Ars Olins, estado de guerra escrita por MT


Capítulo 4
Capítulo 2° — Capivarismo Selvagem




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Vilmar - sátiro

 

 

Existência precede essência. João Paulo assumira que havia ´´essência``. No existencialismo acredita-se que isto é criado pelo homem, o motivo para viver, uma fantasia para tentar fugir do que as descobertas científicas parecem apontar com cada vez mais veemência, e João Paulo Salte percebera através de observação crítica da vida, que: não há um sentido intrínseco para você estar aqui, finja que tem uma já que a outra opção costuma levar a depressão e suícidio. 

O objetivo da jovem da realeza que foi recentemente capa de revista? Vilmar diria: descontar sua raiva. Não salvar seu país de criminosos, retaliar nações que se recusam a baixar a cabeça ou vencer campeonatos militares. Era só olhar para ela. Andar firme, mas rápido, bordas da boca ligeiramente para baixo e pálpebras semicerradas, punhos cerrados, sempre pronta para brigar. Até sua risada e suas respostas mais humoradas a entrevistadores parecem um convite a violência. A história que fez nas mídias era uma longa lista de conflitos variados, geralmente  resultando em gente morta.

Dessa vez parece que foi a própria Ars quem morreu. Pobre demônio, que os crentes estejam certos e que o cara lá de cima tenha pena de sua alma

Há quem diga: se quer paz, vá para a igreja. Vilmar fora lá meia dúzia de vezes. Quase vomitara de tamanha forçação de barra para impor uma ideia confortável de final feliz no paraíso e quase se pusera a escrever uma matéria expondo o pastor por tentar vender um estilo de vida que proporcionaria o ´´happy ending`` quando nada o corroborava como efetivo. Mas a maior parte do manual passado por ele envolvia ser uma pessoa melhor, então já era menos canalha do que o governo que vende a felicidade como ter dinheiro para comprar. Malditos capivaristas.  Acendeu o cigarro. Era o último e para conseguir mais teria de lutar contra vielas sujas e olhares de esguelha até chegar no Almiro da Beija Flor. Tabaco sumira das prateleiras dos mercados legalizados há duas décadas e meia, álcool também, ao menos em Marte e nas outras cinco grandes nações… três, metade delas foram apagadas por um evento sobre qual respostas ainda não haviam chegado. Meu palpite? Marte e a comandante louca do exército usaram a bomba de hidrogênio dessa geração. Acendeu, puxou a fumaça, prendeu por três segundos e soltou. Não que eu vá viver para ver. Câncer de pulmão, sobrepeso e uma dieta baseada em… bem, cinzas de um cigarro que faria os seus ancestrais parecerem saudáveis brinquedos de criança e restos de comida deixados na geladeira do jornal.  

E? Qual é a minha essência? Levantou da cadeira, clicou no botão à esquerda da janela e a tela de vidro subiu. O ar fresco acertou-lhe o rosto. Escrever, investigar e torcer para que alguma coisa do que digo abra um buraco nessa cultura autodestrutiva. A borda esquerda dos lábios subiu em um espasmo. Ou pelo menos fazer alguém rir e ganhar um pouco mais de energia para encarar essa estrada direta até o inferno

O voo de Vilmar até Gales sairia em três horas. Fazer perguntas sobre a explosão da embaixada, checar os escombros e agonizar acima do que provavelmente será um longo período sem acesso a tabaco. O que talvez signifique mais um ou dois dias de vida a mais no meu saldo. Pelos deuses, como ele queria acreditar em deuses e toda a baboseira pregada nas igrejas. Teria largado o fumo, não tentaria brigar contra um sistema perfeitamente enraizado e que não é só blindado contra críticas como também capaz de se alimentar delas. Seu Jorgin tivera um inimigo mais viável no dragão que o engoliu sete meses após devorar sua família. Vilmar gargalhou e tragou novamente seu assassino inanimado. Estava ficando louco, às vezes acreditava que derrubaria o capivarismo mesmo tendo comprado um carro voador que custa o valor de uma casa de porte médio e sobre o qual agia como dono incontestável usando o apoio das leis do próprio capivarismo. O veneno é forte, mais forte do que as massas e os idiotas que acham estar acima delas

O espaço aéreo entre países era vigiado e veículos particulares, ao menos os daqueles com menos de um bilhão na conta, não tinham permissão para atravessá-lo. Vilmar pegou seu sobretudo, o chapéu de aba curta e circular e seguiu para a garagem na cobertura do edifício. Pela escadaria. Que não se diga que Vilmar Carvalho era despido de hábitos saudáveis. Os músculos da pernas doíam, a respiração era feita em um arfar doentio e a pele cor de caramelo estava coberta de transpiração e quase rubra ao chegar na cobertura. Que não… que não se diga que Vilmar Carvalho só tentou suícidio através do cigarro. Abriu a porta do modelo retrô camaro 666 e se jogou sobre o assento do motorista, o dedo imediatamente indo ao botão que ativa o ar condicionado. Após sete minutos de tentar substituir o método de obtenção de oxigênio da boca para o nariz, avisou a I.A do veículo para levá-lo ao aeroporto.

Vilmar fitou os céus enquanto o carro movia-se sobre ele. Quando o perguntavam o motivo de achar o capivarismo um mau, por um bom tempo sua resposta foi: o estímulo para que empresas abocanhem mais e mais, da forma com menos custo possível, os recursos naturais e produzam itens com maior margem de lucro causa destruição de biomas, dissipação de gases poluentes, espalhar de plástico nos oceanos que acabam matando vida marinha, aumento da temperatura global, doenças por conta de fertilizantes e produtos super processados tóxicos. Mas depois dos vinte, o planeta deixou de ser a imagem maior na vitrine das vítimas para Vilmar. ´´Seleção natural``, ele diria se perguntado agora, ´´essa é a lei da natureza e se achamos mesmo que estamos acima de monstros e animais, não deveríamos nos estruturar sob ela``. E porque uma princesa nascida na família real e a filha do traficante que essa matou não começam no mesmo buraco de merda. É desigual. E sendo uma das pessoas que vieram de um buraco de estrume, Vilmar não conseguia simplesmente dizer ´´está tudo ótimo com o capivarismo. E daí que em termos simples seria como um sujeito surgir sob uma luta pela sobrevivência no meio de gente estressada por ela enquanto outro não só não precisa se preocupar com o que vai comer, como também tem uma sociedade que o aplaude pela menor das bobagens? Animais também nascem em termos diferentes e nunca vi um reclamar``. 

Então igualdade, é isso que eu quero? Talvez. Uma subdivisão das riquezas e atividades que não forçacem esforço e horas demais de um por migalhas enquanto de outro esperava apenas um vídeo dançando para o Tico Toque e o parafrasear de opiniões contrárias a factualidade para receber um banquete. Já seria um bom começo. Fez uma careta. É por isso que me chamam de bolsona

O carro aterrissou e Vilmar partiu rumo a seu voo, uma aeronave retangular com quatro asas de três metros de comprimento, e um de altura, com propulsores na parte inferior e dois menores na borda de trás, além dos dois maiores na retaguarda do veículo. Sob a camada superior pintada de branca de azul no trecho de baixo ele sabia haver uma série de círculos mágicos que seriam alimentados pela EM (energia mágica) do piloto. A maioria sobre reduzir a resistência do ar e usá-la para otimizar a flutuação da nave, um modelo de ônibus espacial feito para se manter na atmosfera do planeta. Essa é a verdadeira era das investidas ao cosmos, todos os anos um modelo novo, quase que por país, de foguete surge ao olhar do público. O planeta vizinho, Ares, já havia sido marcado pela companhia de eletrônicos Pequeno e Suave e meia dúzia de outras. É deprimente que o espaço seja o novo bioma que a nossa voraz cultura consumista começará a, bem, consumir… embora o lado bom seja a aparente impossibilidade de darmos a ele o destino de extinção que damos ao nosso planeta.

Por favor, que seja uma impossibilidade.

Não que eu vá viver para ver.

Mas só considerar que seja possível já é bastante deprimente.

Por que? Por achar que, de alguma forma, se a humanidade existir, parte de mim ainda estará viva?

É vergonhoso dizer, mas sim.

O voo passou quase despercebido por Vilmar antes que o piloto alertasse a chegada na ilha central de Gales, Cardiff. Desceu, atravessou o aeroporto e pegou o primeiro táxi da longa fileira à frente da entrada. A estrada era plana. Eu esperava que tivesse de percorrer um arranha-céu por metro quadrado. Aquele Erwin Smith, hum? Não é à toa que o chamam de o semideus de Gales. Eu particularmente estaria disposto a alcunha-lo de deus das estradas

Vilmar Carvalho chegou à frente da longa praça que precedia a montanha na qual, aos pés, pairava os detritos cercados por postes emitindo hologramas às laterais, que os conectavam, e tinham os dizeres ´´não atrevesse``.  A área ocupada pelos imensos blocos de concreto, aço e madeira carbonizada possuía uma extensão de trinta e três metros quadrados. Considerando que a estrutura destruída era do tamanho de uma rua, até que é bem pouco.

Se aproximou até a faixa de contenção e fitou os pedaços escurecidos pela explosão. Os guardas, fardados com  branco e azul de Gales e os trajando o vermelho e preto do exército de Marte o encararam e então tornaram a caminhar ao redor do caos, se abaixar para revirar alguma pedra, e gravar um áudio com sua observação sobre. Fedia a fumaça. 

Já faz um dia desde o ocorrido. Ainda não encontraram tudo que podiam sobre a explosão? Com todos os recursos de Marte e o envolvimento da realeza? Talvez estejam apenas impedindo a aproximação de curiosos. Ou eu tenha chegado quando coincidentemente vieram fazer uma nova averiguação.  

Algo nisso importa? Estou aqui como o rato hipócrita em busca da matéria que vai lhe render uns trocados.

Desceu a rua e parou de frente a uma barraca de comida. Era em verdade uma minivan com um teto de tenda acoplado à lateral e algumas mesas postas a sua esquerda. Apenas uma cliente. Uma… mulher? De vinte? Ultimamente, com todos os procedimentos estéticos existentes e o progresso da acessibilidade aos de boa qualidade, era de bom senso não se aproximar primeiro. Elas podiam ter cinquenta… ou realmente dezoito. Não é uma perspectiva agradável se envolver com alguém da idade de sua filha. Ela vestia jaqueta, camisa e calças rosas, um óculos escuro e o cabelo fora cortado rente a nuca. Na mesa da mulher havia o frango à Marengo, onde a ave era refogada com azeite, tomates, bacon, cogumelos, e acompanhada por lagostins e ovos fritos. Inesperadamente refinado para uma minivan… tanto para ela como de alguém que vem até uma atrás desse prato.

— Quero o mesmo que a moça — disse ao sujeito rechonchudo usando um avental que dizia ´´kiss the chief``. Ele assentiu e Vilmar sentou na mesa ao lado. 

O aeroporto estava cheio, as ruas quase desertas, a praça tomada por pessoas segurando variados modelos de câmeras e a força militar. A maioria das pessoas diria ´´e?``. Não é o esperado? Pessoas comuns se assustam e vão embora ou trancam-se em casa, os abutres da mídia rondam o moribundo cadáver da notícia e a polícia tenta impedi-los de macular a cena do crime antes dele ser resolvido.  Perfeitamente normal. Se há uma pergunta mais curiosa é: trabalho externo ou de algum galês que mantém contato com Erwin Smith? Talvez o próprio tenha feito isso, sendo o quase deus que é, eu não excluiria a possibilidade

— Ei, traz a conta.

Os pelos de Vilmar se arrepiaram, as mãos subiram para fora da mesa como se tocadas por eletricidade e a cabeça, rígida, virou na direção da mulher em rosa. As mesas estavam lado a lado, ambos sentavam na ponta mais próxima da minivan, e ele a via lateralmente. A cor dos olhos dela, pela abertura que o ângulo proporcionava, foram confirmados como rubros. O físico era atlético com bíceps bem torneados mesmo sob as mangas da jaqueta. 

Puta merda! Ars Olins?! 

A íris vermelha o encontrou e a pálpebra foi erguida ao limite.

— Porra… — ela murmurou.  


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Notas finais do capítulo

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