A Reconquista escrita por Venus


Capítulo 8
VII- O Poder de Alianças (Wylla)


Notas iniciais do capítulo

Hello! Peço perdão pelo atraso, mas o capítulo da Wylla acabou mais agitado do que originalmente planejado, e não consegui terminá-lo na semana passada. Espero que gostem, boa leitura :)



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Wylla->


 
  Wylla Tully sabia que aquele momento chegaria, fatalmente, mais cedo ou mais tarde; mas o estava postergando desde que havia ouvido sobre a chegada do jovem rapaz à cidade. Não porque tivesse alguma razão para temor, ou porque fosse seu hábito recuar de um conflito, mas porque queria que ele viesse até ela, não o contrário. Se fosse encará-lo novamente, após todos aqueles anos, seria em seus próprios termos, não dele.

Cinco anos não soava como um tempo terrivelmente longo, mas era. Ele era uma criança quando havia partido, agora era um jovem adulto. Wylla imaginou o que cinco anos deveriam ter feito à sua Rohanne. Quando havia tido que deixá-la, a menina mal era capaz de falar uma frase completa, agora deveria ter quase sete anos, e seus próprios talentos, interesses e particularidades. Toda uma personalidade que havia se formado longe dela, e que ela não havia tido a oportunidade de ver e apreciar.

Wylla sempre havia achado peculiar como, apesar da semente notoriamente forte dos Baratheon, Rohanne tivesse os olhos brilhantes dos Tully, um azul bem menos tempestuoso e bem mais esverdeado que o da mãe. Tinha cabelos escuros, é verdade, e isso lhe conferia uma certa austeridade, uma certa força nos traços; mas Wylla sempre estivera inclinada a pensar que Rohanne era a mais gentil dos seus filhos.

E agora ela era a única que havia sobrado. Totalmente desamparada no mundo, com um coração puro e ingênuo, e jovem demais para se proteger. Era realmente de se admirar que Wylla guardasse um terrível rancor daqueles que a haviam tirado dela? Era realmente de se admirar que ela passasse cada um de seus dias mantendo vivo o fogo de seu ódio, até que a tivesse de volta?

Mas nada daquilo era culpa de Axel, e ela tinha que se lembrar disso. Por mais que ele fosse terrivelmente parecido com os irmãos, ele não era Duncan, e tinha somente catorze anos quando a guerra começou. Ele não havia tido parte na morte de seu marido Harlan, ou no misterioso fim de seus outros dois filhos, Edmund e Osric. Se poderia apontar um culpado, era Duncan. E, por enquanto, Duncan Tully estava longe de seu alcance.

Ainda assim, quando Axel Tully finalmente foi ao encontro de Wylla Baratheon, a visão do rapaz foi como um soco desferido na boca de seu estômago. Vê-lo depois de todos aqueles anos era como ver um fantasma, e um lembrete doloroso do quão drasticamente as coisas haviam mudado para pior em tão pouco tempo.

Wylla era alta para uma mulher, como a maioria dos Baratheon; e, da última vez que havia visto Axel, ele ainda parecia um adolescente desajeitado, bem mais baixo e magro do que ela. Agora, ele havia se tornado um rapaz de estatura elevada, esguio, elegante e belo. Odiava ter que admitir isto, sobretudo com a semelhança que ele inegavelmente carregava com Duncan. Os rostos compridos, com traços esculpidos e ligeiramente angulosos, maçãs do rosto altas, olhos azuis e cabelos vermelhos.

Harlan, Duncan, Celia e Axel todos pareciam versões ligeiramente diferentes um do outro, e era doloroso ter de conciliar os traços de seu finado marido, a quem ela havia amado de todo o coração, com o restante de sua família disfuncional. Se parasse para pensar, quando mais jovem, Harlan era assustadoramente parecido com a versão crescida de Axel, o que tornou ainda pior e mais irônico tê-lo novamente à sua frente.

—Irmã— Axel sorriu para ela, apesar da expressão dura no rosto de Wylla— Faz muito tempo.

Ela se lembrava da mania que Axel costumava ter de chamá-la de “irmã” quando era mais jovem. Quando Wylla havia se casado com Harlan, onze anos antes, e ido morar em Correrio, o menino tinha no máximo oito anos, e não conseguia conciliar muito bem em sua cabeça como chamar a nova esposa do irmão mais velho. Ela havia achado adorável, na época; agora soava estranho, quase zombeteiro.

—Lorde Tully— ela respondeu de modo frio, deliberadamente evitando sorrir— Sim, muitos anos se passaram. E muito mudou nesse tempo.

Estavam na biblioteca, onde Wylla costumava passar grande parte de seus dias. Àquela hora da tarde, a única outra pessoa que costumava ficar lá era Nyssa Blackfyre, de quem Wylla não desgostava, e que raramente costumava incomodá-la. Por mais que já estivesse esperando uma eventual aparição de Axel ali, mais cedo ou mais tarde, não deixou de ser uma supresa desagradável. Em retrospecto, Wylla estava tendo muitas intrusões à sua costumeira paz e surpresas desagradáveis nos últimos dias.

—Eu não suponho que você tenha voltado para Correrrio desde que eu me fui…— Axel começou.

—Eu gostaria de ser avisada se por acaso eu estiver começando a parecer uma pessoa que detém privilégios de passeios e de visitar familiares, não há nada que eu odeie mais que dissimular minha verdadeira situação— Wylla cortou.

O sorriso brilhante que Axel parecia corajosamente sustentar desde que entrou na biblioteca vacilou por um segundo, mas ele logo voltou a exibí-lo. Wylla percebeu que ele ainda era teimoso, e tinha pouca noção de perigo, como quando era criança. E que continuava a sorrir para esconder seu desconforto.

—…mas, quando cheguei em casa, fiquei surpreso por não encontrá-la lá— ele continuou, como se não tivesse ouvido a resposta mordaz de Wylla— Celia me contou que você não volta desde que Duncan dobrou o joelho.

A menção ao nome de Duncan quase fez Wylla estremecer, mas ela sustentou a mesma expressão fria e indiferente, e respondeu:

—Bem, quem diria que dobrar o joelho poderia gerar efeitos desagradáveis, não é mesmo? Engraçado que nenhum foi para ele, apenas para os outros. Ou vai me dizer que a viagem prolongada foi por livre e espontânea vontade, Axel?

O rapaz finalmente desviou o olhar, e o sorriso pareceu se desfazer em um franzir de testa perturbado. Aquela expressão era nova, Wylla nunca havia visto Axel levando algo tão a sério antes.

—Sabe, independente dos motivos que me levaram a viajar por tantos anos… estar fora de casa trás uma certa clareza. Ouvir os boatos das visões de outras pessoas sobre a situação também— ele respondeu.

—Precisou disso tudo para perceber o verdadeiro caráter da sua família?— Wylla deu um passo em direção ao rapaz, a expressão ainda perfeitamente indiferente, mas a voz cortante— Harlan ainda não havia esfriado em seu caixão, e Duncan já estava planejando mandar os meus filhos junto. Eu nem sei se Rohanne está bem. Você acha necessária uma viagem de autodescoberta para finalmente perceber o ninho de cobras do qual você veio, Axel? Eu nunca tive esse privilégio, e acabei descobrindo da maneira mais difícil.

Axel não recuou, mas desviou o olhar. Wylla sentia falta da época em que ele ainda era uma cabeça menor, e ela poderia ralhar com ele por estar fazendo birra, ou sujando as almofadas com as botas cheias de lama. Aquela inversão da dinâmica de poder era desconcertante; não saber o que ele queria, ou como reagiria, ainda mais. Wylla gostaria de sentir pena daqueles olhos azuis e tristes, e daquela expressão de filhote que havia acabado de receber um pontapé. Mas toda sua misericórdia, toda sua capacidade de sentir qualquer coisa além de fúria, havia sido enterrada junto com seus filhos.

—Wylla… eu estou ciente do que meu irmão fez com você, e do tanto que ele foi injusto. Eu gostaria de redimir o nome da minha família, ao menos o máximo que eu puder, e finalmente fazer a coisa certa— Axel disse, a voz baixa, um pouco nervosa— Rohanne está em Correrrio. Eu gostaria que você e ela estivessem reunidas novamente, e, sendo amigo da Coroa, acho que posso conseguir esse favor.

Aquilo pegou Wylla totalmente fora de guarda, e ela deu um passo para trás, desorientada. Toda sua pose de frieza e indiferença se desfez naquele exato segundo, e ela se viu obrigada a se apoiar em uma das estantes para não desfalecer.

—Rohanne… você viu minha filha? Ela está bem?— ela perguntou, apenas então percebendo o tanto sua própria voz soava quebrada.

Axel sorriu, e assentiu.

—Está grande e saudável. Celia disse que ela tem uma belíssima voz para cantar, mas o que ela gosta de fazer mesmo é nadar. Eu a vi no rio, e ela parece metade peixe... como o pai. Harlan também era um excelente nadador, você sabe— ele respondeu.

Aquilo era demais para Wylla processar imediatamente. Conseguiu retomar o mínimo de sua habitual compostura, e formar um único pensamento racional: como Axel iria fazer isso?

—Como…? Como você planeja me levar pra Correrrio, Axel? Os Blackfyre não vão me deixar sair tão fácil, eu sou mais valiosa para eles aqui— ela finalmente conseguiu articular.

Axel respirou fundo. Wylla ainda achava estranho vê-lo lidando com emoções mais sérias e adultas, como nervosismo e apreensão; ainda mantinha na cabeça a imagem da criança completamente destemida e enérgica que ele costumava ser.

—Eu estou noivo de Nyssa Blackfyre. Não vai fazer muita diferença te manter aqui ou em Correrrio, quando certamente planejam ocupar o castelo após o casamento— Axel explicou, e Wylla teve que fazer seu melhor para esconder o próprio choque— Admito que eu não entendia muito bem o poder de alianças por casamento até agora, irmã. Eles vão nos obrigar a abrir as portas da nossa casa para soldados armados com um sorriso no rosto, e tudo ainda parece uma grande honra para nós. Irônico, não acha?

Wylla não conseguia acreditar. Axel estava certo, Correrrio muito certamente seria ocupada após o casamento. “Para proteger a Princesa”, supostamente. Mas havia algo ainda mais errado nessa história toda. Axel era um terceiro filho, e Duncan era viúvo. Faria muito mais sentido casar Nyssa Blackfyre com o Lorde de Correrrio, não com seu irmão mais jovem. Alguma manobra implícita nas entrelinhas estava se desenrolando, e Wylla tinha a sensação de que não seria nada positiva para Duncan.

—Sim, é irônico— ela acabou concordando— Fizeram algo semelhante no Vale, quando Erock Arryn se casou com a mãe da sua noiva. O Rei pode ser um grande guerreiro, mas a Rainha entende que as maiores batalhas são ganhas sem derramar uma única gota de sangue.

—Eu não diria isso. Parece cruel usar a própria irmã e a sobrinha para selar alianças. De uma forma ou de outra, sempre haverá sangue derramado— Axel murmurou

—É a vida de uma Lady. Desde meninas, somos ensinadas que esse é nosso destino: nos casar pelo bem da família. E Nyssa Blackfyre deve estar feliz por ser você o marido, não Duncan. Por mais atípico que isso seja, politicamente falando— Wylla respondeu.

Axel pareceu um pouco perturbado com esse comentário, e Wylla percebeu que ele também estava se perguntando o que os Blackfyre planejavam. E o que ele não estava conseguindo enxergar.

— Wylla, sobre isso… eu gostaria de saber se posso contar com você. Se eu conseguir te levar de volta para casa, isto é— ele perguntou, por fim— Quando eu fui embora, as coisas estavam um pouco… estranhas. Agora, com Nyssa e as forças Blackfyre em Correrrio, eu imagino que tudo vai ficar ainda mais confuso, e eu não sei se vou poder proteger minha esposa, ou Rohanne, ou você, sozinho…

A voz dele soava frágil, e um pouco assustada. Wylla se perguntou o que havia acontecido em Correrrio enquanto ela não estava. Se perguntou o que finalmente teria criado temor no coração de Axel Tully.

—Axel, se você me levar de volta para a minha filha, eu vou ser grata. Muito grata. Mas, caso ainda não tenha percebido, eu não passo de uma refém— Wylla falou, a voz saindo um pouco mais suave do que antes— Eu não sei o que posso fazer na minha posição, mas eu não tenho nenhum rancor contra você, ou contra Nyssa Blackfyre. Não tenho motivo para prejudicá-los.

—Eu sei disso, por isso vim falar com você— Axel disse, e hesitou por um segundo antes de continuar— Wylla, tantos anos longe me fizeram perceber que Duncan e Celia nem sempre foram honestos comigo. Mas você sempre foi. Sempre me contava a verdade, mesmo que eu fosse jovem demais, ou que ela doesse. Acho que eu preciso de sinceridade brutal, e você entende como as coisas podem ficar embaralhadas em Correrrio.

—Sim, eu entendo muito bem— Wylla respondeu, e respirou fundo— Axel… você não precisa se preocupar nesse sentido. Não vou mentir para você, já saber que eu sempre falo até mais do que deveria.

Axel riu, e um pouco da tensão se dispersou.

—Sim, eu sei. Celia ficava horrorizada com alguns de seus comentários— ele disse.

Wylla não riu, mas seus lábios se curvaram em um minúsculo sorrisinho.

—Se depender de mim, sua irmã vai continuar horrorizada com cada palavra que sair da minha boca— ela prometeu.

Wylla ainda estava pensando naquela conversa no silêncio do seu quarto. Enquanto soltava seu cabelo do complexo penteado com as próprias mãos— porque odiava a nuvem de criadas que sempre pareciam estar ao seu redor apenas para vigiá-la— e desfazia os nós e colchetes intricados de suas anáguas e botas, ela pensou em Harlan.

Seu falecido marido não havia entrado na sua vida como uma união por amor, pelo contrário; como muitas outras mulheres, ela havia sido a noiva de um casamento arranjado. Mas Harlan era gentil, e constante, e se provou alguém que conseguiu despertar no seu coração um amor do qual ela sequer se pensava capaz. Quando era mais jovem, Wylla jamais teria imaginado ser feliz com um marido e filhos, mas era exatamente isso o que havia acontecido. Contra todas as chances, ela havia construído sua própria felicidade, e havia lutado com unhas e dentes para mantê-la.

Ela lutava contra a insônia desde que Harlan havia se ido, e o lugar ao seu lado na cama parecia um vazio frio e doloroso. Aquela noite não foi diferente. Wylla encarou o teto por horas, pensando na vida perfeita que havia sido arrancada dela. Aquele era seu ritual de todas as noites, acalentar o fogo de sua ira como costumava acalentar os seus filhos, os alimentando com as próprias forças de seu ser. Talvez aquele fosse o último gesto de ternura do qual ela era capaz, o último resquício de devoção e carinho que restava em sua alma, e era o que a mantinha viva naquele castelo solitário e traiçoeiro.

Quando Wylla finalmente pegou no sono, ela sonhou com Harlan. Poderia muito bem ser uma lembrança, mas algo parecia estranho. Ambos estavam no rio, na parte mais calma que passava perto dos fundos do castelo, onde costumavam mergulhar. Onde Harlan havia ensinado Osric e Edmund a nadar.

“Um verdadeiro Tully sempre é metade peixe”— a voz enérgica e um pouco alta demais de Harlan exclamava, enquanto ele segurava as crianças, uma debaixo de cada braço, boiando na água— “Não é verdade, meu amor?”

Wylla ria, e concordava com a cabeça.

“Não esqueça de que eles também são Baratheon, meu querido. E, pela cara dele, Osric está prestes a te dar um coice”

Wylla e Harlan não perceberam na época, mas tinham tido tão pouco tempo. Não tiveram o suficiente sequer para ensinar Rohanne a nadar. Ela era jovem demais para isso quando Harlan se foi, e Wylla sempre tinha sonhos nos quais ela era arrancada de seus braços pela correnteza e se afogava.

Talvez por isso ela estivesse sonhando com o rio, e com seu marido, naquela noite. Ela estava na parte rasa com Harlan, a água chegando até a sua cintura, a correnteza dócil do rio correndo como prata líquida ao seu redor. No início, eles estavam sozinhos, e Harlan estava um pouco à sua frente, começando a nadar para o fundo.

“Você não vem?”— a voz dele sempre havia sido um pouco estridente, um contraste com a voz de Wylla, que era baixa, e indecifrável. Harlan era um livro aberto, e era incapaz de dissimular coisa alguma sequer com seu jeito de falar.

“Está frio”— Wylla se pegou reclamando, mesmo que estivesse acostumada às baixas temperaturas. Em verdade, Correrrio tinha um clima menos rigoroso que Ponta Tempestade, onde havia crescido, mas aquilo não passava de uma desculpa esfarrapada— “Me recuso a entrar, Milorde. Você vai ter que me obrigar”

Mesmo que estivesse brincando, o tom de Wylla carregava uma pontada cortante de desafio. Mas isso era algo que Harlan adorava a respeito dela, ele mesmo havia admitido diversas vezes. No terceiro mês de casamento, após duas ou três taças de vinho, ele havia lhe confidenciado que soube que se apaixonaria por ela na noite de núpcias, quando, ao ver sua hesitação em tocá-la, Wylla havia lhe perguntando se ele estava esperando por um convite formal. Talvez esse também tenha sido o momento em que ela soube que se apaixonaria por ele, pois, ao invés da reação desconsertada ou humilhada que outros homens teriam, ele havia simplesmente gargalhado alto, e finalmente a beijado.

O Harlan do sonho abriu um sorriso enorme e animado, e deu meia-volta, a pegando nos braços sem nenhuma dificuldade. Mesmo fora d’água, ele costumava ser supreendentemente forte para sua composição corporal. Os Tully tendiam às estaturas mais altas, porém eram esguios, com figuras harmônicas, mas não necessariamente imponentes. Mas Harlan era um guerreiro tão temível quanto o mais robusto dos Baratheon, apesar da pouca disposição em usar de sua força bruta. Ele apertou Wylla contra si, e então mergulhou, submergindo ambos na água gelada.

Foi nesse momento que o sonho mudou completamente. Se antes Wylla se sentia feliz e segura nos braços de Harlan, subitamente ela percebeu que estava sozinha, e que o rio era bem mais fundo do que antecipava. A água turva e esverdeada se estendia por todas as direções ao seu redor, e ela percebeu que, se não começasse a nadar, iria se afogar.

Enquanto lutava para voltar à superfície, batendo os braços e as pernas com o máximo de força que possuía, ela viu pelo canto do olho um vulto passando bem ao seu lado. Um vulto pálido, e afiado, e ela teve a terrível sensação de que aquela figura lhe era familiar até demais.

Ela começou a nadar com ainda mais afinco, os músculos de seus braços e pernas queimando com o esforço. Seus pulmões pareciam prestes a explodir, o seu coração, a escapar pela sua boca. Mas de nada seu empenho em escapar adiantou, logo ela sentiu uma mão fria e ossuda se fechando ao redor de seu tornozelo, e a puxando para baixo.

A última coisa que Wylla viu antes de acordar trêmula em sua cama banhada de suor foram os olhos extremamente pálidos de uma velha amiga morta. Mas, conhecendo Vhaella Targaryen, Wylla Tully sabia que, enquanto ela assombrasse os seus sonhos, a Princesa jamais estaria verdadeiramente morta.

Wylla se assentou na cama, chutando os lençóis para longe e tentando controlar sua respiração descompassada. Ver Vhaella e seu sorriso branco e cruel novamente fez todos os acontecimentos estranhos dos últimos dias finalmente se encadearem em sua cabeça. A chegada repentina de Theron Lannister à Corte, e o fato de Elysia Lannister ter surgido misteriosamente na biblioteca para conversar com Wylla dois dias antes. Palavras que não pareceram ter sentido na hora, mas que agora tinham.

“Lady Tully”— Elysia havia cumprimentado com seu costumeiro sorriso agradável, se aproximando de Wylla conforme ela analisava os conteúdos de uma prateleira— “Pode alcançar aquele livro para mim, por favor?”

O livro em questão era um volume de encadernação escura a respeito da história do castelo de Pedra do Dragão. Estava na sétima estante contando de baixo para cima. Wylla de fato era mais alta que Elysia, mas a Lannister de forma alguma era uma mulher particularmente pequena. Wylla tinha a distinta impressão de que, se a outra quisesse, poderia facilmente alcançar o livro que desejava. Então havia outro motivo para aquela interação repentina, sobretudo quando todos sabiam que Wylla não gostava de ser incomodada; e que Elysia lia nos jardins, não na biblioteca.

“Certamente”— Wylla ergueu o braço e pegou o livro sem grandes dificuldades, o analisando por alguns segundos antes de entregá-lo para Elysia— “Eu nunca a tomei por uma pessoa que sucumbe à nostalgia, Lady Targaryen.”

Elysia inclinou a cabeça ligeiramente, e deu um sorriso reflexivo.

“Eu não sou. Pelo contrário, tento ser realista, e não me permitir delírios quanto à atual situação de viúvas de inimigos da Coroa. Mas o jogo pode começar a virar para pessoas como nós duas, Lady Tully”— ela comentou, o tom completamente despretensioso, mas um brilho inteligente e cheio de significados ocultos em seus olhos terrivelmente escuros— “Se eu fosse a senhora, começaria a ler sobre Correrrio. Talvez o dia de ver sua casa novamente não esteja tão distante quanto imagina”

Wylla franziu o cenho, pronta para entregar uma resposta mordaz, mas, ineditamente, se pegando sem reação.

“Eu pensei que a senhora tentasse não se permitir delírios, Lady Targaryen”— Wylla replicou— “Ainda assim está sugerindo coisas fantásticas demais para serem realidade”

Elysia deu de ombros, e começou a se afastar.

“Talvez. Talvez não. Quem avisa amigo é, Lady Tully… e talvez amigas possam se ajudar, quando chegar a hora”— ela disse.

Com um último sorriso agradável, Elysia Lannister se afastou, seu passos suaves ecoando, e o livro sobre Pedra do Dragão quase perdido entre as mangas compridas do seu vestido. Os guardas, posicionados ao lado das portas da biblioteca, a fecharam atrás dela, sem dar sinal algum que haviam prestado atenção em uma conversa que certamente aparentou completamente inócua a um observador neutro.

E agora a decisão repentina de Axel de levá-la de volta para Correrrio. Exatamente como o aviso críptico de Elysia havia sugerido três dias antes. Wylla se perguntava se as raízes de influência que Lady Lannister estava criando na Corte se estendiam até a cabeça influenciável do jovem Axel. Ou talvez houvesse uma outra pessoa por trás daquelas coincidências, e Elysia estivesse lutando contra vivos e mortos com seus atos de desespero. De qualquer maneira, Wylla sabia que estava se metendo em uma situação complicada, e da qual não tinha muita escapatória. Ainda assim, saber que teria a possibilidade de ver sua filha novamente fazia tudo valer a pena.

Wylla sabia que Correrrio seria um cativeiro  com um nome diferente, e não estava nenhum pouco feliz com a perspectiva de voltar a conviver com Duncan. Mas ela seria capaz de tolerar qualquer adversidade se pudesse ver Rohanne novamente, se pudesse proteger sua única filha que havia lhe restado. Em verdade, estar em Correrrio novamente mudava tudo, e poderia ser a oportunidade perfeita para virar o jogo ao seu favor.

Ela não conseguiu pregar o olho pelo restante da noite, e aproveitou a insônia para começar a se arrumar antes mesmo do nascer do sol. Suas roupas eram sempre pretas, um luto eterno por Harlan e seus meninos; o único gesto de desafio que poderia ostentar abertamente na Fortaleza Vermelha. Naquele dia em específico, além do negro do luto, também decidiu colocar um véu cobrindo seus cabelos escuros, e se surpreendeu com o quanto o adorno a fez parecer uma noiva ao invés de uma viúva. Talvez fosse um presságio ominoso, mas ela não mudou as roupas ou tirou o véu.

Quando as criadas chegaram para arrumá-la, pouco após o nascer do sol, Wylla já estava completamente vestida. Aproveitou a oportunidade para caminhar pelos jardins antes que os outros habitantes do castelo acordassem e pudessem perturbar sua paz.

A notícia sobre o noivado de Nyssa Blackfyre e Axel Tully chegou até ela quando não encontrou a Princesa em seu lugar habitual da biblioteca da Fortaleza. Nyssa chegou bem depois do meio-dia, e entrou silenciosamente. Estava impecavelmente arrumada, usando um vestido vermelho e negro muito diferente de seus habituais tons pastéis. O cabelo castanho-claro estava preso em tranças complexas, e joias pesadas adornavam seu pescoço pálido e os dedos frágeis de suas mãos. Wylla sempre achou Nyssa uma jovem muito bonita, mas, naquelas roupas, uma qualidade majestosa, intimidante, que ela nunca havia evocado antes, emergira inesperadamente em seus traços delicados.

—Boa tarde, Lady Tully— Nyssa cumprimentou. Seu sorriso doce e tímido continuava o mesmo, apesar do visual diferente— Também está tentando se esconder?

Wylla encarou Nyssa, se levantou, e curvou ligeiramente a cabeça, em sinal de respeito. Ela era a única Blackfyre para qual Wylla não se importava muito de fazer uma reverência, mas, naquele dia, ela quase se pegou relutando em oferecer um gesto que para as duas já era tão corriqueiro. Não poderia se considerar próxima da Princesa, mas estar no mesmo ambiente que ela por muitas horas quase todos os dias havia lhe dado um certo costume com sua presença.

—Boa tarde, Alteza— Wylla respondeu— Não tenho certeza se sei do que a senhorita está falando. Mas, se estiver mesmo tentando passar desapercebida, garanto que não está fazendo um bom trabalho.

Nyssa corou violentamente, e a atmosfera severa ao seu redor imediatamente se desfez. Wylla gostava de fazê-la corar, embora, admitidamente, esta não fosse uma tarefa muito difícil.

—É um vestido exagerado, e realmente não está me ajudando muito— Nyssa admitiu.

—Talvez seja um pouco extravagante, mas a senhorita é bonita o suficiente para fazê-lo funcionar— Wylla respondeu— Por que está fugindo?

Nyssa corou ainda mais, e arregalou os olhos.

—Pelos Sete, eu achei que você estivesse sabendo, Lady Tully! Meu noivado vai ser anunciado hoje à noite. Não recebeu o convite para o banquete?— ela perguntou.

Wylla deu de ombros.

—Devem ter entregado no meu quarto, mas eu não volto lá desde de manhã— ela respondeu— Devo parabenizá-la? Ou está se escondendo porque odeia seu noivo?

Nyssa pareceu um pouco desconsertada, mas acabou soltando uma risada sem graça.

—Pelos Sete, claro que não. Afinal, ele é um Tully, e eu em geral gosto de vocês Tullys— ela respondeu— Não sabia mesmo que Axel e eu vamos nos casar?

Wylla não fingiu choque, mas tampouco deu indícios de já saber das notícias.

—Ele é um bom rapaz— Wylla concordou— Um pouco barulhento, mas, Vossa Alteza sendo silenciosa, talvez acabem formando um bom casal.

Nyssa se assentou na poltrona de frente para a que Wylla ocupava antes, e a própria Wylla voltou a se assentar.

—Não é Axel o motivo de eu estar me escondendo— Nyssa admitiu— Eu só… quero ficar um pouco sozinha. Tudo está acontecendo rápido demais, e eu estou um pouco nervosa.

—Eu posso sair para te dar um pouco de paz— Wylla sugeriu, mas Nyssa imediatamente negou com a cabeça.

—Não… fique. A biblioteca não é a mesma sem você lendo perto de mim. E eu gostaria de fingir que este é apenas mais um dia comum por pelo menos alguns minutos— Nyssa pediu.

Wylla curvou a cabeça novamente, e teve de conter um sorriso.

—Como Vossa Alteza desejar.

Havia uma certa dose de ironia, mas também de conforto, em saber que a Princesa Blackfyre estava tão perdida e impotente naquela situação quando Wylla. Uma viúva ou uma noiva, de pouco importava. Ambas usariam um véu que não haviam escolhido ostentar, e tentariam continuar fingindo que era apenas mais um dia comum, apesar das tramas progressivamente mais complexas nas quais acabavam se enredando.


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Notas finais do capítulo

Quem é vivo sempre aparece, e aparentemente todos decidiram aparecer no POV da Wylla kkkkk! Só porque a coitada não é muito fã de interagir todos inventaram de vir conversar com ela. Espero que tenham gostado, até o próximo ♥



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