Puxando as mangas do moletom, ela as enrolou em seus dedos, seguindo de maneira curiosa pelo ambiente. O local era mais amplo, e deveras mais colorido que a base em Kaznia, as portas pelas quais passou possuíam pequenos inscritos em metais postos como identificadores: "Romanoff", "Maximoff". Não havia um Danvers ali, o que instigou sua curiosidade. Optando pelas escadas, ela desceu degrau por degrau, não entendia o motivo, mas estar presa naquele cubículo de aço que Sexta-Feira lhe oferecera para se transportar, a gerou um frio na espinha, e uma sensação de sufocamento. Seus olhos exploravam o local em silêncio, até chegar às portas duplas, onde foi informada como adentrar. 

 

Buscando por Carol, ela não a achou de imediato, mas a quantidade de livros a chamou atenção, eram diversos, das mais variadas cores e tamanhos. Procurou pelo mesmo estilo que a ajudara a aprender as palavras em Kaznia, mas não encontrou. Se arriscando em um sortido, percebeu que não tinha domínio o suficiente em inglês para compreender o que dizia. Desistindo, ela devolveu o mesmo à prateleira, voltando a procurar pela mulher e a encontrando encostada contra a parede enquanto folheava o que pareciam arquivos. Sua aproximação foi silenciosa, mas não demorou a ser notada.

 

     —  Você fica bem de preto.

 

Abaixando o olhar para as vestimentas, ela se avaliou e sorriu de lado.

 

     —  Obrigada. O que está lendo?

 

     — Informações sobre o lugar, eu não conhecia.

 

     — Pensei que...— O franzir em seu cenho fora explicitamente confuso. — Pensei que morasse aqui.

 

     — Não, eu moro... no espaço.— Carol riu verdadeiramente ao notar os olhos esbugalhados em sua direção.

 

     —  No espaço?

 

     — É, quase isso. Não é assim, solta no espaço, mas em uma nave.

 

     — Oh...— Kara não entendia exatamente, nem sequer conseguia imaginar o que era uma nave, mas se sentiu envergonhada para perguntar. — Outras pessoas moram aqui. Por que me trouxe?

 

     — Este é um complexo, como quando há um conjunto de instalações. Pertence à Steve Rogers, um amigo de um amigo, então neste complexo moram as pessoas de confiança dele. Na verdade, é um pouco mais complicado que isso, eles são um grupo, chamado de Vingadores. Em resumo, meu amigo Fury pediu auxílio e eu vim para a Terra, então eu encontrei você e sabia que este era um lugar seguro.

 

     — Seu amigo Fury é um dos de confiança? Eu não vi o nome dele nas portas. A não ser que o nome dele seja Maximoff ou Romanoff.

 

     — Há um outro andar que comporta mais alguns quartos, mas você não viu o nome do Fury porque ele não mora aqui, ele é como... o líder que não fica junto dos outros. Seu andar é o feminino, então os sobrenomes que viu nas portas são de mulheres.

 

     — Você é desse grupo?

 

     — Não, Kara.

 

     —  Okay... Podemos ver agora? 

 

     — Seus dados? Claro.

 

Com um manear suave, ela convidou a garota a segui-la em direção a um conjunto de estofados que ficava no canto. Havia um sofá de três lugares e duas poltronas, todos envolta de uma mesa de centro de madeira.

 

     —  Sexta-Feira, pode nos mostrar o que encontrou?

 

     — Iniciando hologramas.

 

     — Por onde quer começar?

 

     — Alex?— Seu olhar era de esperança. Talvez aquele Alex não fosse o seu, como Carol havia dito, ela não se lembraria de alguém que a manipulava, lembraria?

 

     — Sinto muito, senhorita Zor-El, mas não há registro algum mencionando "Alex" nos dados privados de Kaznia.

 

     — Ela chamou de Zor-El, mas meu nome é Kara.— Confidenciou em um sussurrar, perceptivelmente menos animada.

 

     —  Certo, é uma boa tentativa. Pode nos dar os dados do nome completo e origem de Kara, por favor?— Sorriu reconfortante para a garota.

 

     —  Kara Zor-El, idade desconhecida ou não informada. Natural do planeta Krypton, cujo atual status é de planeta morto, seu fim deu-se por uma explosão gerada pela instabilidade em seu núcleo.

 

     — Zor-El...— Repetiu como se tentasse processar e assimilar tudo, lembrando-se também de ter ouvido sobre Krypton em sua estadia em Kaznia.

 

       —  Kara é uma doppelganger da Supergirl, porém não encontrei maiores informações a este respeito.

 

     — O que é uma doppelganger?

 

     — Doppelganger é uma palavra de origem alemã que se refere a uma pessoa que é fisicamente idêntica a outra. O termo é frequentemente utilizado para descrever um duplo ou uma sósia de uma pessoa.

 

Carol assistiu Kara encostar-se contra o estofado, seus dedos se movendo em ânsia e frenesi uns contra os outros em seu colo. À medida que mais informações eram reveladas, a complexidade da situação crescia, dando origem a uma miríade de novas perguntas. Sentindo um ímpeto de coragem, sua destra adentrou ao emaranhado de mãos, trazendo a palma na sua em um aperto de acalento. Seus dedos rodearam a pele macia e quente, angariando um olhar confuso, porém agradecido.

 

     —  Você quer continuar, ou prefere dar um tempo?

 

     — Continuar... Só que, eu não me lembro e...

 

     — É frustrante.— Ao perceber que ela não havia entendido, tentou novamente. — "Frustrante."

 

     — Sim.— Tomando uns instantes para inspirar profundamente, seus dedos apertaram a mão de Carol. — Pode seguir.

 

     — Suas habilidades sobre-humanas estão diretamente associadas à sua exposição a luz solar amarela, consistindo em: superforça, voo, visão de calor, superaudição, invulnerabilidade, supervelocidade, sopro congelante, sentidos aprimorados, rápida regeneração e visão de raio-x.

 

     — Você conhecia todas elas?

 

     — Não... Alex estava no início do treinamento. Apenas força, velocidade, voo e a invulnerabilidade. Estávamos com problemas sobre a visão e eu não fazia ideia do sopro.— Uma pequena careta de agonia adornou suas feições e o deslizar do polegar contra sua pele a trouxe de volta.

 

     —  Você pode continuar treinando aqui, eles mantêm um suporte eficiente, não há problemas em descontrole, isso costuma acontecer com frequência com pessoas como nós. Ao menos sabemos um pouco mais sobre de onde vem suas habilidades.

 

     —  O sol.— Agora a frase do militar começava a tomar um sentido em sua mente, as habilidades eram seus poderes, e vinham do sol.

 

     — Exato. Sexta-Feira, algo sobre a Supergirl?

 

     — Há precisamente cinco menções à Supergirl nos arquivos confidenciais de Kaznia, no entanto, nenhum destes explicita quem ela é de fato. Buscas ao redor do planeta também não acusaram nenhuma indicação, é como se Supergirl não existisse nesta realidade.

 

A adição daquele parecer deteve Carol, mergulhando-a em um mar de pensamentos. Consciente da inexplicável existência de Kaznia, a possibilidade de que seu surgimento pudesse ser resultado da fusão entre realidades adicionava uma camada alarmante à situação na qual se encontravam.

 

Precisaria aguardar pela chegada dos Vingadores, confiando que a perspicácia do grupo poderia contribuir com adendos pertinentes, auxiliando no desvendar daquele mistério. Conforme esses pensamentos se desenrolavam, uma sensação de remorso a preencheu. A palavra "Vingadores" reverberava em sua mente, trazendo consigo o peso do compromisso que Carol, inadvertidamente, havia deixado de lado por estar distraída com Kara. Um suspiro escapou dela, uma maldição silenciosa por ter esquecido de prestar auxílio à equipe que possivelmente ainda estava imersa naquela luta.

 

     —  Sexta-Feira, pode me atualizar sobre a situação em Chicago?

 

     — Tudo sob controle, senhorita Danvers. Os Vingadores aniquilaram as ameaças e se reagrupam, neste instante estão retornando à base.

 

O silvo de alívio que emanou dos lábios de Carol criou uma melodia efêmera, um contraponto ao arquejo sôfrego de Kara. Uma onda de pânico sutilmente ressurgiu, envolvendo-a sem motivo aparente. Talvez fosse o impacto repentino da chegada de um grupo de pessoas, perturbando a relativa tranquilidade que ela estava começando a encontrar em sua recém-descoberta realidade, que se resumia a apenas ela e Carol.

 

A presença de outros indivíduos trouxe consigo uma ansiedade conhecida, mas que não deixava de ser incômoda, como se o tecido de sua normalidade estivesse sendo esticado além dos limites. Notando os claros sinais de receio provindos dela, Carol procurou algo em sua mente que fosse útil para distraí-la.

 

     —  O que gosta de ler?

 

Encolhendo os ombros suavemente, seu olhar correu pelas diversas prateleiras repletas com inúmeros livros.

 

     —  Não li muitos, em Kaznia aprendia com os coloridos e aquele que explica as palavras.

 

     — Livros infantis e dicionários?

 

     — Sim.

 

     — Você aprendeu a língua com livros infantis e dicionários?— Seu tom subiu algumas oitavas em surpresa.

 

          —  Huh, sim?!

 

         — Uau. Isso é surpreendente, acho que podemos adicionar uma super inteligência à sua extensa lista de habilidades.

 

Com um pequeno sorriso tímido, ela baixou o olhar, direcionando-o cuidadosamente para suas mãos, enquanto uma expressão de curiosidade retornava à suas orbes. Aquele momento era peculiar e ao mesmo tempo fascinante, ela podia sentir o toque em sua plenitude. Era uma experiência totalmente distinta da que experimentou com os guardas, Alex e Mikhail, cujo contato ela percebia apenas visualmente, seu cérebro registrando o toque por meio do alcance dos olhos.

 

O contraste do toque que agora experimentava, como se estivesse descobrindo um sentido adicional. O toque era tangível, real, com textura que podia ser explorada com as pontas dos dedos e uma temperatura que lhe transmitia a verdadeira essência daquele contato. Cada detalhe, por mínimo que fosse, contribuía para a riqueza sensorial daquele instante.

 

     — Você está com o mesmo olhar de Kaznia.

 

A voz lhe arrancou de seus pensamentos em um movimento seco, e Kara encarou os olhos cor de mel profundamente. Suas sobrancelhas levemente franzidas, enquanto ela mordiscava o interior de sua bochecha.

 

      —  Que olhar?

 

     — Esse de que há algo fascinante na minha mão.

 

Ela riu com a fala, riu com sinceridade, a mulher era divertida, Kara decidiu que gostava dela. Ousando um pouco, ela desfez a união de suas mãos, seus dígitos passando a percorrer de forma exploratória a palma alheia.

 

     — "Nunca senti o toque antes. Quero dizer, eu sabia que estavam me tocando, eu sei que há roupas em mim, mas não os sinto. Quando os guardas me empurravam mal fazia efeito, ou quando Mikhail me abraçou por salvá-lo, e Alex me estendeu a mão para me ajudar a levantar."

 

     — "Nada?"

 

     — "Nada, nem mesmo... leves. Eu entendia que estavam porque via, mas se não, não poderia dizer quando estavam pegando em mim."

 

     — "Mas você sente o meu."

 

     — "Sim. Isso é assustador e fascinante na mesma proporção."

 

     — "Não sabia disso. Talvez seja parte da sua invulnerabilidade, quando entreguei a xícara a você, ela estava bem quente, só que não parecia te incomodar."

 

     — "A temperatura também... nada."

 

Carol estava surpresa com as informações, querendo experimentar até onde a sensibilidade de Kara iria, concentrou a energia em sua mão, a aquecendo de pouco em pouco. Quando um par de azul esbugalhados pairou sobre seu rosto, ela ergueu suas sobrancelhas na espera de uma fala verbalizada.

 

     — Quente.— Ela sorriu com o quão arrastado e carregado de sotaque aquele mísero dizer possuiu. — Isso é quente.

 

Concordando com um aceno, a garota parecia em êxtase. Seus dedos ainda passeavam por sua mão, e a sensação era boa, as vezes Carol esquecia-se de como era interagir com as pessoas meramente pelo prazer de estar junto, sem a responsabilidade de ter de salvar milhões de vidas, e conversar por necessidade de um plano para que todos sobrevivessem. 

 

Permitindo-se mergulhar naquele instante, ela relaxou seus músculos, apenas contemplando a dedicação com a qual a garota explorava, tentando conhecer mais de si mesma. Seus dedos foram direcionados ao rosto alheio, e um ofego de adoração foi ouvido. Dedilhando, desta vez por conta própria, o rosto de Kara, ela assistiu a garota fechar seus olhos, parecendo em conformidade com o deleite que o toque lhe proporcionava. Seu polegar resvalou sobre a maçã do rosto, redesenhando lentamente a bochecha. A suavidade de Kara cativava sua atenção, o quão linda ela era, os traços que estavam contorcidos em uma felicidade quase infantil, livre de qualquer maldade ou impureza. O indicador escorregou pelo nariz que foi franzido, e lhe gerou um sorriso, antes que se concentrasse na ponta, aquecendo um pouco, o suficiente para que ela conseguisse reaver o olhar cerúleo de volta sobre si.

 

     — "Ainda é assustador?"

 

Foram alguns segundos para que ela negasse, seus lábios abrindo e fechando enquanto ponderava sobre uma resposta que pudesse ser considerada coerente quando seu corpo retesou e ela parecia devota a ouvir, a cabeça girando lentamente.

 

     — Senhorita Danvers, os Vingadores chegaram.


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