A Reconquista escrita por Venus


Capítulo 4
III- Um Raio do Sol de Dorne (Alysanne)


Notas iniciais do capítulo

Hello! Mudando um pouco de cenário, hoje o POV nos leva para longe de Porto Real. Boa leitura :)



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Alysanne->

 

Os topos das colinas dornesas que abrigavam a fortaleza de Tombastela eram habitualmente lugares rochosos e de clima rigoroso. Mesmo no verão, durante a noite sopravam ventos frios, e as geadas matinais eram castigantes durante o inverno.

Ainda assim, Alysanne Dayne não estava preparada para o extremo congelante do Norte.

Uma corrente de ar forte, carregando minúsculos flocos de neve, soprava de modo ininterrupto conforme o séquito da Princesa Myriah Martell avançava. Alysanne cavalgava ao lado da Princesa, suportando bravamente o vento gelado e as leves queimaduras que começavam a desenhar círculos cor de rosa em suas bochechas. Ela poderia pedir para ser levada em uma carruagem, mas Myriah preferia cavalgar, e ela se recusava a sair do lado de sua senhora.

—Aly!— a voz doce e ligeiramente aguda da Princesa se ergueu acima do rugido da ventania— Veja! Estamos quase chegando.

De fato, no horizonte de planícies nevadas e completamente desertas, a silhueta de um castelo pequeno, de pedra cinzenta, se desenhava.

—Este é Pontalto?— Alysanne perguntou, o olhar novamente se voltando para o rosto da Princesa após constatar a fortaleza.

Myriah assentiu, um sorriso animado se desenhando em seus lábios. Alysanne amava aquele sorriso. Apenas sua Princesa era capaz de iluminar todo um ambiente com uma mera risada, e possuir um brilho tão vívido no castanho de seus olhos.

—Sim!— Myriah confirmou— É onde vamos esperar o emissário do Rei Tobin. Lorde Whitehill já foi avisado de nossa chegada.

Alysanne aquiesceu com um sinal de cabeça, e conteve um resmungo. Ela compreendia o motivo de terem de ter viajado Norte adentro: as regiões mais ao Sul já havia sido todas tomadas pelas frotas Blackfyre. Regatos havia caído para o Almirante bastardo algumas semanas antes, Porto Branco estava dominado há meses. Pontalto era um dos últimos redutos de absoluta e inquestionável segurança, próximo demais de Winterfell e Forte do Terror para ser tomado de supresa. Portanto, uma excelente localização para as negociações diplomáticas que buscavam com aquele trabalhoso encontro. Ainda assim, ela desconfiava dos Bolton, e isso se estendia a todos os seus vassalos, incluindo os Whitehill. Poderia se sentir confortável negociando com um Stark, mas, com um Bolton e seus servos, a história era bem diferente.

A pequena comitiva da Princesa foi recebida por uma comitiva maior assim que chegou aos portões. Alysanne imediatamente avistou os três filhos de Lorde Whitehill encabeçando o grupo. Se destacavam por suas vestimentas, mais finas que as dos outros homens, e também nos tons de branco e roxo de sua Casa. Como mandava a cortesia, os anfitriões foram os primeiros a se dirigir à Princesa.

O homem que ajudou Myriah a descer do cavalo deveria ser o filho mais velho, Lewis. Ele era grande, e forte, e parecia bastante sério. Todos os três irmãos tinham cabelos loiro-escuros e olhos claros, além de estaturas aproximadas, por volta de um metro e oitenta. Mas suas expressões e trejeitos os tornavam drasticamente diferentes entre si.

Um dos irmãos, provavelmente o bastardo legitimado, Evan, ficou um pouco para trás, a postura inquieta e desconfortável. Mesmo que os dorneses fossem notoriamente tolerantes com filhos ilegítimos, ele pareceu hesitante, de modo que Alysanne assumiu que o homem que se adiantou até ela era o filho legítimo caçula. Wylan, ela se lembrou do nome a tempo. O nome do rapaz era Wylan.

Alysanne era mais baixa do que Myriah, mas era mais forte e mais pesada. Wylan pareceu ter tanta facilidade em levantá-la do cavalo e colocá-la no chão quanto seu irmão mais velho tivera em levantar a esbelta Princesa. Wylan era mais esguio que Lewis, mas Alysanne pôde sentir a força e a segurança em suas mãos. As mãos de um guerreiro. Não deveria se deixar enganar pelas aparências, ele poderia muito bem ser um homem tão perigoso quanto seu irmão mais velho.

Os olhos dele, porém, não tinham nada de duro, ou perigoso. Prateados e sorridentes, como o céu das Marcas de Dorne. Seus dentes eram brancos, o rosto tinha traços firmes, simétricos. Mandíbula quadrada, nariz reto, testa alta. Suas orelhas eram um pouco grandes, mas isso adicionava um certo charme, um ar de malandragem, à sua aparência.

—Lady Dayne— ele curvou a cabeça suavemente assim que deixou Alysanne no chão— É um prazer conhecê-la. Louvores a respeito de sua grande beleza chegaram ao Norte, e vejo que nenhum deles era falso.

Alysanne arqueou uma sobrancelha, um pouco supresa, mas longe de estar constrangida ou desarmada pelo comentário. Ela era, de fato, uma mulher bonita, e sabia disso. Estava acostumada com aquele tipo de galanteio, incluindo alguns bem mais descarados. Muitos comentavam sobre sua notável semelhança com sua tia-bisavó, Ashara Dayne, considerada uma das moças mais belas a terem vivido naquele continente, então era de se esperar que ela fosse atrair uma certa dose de atenção. Porém, olhando para Wylan, ela teve dificuldade em identificar se o comentário dele fora apenas uma constatação impessoal, frívola, ou um elogio genuíno, que demonstrava interesse. O rosto dele não denunciava nenhuma malícia, apenas curiosidade conforme ele deixava seus olhos absorverem os traços dela sem nenhuma vergonha ou constrangimento. Se Alysanne fosse um pouco mais lenta, teria hesitado no modo com que deveria responder àquela fala. Felizmente, não era, e sempre tinha uma resposta na ponta da língua.

—Rumores sobre os encantos pessoais de alguém atravessam o Norte bem mais rápido do que notícias sobre a guerra, então, Lorde Whitehill— ela replicou, sem desviar o olhar— Mas eu agradeço suas palavras gentis. Também é um prazer conhecê-lo.

Wylan, inesperadamente, soltou uma risada. Parecia despreocupado, informal, de um jeito que o destacava completamente da rigidez dos outros homens do Norte. Não havia uma pontada  sequer de pretensão, ou de compostura excessiva, em seus modos, apenas uma espontaneidade genuína e clara. Wylan ofereceu o braço para Alysanne, não como se fosse a coisa cortês a fazer, mas como se eles fossem velhos amigos. Ela aceitou, também tensionando uma postura despreocupada, embora uma certa parte dela desconfiasse de todo aquele carisma expansivo.

—Espero que a viagem até aqui não tenha sido tão ruim, Milady— ele comentou— É um caminho difícil e frio, mas eu gosto de acreditar que o Norte também tem muitas belezas. Como eu, por exemplo.

Alysanne quase riu com a tentativa de piada, mas acabou se segurando à tempo. Ainda não tinha certeza se queria deixá-lo tão confortável assim, ou se preferia que ele andasse em ovos perto dela.

—Foi uma viagem tão boa quanto poderia ser, Lorde Whitehill. E, mesmo se tivesse sido muito pior, eu teria suportado de bom grado para servir à minha Princesa— Alysanne se limitou a responder.

Wylan desviou o olhar de Alysanne, e o fixou em Myriah, alguns passos à frente, segurando o braço de Lewis.

—Ela é bonita, mas não tenho certeza se eu viajaria de Dorne até aqui por ela. Talvez por você, Lady Dayne, se você me pedisse com jeitinho— ele replicou, espirituoso— Mas suponho que as maiores loucuras da história tenham sido feitas por uma amante, então não tiro totalmente sua razão.

Alysanne parou de andar e o encarou, as sobrancelhas praticamente desaparecendo na linha de seus cabelos negros.

—Isso não é algo apropriado de se dizer, Whitehill. Eu e a Princesa não somos amantes. Mesmo se fôssemos, seria bastante sem noção da sua parte falar desse jeito— ela replicou, tentando disfarçar o choque em sua voz.

Ele riu, não parecendo nenhum pouco afetado pela reação dela.

—É o que dizem de mim. Eu realmente sou um grande sem noção— ele jogou as mãos no ar em sinal de rendição, a postura ainda não demonstrando a mínima quantidade de desconforto— Peço perdão se a ofendi, Milady. Me disseram que em Dorne esse tipo de coisa é comum, mas você está certa. Eu não deveria assumir.

—Não, não deveria— Alysanne respondeu, ainda o encarando com descrença— Uma pessoa menos tolerante poderia cancelar as negociações por muito menos.

—Felizmente, você parece ser uma pessoa tolerante, Milady— ele respondeu, sem um momento de hesitação sequer— Mas é bom saber que não estarei competindo com a Princesa por seus afetos, então. Prometo ser mais discreto daqui em diante, se é isso o que te agrada.

Alysanne teria respondido, se eles não tivessem chegado à porta da fortaleza bem naquele instante. Lewis e Myriah se viraram para eles, esperando que ambos os alcançassem.

—Lady Dayne. Irmão— Lewis saudou— O jantar será servido em breve. Vou mostrar os aposentos às damas, Wylan. Poderia avisar ao senhor nosso pai que nossos hóspedes já chegaram?

—Certamente— Wylan assentiu, e soltou o braço de Alysanne— Nos veremos em breve, Milady. Espero que não sinta muitas saudades de mim.

—Eu não irei— Alysanne garantiu— Mas obrigada pelos bons votos.

Wylan sorriu para ela, e então entrou na fortaleza, porém não sem antes lançar uma olhadela descarada para trás.

—Peço desculpas se meu irmão foi um pouco… atrevido, Milady. Não estamos acostumados com damas por essas partes desde que a guerra começou, quase todas fugiram para se abrigar em Forte do Terror— Lewis disse, provavelmente notando a estranha tensão entre eles.

Alysanne deu de ombros.

—Não foi grande incômodo, Sir, eu garanto. Já passei por situações bem piores, acabei aprendendo a me defender de algumas gracinhas inofensivas— ela respondeu.

Myriah riu, embora Lewis ainda parecesse sério, talvez um pouco desconfortável.

—Isso é bem verdade, Sir. Eu juro para o senhor que Alysanne seria capaz de acabar com todos os exércitos dos Blackfyre com sua língua afiada— ela brincou.

Lewis acabou sorrindo. Era impossível não acompanhar o sorriso de Myriah, havia algo de irresistível na refrescante ingenuidade de suas expressões.

—Bem, eu gostaria que Vossa Alteza estivesse sendo literal. Seria uma benção poder eliminar todos os nossos inimigos com a voz de uma única mulher— ele gracejou de volta.

—Bem, se alguém seria capaz do feito, é Alysanne— Myriah garantiu— Não é mesmo, Aly?

Alysanne ainda estava pensando nesse comentário durante o banho quente que tomou em seus aposentos. Sim, Myriah estava certa. Se havia uma criatura amuada e propensa a atacar ao menor movimento, era Alysanne. Se havia uma pessoa capaz de matar e destruir qualquer outra que usasse os brasões Blackfyre, era ela. Mas quem poderia culpá-la? Depois de tudo o que ela havia passado?

Depois do preço que tivera de pagar para proteger sua Princesa?

Sentindo a água fumegante escaldando sua pele, ela se lembrou do sol que brilhava sobre Lançasolar. Na maneira como iluminava os cabelos escuros de Myriah conforme as duas corriam pelo jardim, em como fazia tons de cobre desabrocharem em sua pele morena. Percebeu que não se arrependia de nada. Myriah estava segura, era isso o que importava. Ela continuaria a fazer o que tinha de fazer.

Uma batida em sua porta a tirou de seus pensamentos. Havia pedido para ficar sozinha, e dispensado todos os criados. Mas, pela cadência suave dos passos, poderia ser apenas uma pessoa, alguém que ela reconheceria até mesmo pelo som de sua mera respiração.

—Pode entrar, Myriah— Alysanne disse.

Myriah entrou. Já havia se trocado para o jantar, com um magnifico vestido marfim com detalhes em arminho e pérolas. Seu cabelo, contudo, ainda estava úmido, e solto pelas costas. Alysanne já sabia que Myriah queria que ela o penteasse e arrumasse, a Princesa adorava ser paparicada e enfeitada como uma boneca. E Alysanne não se importava, na verdade costumava gostar de ter cabelos tão compridos e sedosos para treinar seus penteados.

—Oi, Aly— Myriah sorriu para ela, se assentando em uma cadeira ao lado da banheira— Você sempre demorou horrores no banho. Desde criança. Ficava horas nas piscinas, também, até seus dedos enrugarem.

Alysanne deu de ombros, e sorriu de volta.

—É frio do lado de fora. Me falta coragem para sair— ela comentou, submergindo o tronco novamente.

—Errada você não está— a Princesa riu— Realmente está um gelo aqui fora. Vou ser obrigada a te apressar, então, ou vamos nos atrasar para o jantar.

Myriah se aproximou, e, pegando uma tina, a ajudou a enxaguar seus cabelos. Alysanne sempre havia achado um traço distinto, e adorável, como Myriah sempre estava disposta a ajudar, mesmo que a tarefa fosse muito abaixo de uma Princesa. Ela fazia tudo com alegria e simplicidade, e Alysanne nunca havia se sentido inferior a ela. Nunca havia se sentido uma serva, uma vassala, e sim uma amiga querida, uma parte da família. Talvez porque ambas as partes fossem verdade: os Dayne eram vassalos dos Martell, mas ela e Myriah eram tão próximas quanto duas pessoas poderiam ser. Não havia dinâmica de poder, sentimento de servidão, ali. Alysanne tinha certeza que tudo o que fazia pela sua Princesa, ela faria de volta, se precisasse. E aquela lealdade era uma certeza, um porto seguro na vida de ambas. Mesmo com toda a incerteza da guerra, e das circunstâncias atuais, era reconfortante saber que Myriah estava ao seu lado, e sempre estaria.

Elas se atrasaram alguns minutos para o jantar, mas ambas estavam tão bem vestidas, com penteados tão elegantes, que ninguém pareceu se importar.

—Vossa Alteza. Lady Dayne— quem as recebeu dessa vez foi um homem mais velho, provavelmente o líder da Casa, Lorde Edwin Whitehill— É um prazer recebê-las, e finalmente conhecê-las.

Ele tinha os mesmos olhos cinzentos dos filhos, tão comuns aos nortenhos. Mas os dele eram mais como os de Lewis, menos como os de Wylan. Sérios, e não espirituosos. Havia uma firmeza pétrea em seu rosto, traços largos e fortes. O cabelo era mais escuro do que o dos filhos, o tom mais profundo antes que dourado se confundisse com castanho, mas começava a se salpicar de fios brancos perto das têmporas. Assim como Lewis, tinha uma barba cheia e bem cuidada, ao estilo nortenho, diferente de Wylan e Evan, que mantinham apenas um leve sombreado por fazer na mandíbula.

—É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Lorde Whitehill! Mas, após tantas cartas, admito que já considero o senhor como um velho amigo— Myriah abriu um enorme sorriso, e um pouco da fria cortesia do contexto pareceu se desmanchar automaticamente.

Lorde Edwin sorriu de volta, embora de maneira mais contida.

—Vejo que meus filhos não mentiram, Alteza. A senhorita realmente é um raio do sol de Dorne— ele elogiou, ainda que mantendo seu tom formal— Por favor, assentem-se. Aceitem meu pão e meu sal, sejam minhas hóspedes protegidas. Amanhã trataremos de Blackfyres e assuntos desagradáveis, por agora, acho que as senhoritas merecem descanso após uma viagem tão longa.

—É muito gentil da sua parte, Lorde Edwin— Myriah disse, aceitando a cadeira que o homem puxou para ela.

Alysanne percebeu tarde demais que a única outra cadeira vazia na ampla mesa de jantar era longe demais de Myriah para seu gosto, entre Evan e Lewis. Conteve uma careta, mas aceitou a gentileza de Evan, que se prontificou a puxar a cadeira para ela.

—Obrigada— ela agradeceu com um aceno de cabeça, um pouco incerta se deveria chamá-lo de “Milorde”. Sabia que Lorde Edwin o havia reconhecido e o criado com os outros filhos, mas os nortenhos levavam nascimentos ilegítimos muito a sério, e ela não o queria ofender Lewis ou Wylan. Em Dorne, Evan seria tratado como qualquer outro dos filhos. Ali, ela ficava incerta de como as pessoas reagiriam.

—Não há de que, Milady— ele sorriu para ela.

Alysanne decidiu que ele parecia o mais fácil de lidar dos três irmãos. Não parecia tão enérgico, como Wylan, mas tampouco taciturno como Lewis. Tranquilo era uma palavra adequada para ele, alguém que parecia dançar conforme a música. Talvez sem o carisma do irmão caçula, ou a imponência do irmão mais velho, mas sem dúvidas agradável à própria maneira.

—Você foi criado aqui, certo, Evan?— ela decidiu chamá-lo pelo primeiro nome, e ele reagiu bem, sem demonstrar supresa ou ofensa— Conhece bem a região?

—Sim, Milady, cresci aqui— ele confirmou— Embora eu já tenha viajado até a Muralha, uma certa vez, nunca fui muito para o Sul, apenas até Winterfell. Só conheço bem os arredores de Pontalto e Forte do Terror.

Os olhos dele tinham a mais leve insinuação de verde, Alysanne reparou. Vestígios de uma mãe desconhecida e invisível, que deixara apenas aquela pequena marca no filho e fora tragada pela vida? Ou talvez os outros irmãos também tivessem alguma nuance de cor nos olhos, e ela não tivesse reparado. Ela juraria que havia visto uma matiz azulada nos olhos de Wylan, mais cedo. Talvez apenas Lewis tivesse os exatos mesmos olhos do pai, cinzentos e frios como blocos de gelo.

—Eu achava que também fosse costume por aqui criar um dos filhos com os filhos do suserano— ela comentou, como quem não quer nada, mas em realidade curiosa para desvendar aquela complexa dinâmica familiar— Nenhum de vocês cresceu em Forte do Terror?

Evan tomou um gole do próprio vinho, ainda parecendo tranquilo com a conversa e seu rumo.

—Wylan passou mais tempo em Forte do Terror do que aqui. Embora nosso pai nunca tenha oficialmente o mandado para lá, era efetivamente uma espécie de protegido de Lorde Bolton— ele explicou— Você também era protegida dos Martell, Milady?

Alysanne assentiu, embora a verdade fosse um pouco mais complicada.

—Mais ou menos como o seu irmão. Meus pais nunca me mandaram oficialmente para Lançasolar, mas acabou acontecendo, eu suponho— ela respondeu— Eu passava mais tempo em Jardins De Água, na verdade. É lá que as crianças ficam a maior parte do tempo, incluindo Myriah e seus irmãos. Foi uma infância mais tranquila do que teria sido em Tombastela, e eu sou grata por isso.

Alysanne não falou a verdade, que era feia demais para desnudar para um estranho. Que ela havia sido mandanda embora porque ninguém queria lidar com ela; que uma mãe alcoólatra, um pai frio, e um irmão que mal conseguia controlar sua própria raiva não compunham o ambiente adequado para uma jovem crescer.

A guerra havia trazido muitos problemas, sim, mas ao menos havia resolvido aquele. Quando ela finalmente havia sido obrigada a voltar para casa, e voltar pra casa era coisa que ela mais temeu por todos aqueles anos, encontrou a casa vazia. Pai e mãe enterrados, seu irmão, tão longe que ela nunca teria que se dar ao trabalho de descobrir se os anos o haviam mudado. Uma parte dela era grata por isso. A outra se ressentia, pois eles nunca haviam tido realmente uma chance de tentarem consertar um ao outro. A mão fria e impassível da morte, e a lâmina maldita e certeira dos Blackfyre, haviam tirado essa última chance deles.

Ela pensou em Rydan, seu irmão. A última vez que o havia visto, ele estava voltando para guerra. Essa lembrança lhe trouxe uma forte melancolia, que ela não esperava sentir. Ele a havia abraçado, e a chamado de irmãzinha, mesmo que não se vissem há anos. Ela havia sentido o peso do luto por tudo aquilo que nunca havia tido a oportunidade de ter, mesmo que ele estivesse vivo, e bem na sua frente. Ela mesma não era raivosa, e complicada, e instável? Como poderia condená-lo por ter esses traços, se eles pareciam ser passados pelo sangue, incluindo o que ela tinha nas veias? Talvez ela devesse ter voltado para casa antes, quando ainda tinha a oportunidade de consertar alguma coisa.

Ao menos Myriah e os Martell haviam sido sua família, certo? Ao menos ela tinha um lar, e pessoas que a amavam, e que chorariam sua perda, quando ela se fosse. Ela rezava por Rydan todas as noites, mesmo não sendo muito religiosa, pois sabia que ele não tinha ninguém. Não tinha certeza se conseguiria chorar se ele morresse, por isso esperava que ele ficasse vivo por tempo o suficiente. Até ela ter essa certeza.

—Tenho vontade de conhecer o Sul— Evan comentou, não deixando que o silêncio se estendesse por tempo demais— Talvez quando a guerra acabar.

Alysanne sorriu, se lembrando de casa. Das dunas de areia no horizonte, e as montanhas com vista para o oceano. Sim, ela também gostaria de voltar para o Sul. Não havia nascido para aquela imensidão vazia e branca dos vales nevados do Norte, e sim para o sol beijando sua pele e a brisa marítima bagunçando seus cabelos.

—Uma visita de qualquer aliado seria muito bem-vinda. Nós retribuiríamos a hospitalidade o melhor que pudermos— Alysanne respondeu educadamente.

Teve a impressão que Evan estava interessado em fazer mais perguntas sobre Dorne, e o Sul em geral, mas nesse momento a atenção de Alysanne foi completamente dispersada pela visão que se desenrolava do outro lado da mesa.

Wylan e Myriah conversavam animadamente, suas risadas altas chamando também a atenção de alguns outros integrantes da mesa. Alysanne odiava admitir, mas havia imaginado que os dois se dariam bem, extrovertidos e carismáticos como eram. E também porque Myriah não conseguiria enxergar uma gota de maldade em alguém mesmo que a pessoa estivesse marcada na testa.

Wylan percebeu que ela estava encarando, Myriah, não. Ele cruzou o olhar com o de Alysanne, e sorriu descaradamente, dando de ombros logo em seguida.

—Ah, o Wylan— Evan seguiu a direção do olhar de Alysanne, e então franziu os lábios— Ele é assim mesmo, Milady. Eu não levaria para o pessoal, se fosse você.

Alysanne desviou o olhar de Myriah e Wylan, e voltou a fixá-lo em Evan.

—Claro que não. Por que eu levaria para o pessoal?— ela desconversou— Não há nada mais natural que uma dama e um cavalheiro apreciarem a companhia um do outro.

Evan não pareceu cair em sua desculpa.

—Bem, ele pareceu estar interessado por você mais cedo, e agora está caindo nas graças da Princesa. Eu também sei como é desagradável sempre estar à sombra de alguém— ele disse.

Alysanne gostaria de ter uma resposta afiada e imediata para esse comentário, mas se pegou ineditamente sem palavras. Havia insinuações demais naquela frase, nem todas verdadeiras.

Mas nem todas tão falsas quanto ela gostaria.

—Evan, eu recomendaria fortemente não fazer elocubrações sobre minha relação com Myriah. Eu não espero que um homem entenda, e nunca esperaria, mas nós não temos esse tipo de competição uma com a outra— Alysanne disse, o tom completamente neutro e frio— Além disso, eu não tenho interesse em casar-me com seu irmão. Há propostas o suficiente pela minha mão, e eu não preciso de mais pretendentes.

Evan, inesperadamente, riu. A risada dele era parecida com a de Wylan, mas com um pequeno tom a mais de ironia.

—Bem, Milady, se está tentando evitar mais pretendentes, eu garanto que está fazendo um péssimo trabalho— ele disse, a voz um pouco mais baixa e suave.

Alysanne decidiu que aquele discretíssimo flerte era melhor do que a tentativa prévia de tentar galgar informações sobre ela e Myriah. Ou tentar se identificar com ela. Deveria ser mais discreta, no futuro, se planejava manter aquelas negociações o mais impessoais o possível.

—Não vou dizer que estou realmente triste com isso, Evan. Existem suplícios muito piores que alguns nortenhos bem-apessoados querendo minha mão— ela replicou.

Evan sorriu, e ela soube naquele instante que, se quisesse, poderia tê-lo. Como aliado, ou como achasse mais conveniente. Ainda não sabia bem ao certo do que precisava, nem mesmo o que desejava.

Alysanne Dayne havia saído de Dorne com a expectativa de negócios frios e imparciais com homens igualmente frios e imparciais. Percebeu que havia julgado mal os nortenhos. Ali havia tanta intriga, manipulação e entrelinhas quanto em Porto Real. Apenas de uma maneira um pouco mais discreta e rígida, ela supunha.

Teria que dançar conforme a música, e todos sabiam que Lady Alysanne Dayne era uma excelente dançarina. O que não sabiam é que ela odiava dançar, e odiava o tipo de música que a nobreza tocava. Mas isso não a impediria de sempre tentar ser a melhor, por mais desagradável que isso se provasse ser.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, vejo vocês nos comentários ♥



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