Guerra do Caos: No Limiar do Desespero escrita por Rayon Jackson


Capítulo 3
Registro de Guerra N.2




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Ter sido escoltado pelos seguranças, recolhido as minhas coisas, e ser levado para fora do prédio onde trabalhei por 5 anos tinha sido a minha maior humilhação. Nem quando eu era zoado na escola tinha me dado tanta vergonha como aquela situação. A pior parte foi ter que encarar Agatha, que trabalha na R.H, enquanto ela arrumava os papéis da demissão. E agora, eu não sabia o que fazer. O garfo que eu segurava era obrigado por mim a passear pelo meu almoço, misturando o arroz com feijão e macarrão sem motivo algum. Provavelmente já tinha esfriado, pois já tinha se passado meia hora desde que entregaram na minha mesa. As pessoas ao meu redor comiam, pagavam suas contas ou olhavam o cardápio, e vez por outra a garçonete passava para ver se eu precisava de algo. Ela poderia me servir um emprego quentinho, que era o que precisava naquele momento. Abandonei a ideia de almoçar e deixei o garfo descansando, pegando meu celular logo em seguida. Eu tinha que falar com alguém, ou iria pirar. Assim que desbloqueio a tela, vejo a notificação de mensagem, e abrindo o aplicativo, meus olhos capturam o nome Agatha com um coração vermelho do lado.  

Entro na conversa, e depois de ler q frase ‘vc está bem?’ Respondo com um ‘mais ou menos'. Alguns segundos passam e o status dela muda de ‘offline' para ‘online', logo ela digitando. ‘Onde vc tá?’ é a próxima frase que leio. ‘fingindo que tô almoçando, no mesmo restaurante de sempre'. ‘tô indo aí, espera', e então, novamente offline. Enquanto espero ela, decido por fim ligar para a pessoa que mais confiava na vida: Yuri. Ele era o meu melhor amigo, desde nossas infâncias, e tínhamos passado todas as aventuras da vida juntos. Por isso, nossa ligação era de irmãos. E apesar de agora estar casado e com uma filha, nossa ligação não tinha quebrado. 

O telefone toca 5 vezes antes de atender. 

— Alô, quem é? — a voz era de uma menina de cinco anos. 

— Oi princesa, é o tio Andy. 

— Oi tio Andy! Como o senhor está? 

— Estou bem, querida. 

— Tô com saudades. Quando é que o senhor vem me ver? Quero mostrar as novas bonecas que o papai me deu. 

— Eu aposto que elas são lindas. Eu vou... — no fundo, ouço um ‘tá falando com quem mocinha?’ ‘com o Tio Andy!’ ela responde, e com um barulho soando pelo fone, a voz adulta sai. 

— Oi cunhado! 

— E aí. Cadê o Yuri, já chegou para o almoço?  

— Não, hoje ele vai almoçar por lá mesmo, tá com muito trabalho. Aconteceu alguma coisa? 

— Annn, nada demais. 

— Eu não conheço você tanto tempo como o Yuri, mas conheço o suficiente pra saber só pela sua voz que alguma coisa está errada. Por que você não vem aqui mais tarde? A gente pode conversar. 

— É, pode ser. Vou ver e te aviso. 

— Okay, o Yuri vai chegar umas 19hras. Avisa se vier. 

— Beleza. Valeu cunhada. 

Com a despedida, ela desliga o telefone e eu tiro o meu do ouvido. Se fosse os dois, eu teria dito o problema, mas só com ela... não me sentia à vontade para contar como me sentia. 

Meus pensamentos são cortados assim que um vulto passa a meu lado, e já identificando seu cheiro, percebo que Agatha tinha chegado. Passando para o outro lado da mesa, Agatha põe sua bolsa no lado e se senta na cadeira, chutando minha caixa com os pertentes abaixo da mesa sem querer. Ela olha para meu prato remexido e depois me fita. 

— Não conseguiu comer? 

— Não, tô sem fome. 

— Entendo. — Ela pega o prato, e junto com um pedaço de carne cortado, põe uma garfada na boca — Eita, está frio. 

— Faz meia hora que pedi. 

— Ô moça — falando com a garçonete — ele não comeu a comida dele, você pode esquentar pra mim? É feio estragar comida. 

Agatha aguarda a garçonete recolher tudo e continua.  

— E então, o que aconteceu? 

Dou um suspiro. 

— Carlos. Carlos aconteceu.  No dia em que aquele homem entrou, minha vida virou um inferno. 

— Mas você não deveria ter cedido as vontades dele. 

— Eu só estava ajudando ele. 

— Ajudando? O que ele fazia com você era pressão psicológica. 

— E você queria que eu fizesse o que Agatha? 

— Calma aí, tá direcionando essa raiva toda pra pessoa errada. 

— Me desculpa. Você não tem culpa de nada mesmo. É só que... Só de falar nele já me dá nos nervos. 

— Então, vamos parar de falar dele e falar sobre nós... — ela põe sua mão sobre a minha — Agora acho que dá pra assumirmos nosso... Segredinho. 

A empresa não permitia que funcionários namorassem entre si. Mas, tínhamos ficado aqui e ali, algumas vezes até no horário de trabalho. E sentir sua mão sob a minha naquele momento me dava o consolo que precisava. Com Agatha, sentia que o mundo não estava contra mim, que tudo iria ficar bem.  Porém, rapidamente tiro a minha mão quando vejo um funcionário da empresa entrar, e ela recolhe a dela. Ser pego tendo um relacionamento, principalmente no horário de trabalho, era motivo de demissão. Ah é, eu não trabalhava mais na empresa. 

— Eu sei que é um saco perder o emprego, mas vai ficar tudo bem. — Disfarça Agatha enquanto o funcionário passa próximo a mesa — Consegui um seguro de seis meses pra você, e com o seu currículo, será muito fácil arrumar um novo emprego. — Nesse momento, a garçonete serve novamente o almoço — E veja pelo lado bom. Você será só meu. — Fala sussurrando. 

Percebo que ela cora ao levar o primeiro garfo a boca enquanto um sorriso de canto surge. Eu realmente gostava muito dela, e aparentemente, o sentimento era mútuo. Mas... Assumir o namoro... Eu seria suficiente para ela? Eu já achava um milagre ter esse relacionamento escondido! 

— Olha, eu gosto muito de você, Agatha. Muito mesmo. Você é uma mulher incrível. Mas não paro de pensar que... 

— Anderson, eu te amo. — Ela fala me fitando nos olhos. Nesse momento, meu coração resolve me lembrar que ele estava ali, pois de repente bate tão forte que parecia que ia sair de meu peito — e não quero saber o que você pensa no que pode atrapalhar nosso relacionamento, eu só quero saber uma coisa: Só quero saber se você sente o mesmo por mim. 

Não resisti. E como resistiria? Como resistiria uma mulher linda me falando que me amava? Como controlaria meu corpo à medida que me apoiava sob a mesa, buscando seus lábios? Como iria ter forças de me afastar, sabendo que ela estava ali, querendo o mesmo? Não pude. Nem quis. Nossos rostos se aproximaram e o beijo foi molhado e doce. Não importava se tinha gente da empresa, não importava se as pessoas estavam olhando, naquele momento só me importava uma coisa: mostrar para ela que eu também a amava. 

— É claro que também te amo — falei quando me afastei um pouco — Te amo demais. 

Vejo seu olhar se encontrar com o meu, nossos sorrisos se formando, até lembrarmos que estávamos em público ainda. Me recomponho e volto para meu lugar, tentando disfarçar e evitando olhar ao redor. 

— Mas, — eu continuo — Vamos com calma tá. Deixa passar alguns dias pra gente assumir em público. Tenho medo de te prejudicar também. 

— Tudo bem, vamos fazer do seu jeito. — Ela fala com um sorriso no rosto — Mas vou poder te chamar de Amor? 

— Amor, Vida... O que você quiser. 

— Tá, sendo assim, desbloqueia teu celular. 

Sem entender, faço o que ela pede e entrego o aparelho sem restrições. Ela digita algo na tela e depois me mostra. 

— Pronto, agora é oficial. 

Na tela, o nome Agatha tinha sumido. No lugar, ela tinha reinscrito ‘Minha Vida’. 

 

 

Já estava próximo do horário marcado. O relógio marcava exatamente 18hrs33min, e eu tinha combinado de encontrar com Ágatha as 19hrs em ponto. Depois do almoço, tínhamos marcado de sair à noite para comemorar o nosso namoro não assumido, e com o passar da tarde, fiquei refletindo: por que não assumir logo? Eu já tinha perdido o emprego, demitido pelo próprio diretor, então a empresa em si não tinha mais nada a ver. E outra: a gente não precisava sair falando para deus e o mundo sobre o nosso namoro, isso iria se espalhar naturalmente. Mas... eu estava com medo de prejudicá-la de algum modo... e era por isso que ainda não tinha saído de frente do espelho. Eu estava nessa dúvida: pediria ela em namoro naquela noite ou não? Enfim... Dando uma última conferida no meu visual, me agradei no que vi. Não posso dizer que eu era bonito, mas estava na média. Tinha penteado meu cabelo para o lado, mas assanhei um pouco na ponta para não ficar lambido. Minha pele parda combinava com meus olhos negros, meu nariz era pequeno, mas não desproporcional com o tamanho da minha cabeça, meus lábios nem tão grandes nem pequenos, mas com uma coloração quase rosada. Não usava bigode, não usava barba: eu ficava tão ridículo quando deixava crescer que não vou nem descrever. Meu corpo era magro, mas até que estava conseguindo ganhar peso, preenchendo bem a blusa social e a calca jeans. Para finalizar, passo um perfume e verifico as axilas: tudo okay. 

Saí do meu prédio e fui para o outro lado da avenida. A cidade de Fortaleza estava viva: carros passando de um lado a outro, pessoas andando pelas calçadas e vez por outra se esbarrando, restaurantes e pizzarias exibindo suas promoções. Evitei esbarrar nas pessoas e segui caminho para a casa de Agatha. Uma rua aqui e ali, e então, encontro ela já do lado de fora do prédio, esperando. 

— Oi, — comecei falando — demorei muito? 

— Não. Desci agora. 

Agatha se aproxima e me dá um beijo. Não foi longo, mas o suficiente para me deixar no céu. E Deus, como ela estava linda! Seus cabelos ruivos estavam soltos e caindo pelo ombro, sua maquiagem destacava seus olhos verdes, sua pele branca cintilando abaixo da luz. Ela usava um vestido de tecido pesado, marcando todo o seu corpo e curvas, enquanto um corte de tecido voava com o vento, exibindo suas pernas lisas e delicadas. Ao perceber que eu olhava intensamente para ela, Agatha solta um sorriso tímido. 

— Gostou? 

— Sim, você está linda. Deixa eu enxugar minha baba aqui. — Simulando com o braço. 

Após rirmos dessa piada fraca, Agatha entrelaça seus braços no meu e assim partimos juntos para o nosso destino: um bar e restaurante ali próximo. 

 

 

No bar, os garçons iam e vinham servindo bebidas e petiscos  enquanto uma banda acústica tocava ao fundo. O som não era alto o suficiente para atrapalhar a conversa das pessoas, e eu conseguia bem ouvir o que Agatha falava. Porém, por mais que as palavras saíssem de sua boca, eu não conseguia me concentrar na conversa. Minha mente não parava de me perguntar qual seria o momento de pedir ela em namoro, e estava difícil silenciá-la. Dois copos seco já jaziam na nossa mesa, os petiscos ainda por vir, Agatha falando sobre uma fofoca do trabalho. Olhei para o garçom e fiz o sinal de 2, o que ele entendeu que queria mais dois copos de Chopp, e Agatha terminou. 

— Me desculpe, não deveria ter falado tanto sobre trabalho. 

— Não, tudo bem, gosto de ouvir sua voz. 

— Você parece meio... longe. Ainda tá pensando sobre o que aconteceu hoje? 

— Na verdade não. — Engulo em seco — É outra coisa. — Teria chegado o momento? 

— E o que é? Pode me contar? 

Sim, era o momento. Se deixasse passar, não teria volta. Seguro sua mão delicadamente sob a mesa, ela com certeza sentindo o quão suadas estavam, e com um olhar aberto, ela me fita, tendo toda a atenção em mim. 

— Olha, eu sei que já te disse isso, mas, Deus, como você é maravilhosa! Você me faz se sentir bem, mesmo nos meus piores momentos, você me entende bem mais do que eu mesmo. Quando estou com você sinto uma alegria tão grande, tão contagiosa. Você é uma mulher incrível! Eu seria o homem mais burro do mundo se deixasse você esperar por causa de meus medos. — Nesse momento, ela muda a expressão de surpresa por felicidade, como se já soubesse o que viria a seguir — Agatha, eu te amo. E quero ser mais do que bons amigos. Quero mostrar pro mundo o quão feliz sou a seu lado. Quero que você seja minha namorada, sem se esconder, sem negar, sem se importar o que o outros vão dizer... Você aceita namo... 

— Olha só quem está aqui! Anderson e... Agatha? Quem diria! 

Aquela voz foi como um soco em meus ouvidos. Eu nem precisava olhar — e nem queria — pra saber que era Carlos. Uma ira indescritível subiu pelo meu corpo, meu coração bombeando sangue mais forte, e se não tivesse percebido, teria quebrado a mão de Agatha. 

— Sério Carlos. Até aqui? 

— Relaxa irmão. — Fala puxando uma cadeira próxima e se sentando. — Não tôaqui pra te causar problemas. 

Aperto ainda mais a mão de Agatha. Sinto meu maxilar rígido. Meus olhos ardem de tanta tensão. 

— Anderson, calma — Agatha sussurra, e sua voz me acalma um pouco.  Mas não tanto como queria — vem cá, tu não tem outra coisa pra fazer não? Você pode por favor nos deixar em paz? 

— Opa, esse lado seu eu não conhecia, Agatha. Tudo bem, calma, só quero bater um papo com meu brother aqui. 

— É, mas ele não quer falar com você. Então vaza. 

Ouço Carlos suspirar. 

— Olha Anderson, — Deus, se ele não calar a boca! — Tô ligado que mandei mal hoje. Eu quero te pedir desculpas. 

Pronto. Era só isso que queria ouvir. Aliás, era esse gatilho que meu corpo precisava. Tão rápido como gato, levantei da cadeira com fúria, derrubando-a, e em um movimento rápido, agarro o colarinho da blusa de Carlos, puxando-o. Claro, o homem era enorme, e por causa de seu peso, a única coisa que cedeu foi o pano de sua camisa, que ficou esticado em minhas mãos. Meu outro punho se ergueu, fechado e pronto para socá‐lo, mas por algum motivo, ele ficou parado, sem continuar seu percurso. 

— Desculpas!? — vociferei — Desculpas vai trazer meu emprego de volta? Vai trazer a minha dignidade de volta? Eu fui humilhado hoje como nunca na vida!  

Meu punho tremia, minha garganta ficou seca, meus olhos se encheram de água. E só então, depois de se calar que ouco o silêncio. Não havia banda tocando, não havia pessoas conversando, não havia copos ressoando. Só havia olhares em toda a minha volta. Todos olhando para mim. 

— Okay. — Carlos quebra o silêncio — manda ver, se isso te fizer melhor. Vai, arregaca a minha cara. 

Nisso vejo o seguranca se aproximar, e finalmente solto Carlos. 

— Algum problema aqui senhores? 

— Nada não — fala Carlos — só estamos conversando. 

— Vão ter esse tipo de conversa em outro lugar. Aqui não. 

Eu não tinha mais nada o que fazer ali. Sem ao menos olhar, tiro uma nota de 50 reais — ou seria 20? — e ponho na bandeja do garcom mais proximo, saindo com fúria do local. Ouço um ‘espera' de Agatha, mas eu queria sair daquele mesmo local onde aquele homem estava, então ignorei e continuei. Ouço seus passos rápidos atras de mim, mas minha mente não capta que estava andando tão rápido que logo tinha me afastado do bar. Meus olhos queimavam, sentia alguma  coisa sair deles, mas continuei, até Agatha me puxar pelo braço.  

— Para! — ela fala. 

— Ele. É sempre ele — minha voz estava embargada, pelo meu rosto descia algo quente e líquido — Eu não aguento mais! 

— Eu sei, eu sei. — Agatha envolveu suas mãos em meu rosto, limpando minhas lágrimas — Mas tá tudo bem agora. Calma. 

Ficamos assim por alguns minutos. Eu sentia um misto de raiva, decepção, inferioridade, injustica, como se o mundo estivesse novamente contra mim. Atá mesmo no momento mais feliz da minha vida, o destino tinha resolvido colar uma peça. 

— Eu... — minha voz quase não sai, mas forço minhas cordas vocais — me desculpa ter estragado o nosso momento. 

— Você não estragou nada. Foi aquele idiota. E também, achei muito sexy o jeito que você enfrentou ele. 

— E agora tô parecendo um bebê chorão — Dou um sorriso timido. 

— Nada disso. Isso mostra que voce é um ser humano também. Um dos mais fofos. E um dos melhores homens. — ela umedece os labios — Você é o meu homem. 

Novamente, não resisto. Passo minha mão por sua cintura, colando o corpo dela no meu. Busco a língua em sua boca, realizando um beijo molhado, doce e gostoso, ela envolvendo seus bracos no meu pescoço, os dois sentindo a emoção de estar ao beijos no meio da rua. 

Até que alguém do meio da rua diz : O que é aquilo? 

Paramos o nosso beijo e vejo mais pessoas olharem na mesma direção, e não era a nossa. Se desvencilhando de Agatha, faço o mesmo que as pessoas, e então, minha visão captura uma bola surgindo do nada, no meio da avenida, tão escura como a noite, flutuando. Olho mais atentamente para a bola, até mesmo andando inconscientemente para a direção dela, enquanto outros curiosos faziam o mesmo. Ao meu lado, alguém tira um celular do bolso e começa a gravar. Não importasse o que fosse, definitivamente era algo impressionante. Mas o que realmente era aquela bola negra flutuante no meio de carros transeuntes? 

Um estalo faz todos se sobressaltarem, e de repente, raios surgem da bola, causando feixes de clarões. Os raios atravessavam a bola, como se a alimentasse, e a cada segundo, a esfera ficava maior.  

Os raios ficam fortes, a ponto de atingirem os postes, e então, tudo explode em faíscas e eletricidade. Os fios queimas sobre nossas cabeças, as lâmpadas estouram. Ouço o grito assustado de Agatha e imediatamente puxo ela, cobrindo sua cabeça e sentindo os cacos de vidro na minha. As pessoas ficam assustadas e se afastam, enquanto todo o quarteirão cai na escuridão. Os carros param, freando e cantando os pneus. Dava pra sentir o cheiro de borracha queimada enquanto um engarrafava na traseira de outro. Mas por algum motivo, um dos carro não consegue frear. 

Vindo diretamente em nossa direção. 

Puxo novamente Agatha . O carro vinha rápido demais, não dava tempo de pular para o lado, e torci para o poste aguentar a pancada, usando os segundos para ir pra trás dele o máximo que pude. O carro atinge o poste com força, mas as barras enchidas de concreto aguentam firme e param o veículo, que tem sua frente esmagada no meio. 

— Você tá bem? — Pergunto. 

Agatha faz um sinal em concordância, e só consigo ver porque os carros parados iluminavam o local. Ao nosso redor, alguns gritam assustados, outros se perguntam o que estava acontecendo. Olho novamente para a bola, mas ela agora desaparecera; no lugar, ficara uma espécie de... Portal? Eu não sabia ao certo o que era aquilo. O formato era circular, que ficava pelo meio quando chegava no chão. Porém, dava pra tranquilamente uma pessoa de três metros passar por ela. Mais intrigrante que isso eram as pessoas á frente do Portal conseguia vê-lo; Os que estavam atrás dele, não. Era como se as costas fossem transparentes, invisíveis. Algumas pessoas perceberam isso e logo ficaram comparando um lado a outro, impressiondas; outros, alertavam que podia ser perigoso e era melhor chamarem a policia. Eu, particularmente, andei só mais alguns centímetros para perto, enquanto Agatha me seguia, segurando firmemente em meu braço. 

— Anderson, vamos embora daqui. 

— Só mais um pouco — do jeito que eu era apaixonado por ficção científica, nem a pau sairia sem alguma explicação. — Quero ver o que é isso. 

Algo estava estranho. Todos nós conseguíamos ver o Portal, mas nada além dele. Não que não existisse nada lá; Conseguiamos ver silhuetas do que quer que fossem, mas... Estava tão escuro lá como aqui. Ando só mais um pouco. O carro atrás de mim iluminava perfeitamente a estranha passagem.  

E então, algo sai de lá. 

Uma mulher grita ao vê um pé surgindo do Portal. Porém, o pé era totalmente esquelético: branco, deformado, como se tivesse tirado a carne e a pele e deixado somente os ossos. Depois do pé, o resto do corpo, fazendo muitos se afastarem. 

O ser diante de nós era mais alto que qualquer um ali. Ele era branco, assim como o pé. E assim como o pé, lhe faltava carne. Sua cabeça era lisa em cima, com alguns espinhos na base do crânio. Seu rosto parecia de um robô inacabado, sem feições ou mesmo traços. No lugar dos olhos, existia apenas dois buracos sem profundidade. Seu peito liso parecia que foram moldados, como uma armadura. Seus braços, enraizados e traçados. Dedos finos quase não formavam suas mãos; pareciam mais espinhos saindo de seus antebraços. 

Por mais que estivesse com medo, as pessoas não saiam dali; incluindo eu. Eu me tremia dos pés à cabeça, porém queria saber de fato o que realmente era aquela coisa... Um robô? Um Android do futuro? Um alienígena ou mesmo um demônio? O ser, por algum motivo, não olhava para todas as pessoas. Do jeito que saiu do Portal, ficou. Então, um homem do meio da multidão finalmente se arriscou a ir para perto da criatura, muitos das pessoas o falando para não fazer aquilo. 

— Não se preocupem, — fala o homem — eu só quero fazer o primeio contato. 

O homem anda cautelosamente para o ser, que ainda não se movera. 

— Ele não tem olhos — continua o homem — nem nariz, nem boca. Fascinante! Talvez ele nem precise de oxigênio para sobreviver!  — Ele olha para todos — com certeza isso é uma forma de vida fora da terra! 

— Cuidado! — Grita um dos presentes. 

Sem tempo. Foi tão rápido que quase ninguém assimilara o que estava acontecendo. Num momento o ser estava parado; noutro, movera seu braço rapidamente. 

Cravando seus dedos na base da nuca do homem. 

O homem arregala os olhos, e por um momento pensei que ele olhara pra mim. Seu nariz escorre sangue e sinto Agatha enterrar seu rosto em meu peito, tremendo. Alguém grita ‘Jesus Cristo!’ enquanto outro fala ‘Temos que salvá-lo!’. De repente, a cabeça do homem começa a murchar como uma bola furada, enquanto seus olhos caem, seu nariz amolece e sua boca fica sem dentes. Era como se a Criatura estivesse sugando algo dele, mas o quê? O que sustentava toda a carne para não ficar molenga do jeito que o homem estava ficando? Quando percebi, arregalei os olhos. 

Ele estava sugando os ossos do homem. 

Nesse momento muitas das pessoas estavam correndo. Outros só correram quando o homem cai no chão, caído como se fosse uma roupa, talvez uma fantasia. 

O desespero toma conta do local. As pessoas correm, causando sombras fantasmagóricas ao passarem pelos faróis acessos dos carros, grito de socorro e histeria total. Muitos caíam no chão por não verem onde estavam pisando, outros atropelavam, literalmente, as pessoas. Todos estavam saindo dali. Todos, menos eu. Eu estava paralisado, toda a minha musculatura travara. Senti Agatha me puxar freneticamente, mas não adiantava, eu não conseguia sair.  

E então, a Criatura levanta o braço e abre a palma da mão. 

Vejo um buraco formar bem no meio de sua palma. Vejo algo sair de dentro, pontiagudo. Vejo a coisa ser colocada mais e mais para fora. Vejo que estava em minha direção. 

E finalmente, vejo que eu morreria ali. 

Mas não adiantava. Eu não conseguia, por mais que quisesse.  

Eu não me movia. 

 


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