O Anjo na Gaiola escrita por Autora Juvi


Capítulo 3
III




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Quando Sephiroth acordou, a primeira coisa que ele viu foram pelo menos cinco penas brancas sobre o travesseiro. Uma delas, a maior de todas, estava tão perto de seu nariz que as cerdas macias fizeram cócegas e até lhe arrancaram um espirro.

Ainda se sentia meio tonto, e as costas doíam um pouco. Essa dor, no entanto, era diferente daquela que o jogou no abismo de sono profundo do qual acabara de voltar. Estava mais para uma pontada aguda, que não era constante, e só incomodou enquanto fazia esforço para girar o corpo na cama e se sentar. Porém, quando estava prestes a fazer esse giro, algo o impediu e se moveu atrás dele de forma tão consciente que o menino foi tomado por uma sensação de estranheza muito diferente do esperado.

Era como ter um terceiro braço, mas não possuir nenhum controle sobre os movimentos dele. E só piorou quando, caindo sobre sua cabeça e praticamente apagando as luzes, uma coisa grande, pesada e peluda…

Não… Não eram pelos. Eram… penas? Sim, penas brancas, muitas delas, simetricamente dispostas umas sobre as outras, e lado a lado também, umas maiores e outras menores, todas se unindo para formar uma asa. E essa asa estava presa às costas dele, saindo exatamente daquele caroço que, antes, lhe causara tanta coceira e o obrigara a ouvir a voz daquele homem.

A asa não era muito grande, mas também não era tão pequena assim. Caía sobre a cabeça de Sephiroth, com a ponta dobrada sobre o colchão, e sofria alguns espasmos esquisitos, que eram perturbadores para o menino; podia sentir cada movimento, como se fosse ele quem a estivesse fazendo se mexer.

O menino abriu a boca para gritar, mas tapou-a com as duas mãozinhas, quase perdendo o equilíbrio que o mantinha ajoelhado e curvado para frente, agora com os cotovelos apoiados sobre o colchão também. E ficou assim, todo encolhido, escondido debaixo de um membro extra que ele não sabia de onde veio.

Tremendo, ficou encarando as penas brancas. Estavam um tanto dobradas debaixo dele, que tentava descobrir se tudo aquilo, na verdade, não era só mais um daqueles sonhos estranhos que o perturbavam quando lhe davam remédios de gosto ruim para beber.

Eu 'tô virando um passarinho? Perguntou-se, e imediatamente lembrou do que ouvira de seu médico naquele dia.

(...) talvez seja a hora de encomendarmos ração de passarinho.

Sephiroth jogou o corpo para trás num quase pulo que o deixou sentado sobre os calcanhares.

A asa agora estava pendurada atrás dele, sofrendo mais daqueles espasmos, deixando o menino ainda mais consciente da existência dela — da ligação dela com seus ossos, músculos e pele.

Hesitante, mas com uma pontadinha de empolgação no peito, Sephiroth fechou os olhos com força e pensou “sobe”. Para sua surpresa, a asa o obedeceu e se ergueu toda. Então, no instante seguinte, ele pensou “desce”, e a asa abaixou-se.

Apertou os lábios até que ficassem esbranquiçados, tentando conter uma risada eufórica quando finalmente entendeu que aquilo não era nenhum sonho estranho.

Com ou sem incômodos no lugar onde o novo membro se conectava a seu corpo, ganhara uma asa coberta de penas brancas, como os pelinhos dos Moogles dos quais tanto gostava.

— Então… essa era a surpresa?

— Fala sozinho, hm? Interessante. — A voz daquele homem quase o fez pular para fora da cama e se esconder debaixo do móvel. — Talvez seja uma defesa psicológica contra a falta de interação social regular? Isso também implica na existência de uma mente criativa, apesar das limitações que o cercam. Providenciarei alguns testes para a próxima semana.

Sephiroth imediatamente se virou, e o movimento brusco lhe causou uma pontada nas costas. Mas ele não teve tempo para se incomodar com isso porque, assim que fitou as lentes redondas que ocultavam um par de olhos castanhos, que o encaravam com uma curiosidade assustadora, o menino tremeu como se sentisse frio.

Era ele

Aquele homem.

Professor Hojo.

— O-o que… O que o senhor tá fazendo aqui?

Hojo não respondeu. Ao invés disso, fez algumas anotações na prancheta que tinha em mãos. Depois, colocou-a sobre a beirada do colchão e sorriu de orelha a orelha ao contemplar a asa branca do menino, que se encolheu e, tentando ser o mais discreto possível, arrastou-se para trás, querendo ficar longe de alcance.

Em vão.

Sem pedir permissão, aquele homem tocou a asa, deslizando a mão fria desde a articulação do membro até as pontas das penas maiores, acompanhando o crescimento da plumagem.

Poucas foram as vezes em que Sephiroth precisou interagir diretamente com o professor Hojo. Ele tendia a ignorá-lo, ou a apenas lhe fazer perguntas estranhas para as quais, na maior parte das vezes, Sephiroth nem sequer tinha resposta para dar. Mas, quando acontecia de Hojo querer iniciar e manter uma conversa de verdade consigo, a sensação era perturbadora, porque ele não conseguia fazer isso sem tocá-lo, sem testar todas as suas articulações; sem examiná-lo, como se estivesse à procura de mais doenças sem nome.

— Como se sente? — perguntou Hojo, que agora esticava a asa do menino, só para depois dobrá-la outra vez.

— Bem… — Sephiroth respondeu baixinho, desviando o olhar. Talvez assim fosse mais fácil. Talvez assim aquele homem não perceberia o quanto a presença dele o assustava.

Hojo arqueou uma sobrancelha.

— Só isso?

— Eu… tinha que sentir outra coisa?

Aquele homem começou a enumerar nos dedos.

— Dor local, tontura, náuseas, às vezes dormência… — Ele fez uma pausa, apertando os lábios antes de sorrir de orelha a orelha outra vez e prosseguir: — Vontade compulsiva de… consumir?

Sephiroth fez uma careta confusa.

— O que é vontade compulsiva de… consumir?

Hojo fechou a cara e revirou os olhos.

— Entediante.

Sephiroth quis perguntar o que é “entediante” também, mas engoliu a própria fala ao imaginar que não receberia uma resposta. Ainda mais depois de, pelo canto dos olhos, ver aquele homem largar a asa e pegar a prancheta para anotar coisas na folha presa a ela.

Mais uma vez tentando ser discreto — e falhando nisso —, Sephiroth esticou o pescoço, querendo ver o que havia na folha branca, mas não viu nada além de rabiscos impossíveis de identificar. Provavelmente, Sephiroth não conseguiria entender o que estava escrito ali mesmo se ele soubesse ler e escrever.

— Enfim — aquele homem disse tão de repente que o menino quase deu um novo pulo. — Estou aqui porque preciso examiná-lo e, a partir de hoje, não quero mais ninguém, além de mim, colocando as mãos em você. Sua evolução está acontecendo rápido, apesar de certas… limitações.

— Limitações?

— A boa notícia é que, também a partir de hoje, quero que fique mais livre para andar neste setor.

Num movimento rápido, Sephiroth se virou para aquele homem; as pupilas dilatadas, indicando que o medo deu lugar a uma euforia muito parecida com a de quando lhe disseram que ele teria uma surpresa.

— Vou poder aprender a voar? — perguntou, os olhos cintilando. — Que nem o Mog?

Hojo baixou o óculos.

— … Quem?

— Mog, o Moogle feliz! — Sephiroth nem sequer notou a cara feia daquele homem, então continuou a tagarelar sobre seu personagem favorito. — Todos os moogles podem voar, e eles também são bichinhos mágicos que…

Hojo bateu a mão sobre o colchão com tanta força que as pupilas de Sephiroth se retraíram e ele sentiu a cama inteira tremer. O menino se encolheu, assim como sua asa, que se fechou ao redor dele, quase como uma armadura feita de penas.

— Bichinhos mágicos? De onde tirou isso, menino? Moogles não existem. Magia não existe — falou aquele homem, rosnando cada palavra.

— Mas… — Sephiroth tentou argumentar, mas as lentes redondas e os olhos escuros por trás delas o impediram de continuar; o impediram de pensar em qualquer coisa que não fosse a expressão furiosa que transformou a já antipática cara daquele homem em algo muito, muito pior.

— Quem te ensinou isso? — Hojo inclinou o corpo, forçando o menino a se encolher ainda mais. — Quem está enchendo sua cabeça com informação inútil?

— E-eu… — Tremendo, Sephiroth fechou os olhos e virou o rosto. — Os médicos… sempre me deixam assistir desenho… no celular deles…

— No… celular?

— É… T-tem… um monte… de episódios…

Hojo gargalhou de súbito, deixando o menino ainda mais assustado, mais confuso também.

— Ele assiste… desenhos no celular! Moogles e magia! — Hojo exclamava em voz alta, lacrimejando de tanto rir, como se aquela fosse a mais engraçada das piadas. Mas esse riso cessou num instante, quando, pelo canto do olho, encarou o menino e, mais uma vez, sua expressão se transformou numa carranca furiosa. Ele mudava de humor tão rápido quanto um estalar de dedos. — Nunca mais fale sobre moogles, magia ou qualquer besteira do tipo na minha frente, menino. Aliás, vou me certificar de que você nunca mais assistirá a essas baboseiras fantasiosas.

Sephiroth não sabia o que dizer, nem como dizer qualquer coisa àquele homem. Também não conseguiu parar de tremer quando a mão de Hojo se aproximou e pousou sobre sua cabeça, grande e anormalmente leve, fria e estranha, como todos os aparatos que os médicos costumavam colocar nele; como as agulhas das quais tinha tanto medo antes.

As agulhas sempre foram menos ruins que isso.

— Está na hora de gastar esses neurônios com conteúdo relevante, descobrir quanto conhecimento você consegue absorver nessa idade — disse aquele homem, arrastando os dedos sobre os cabelos prateados do menino num gesto que, em outra realidade, talvez pudesse ser considerado uma carícia. Mas somente talvez, e mesmo assim, não seria sincera. Nunca seria. — Providenciarei um professor particular. A escola comum que alimenta os cérebros limitados não é para você.

Quase morrendo de tanta vontade de se afastar daqueles dedos, longos como as patas de uma aranha, e mesmo sem saber exatamente o que é uma “escola que alimenta cérebros limitados”, Sephiroth perguntou:

— Por que não?

Por trás das lentes escuras e redondas nos óculos daquele homem, Sephiroth poderia jurar ter visto um brilho tão maldoso quanto o sorriso que levantou os cantos da boca dele, exibindo dentes brancos e muito mais ameaçadores do que as presas de um monstro.

— Porque você é especial, Sephiroth — respondeu ele. — Você não é igual às outras pessoas, nem às outras crianças. É melhor do que todas elas. Melhor do que eu também, e do que todos os cérebros mal formados que perambulam neste prédio.

Inclinando-se ainda mais, de modo que o menino precisou deitar na cama para não se sentir tão encurralado, Hojo completou:

— Você é o espécime perfeito.

Sephiroth nunca entendia nada do que aquele homem dizia. No entanto, dentre tantas coisas sem sentido que acabara de ouvir, uma palavrinha não lhe passou despercebida: especial. Era a primeira vez que aquele homem usava uma palavra como aquela para se referir a ele, e também era a primeira vez que aquele homem pronunciava seu nome.

Menino.

Garoto.

Este espécime.

Essas sempre foram as formas como Hojo se referia a Sephiroth, nunca usando o nome dele, que se o menino conhecia, era porque os médicos o chamavam assim. Não sabia porquê, mas isso atraiu sua atenção, e o menino não deu a mínima importância para a palavra perfeito.

— Especial? — repetiu baixinho.

— Oh, sim… — A mão daquele homem continuava com a falsa carícia, que saiu dos cabelos prateados e se encaminhou para as penas brancas na asa do menino. — Você é muito, muito especial.

Mais uma vez, as pupilas nos olhos de Sephiroth se dilataram.

De repente, aquelas migalhas de atenção, de elogios, se tornaram um tipo de tesouro para ele.

Será que poderia receber mais daquilo? Mesmo que viesse daquele homem?

— Eu… posso sair agora?

— Agora? — Hojo recuou a mão, e Sephiroth abriu a boca, prestes a pedir desculpas por esse pedido atrevido, mas o menino não teve tempo de verbalizar nada. — Bem, isso vai contra os meus planos de examiná-lo, mas... — Arqueou as sobrancelhas, como se aquilo, de repente, fosse uma ótima ideia. — Pode.

Pego de surpresa, o menino piscou os olhos muito rápido, repetindo o gesto quando aquele homem levantou-se da cama, pegou a prancheta largada no colchão, e uniu as mãos atrás do corpo.

— Venha. — Ele gesticulou com a cabeça, dando as costas num giro sobre os calcanhares, já se dirigindo para a porta.

Mas Sephiroth continuava parado na cama, observando com os olhos arregalados, incerto sobre como reagir. E ao notar que o menino não o estava seguindo, Hojo olhou por cima do ombro e das lentes redondas.

— Está esperando o quê? Não tenho o dia todo, e você também não.

Antes que aquele homem resolvesse mudar de ideia — e voltasse a ficar assustador, como sempre foi —, Sephiroth se arrastou sobre o colchão e pulou para fora da cama. Mas, ao ficar de pé, quase perdeu o equilíbrio e caiu para o lado direito. Conseguiu equilibrar-se ao se apoiar na beirada do colchão, mas Sephiroth ainda não tinha força para sustentar um membro que, agora percebeu, era muito mais pesado que seu próprio corpo. Como algo assim saiu de dentro dele?

— Terá que fortalecer os músculos dela, garoto. — Hojo se aproximou da porta, que piscou um led verde e se abriu. — Vamos, tente andar sem apoio. Um passo depois do outro.

Depois de uma pausa, forçando um sorriso muito estranho, acrescentou:

— Você consegue.

Sephiroth tentou, mas a asa ainda fazia o corpo dele pender para a direita, como acontecia com os cervos que perdiam um lado da galhada. Mesmo assim, o menino optou por não se deixar vencer por um membro extra. Se por orgulho ou para impressionar aquele homem, difícil dizer; talvez fosse ambas as coisas, talvez ele só estivesse muito animado para finalmente sair do quarto sem que houvesse o intuito de fazer mais exames sobre uma cama fria, ou debaixo de uma máquina.

Um passo, e então outro. Mais um, e outro.

Sephiroth não conseguia levantar a asa, mas teve a ideia de recolhê-la e segurar a ponta, quase se enrolando nela, e assim conseguiu se estabilizar um pouco.

— Bom. Muito bom. — Hojo botou a prancheta debaixo do braço e bateu palmas. — Isso me poupa o trabalho de segurar sua mão. Você não é mais um bebê, afinal.

— Eu já fui um bebê? — Sephiroth franziu o cenho.

— Por mais incrível que pareça, sim. — Hojo deu as costas de novo e avançou alguns passos. Mas parou no lado de fora, com um braço esticado para trás, mantendo a porta do quarto aberta. — Barulhento, esfomeado e frágil. Foi horrível.

Sephiroth apertou a asa, fazendo uma careta dolorida logo depois, porque usara força demais ao esquecer-se que aquilo agora era uma parte dele. No entanto, essa dor passageira não foi o motivo para a permanência de sua expressão confusa.

Embora aquele homem tivesse lhe dito que não poderia mais assistir ao seu desenho favorito, ele não falou nada sobre lembrar-se das coisas que já assistiu. E ele lembrava, com clareza, que todos os bebês moogle possuíam uma coisa que ele não tinha: uma mãe.

— Então… eu tenho uma também?

— Uma o que?

— Mãe… — A voz do menino não foi mais do que um sussurro. — Eu tenho mãe?

Sephiroth viou a mão daquele homem se fechando com força.

— Não — respondeu ele.

— Ah… eu pensei que…

— Você tinha — Hojo interrompeu, e o coração de Sephiroth falhou uma batida ante a informação. — Mas ela morreu quando você nasceu.

As pupilas nos olhos de Sephiroth se retraíram ao ouvir aquela palavra.

— Morreu?

— Sim. — Mais uma vez, Hojo encarou o menino por cima do ombro e das lentes redondas, analisando a expressão no rosto do menino. Assim, percebeu. — Você não sabe o que é morrer?

Sephiroth balançou a cabeça para os lados, e ao encarar aquele homem de volta, não conseguiu identificar qualquer tipo de expressão no vazio que se tornou a cara antipática dele.

— Como eu disse, está na hora de gastar esses neurônios com conteúdo relevante.

Hojo apontou o exterior do quarto, mais uma vez incentivando o menino a sair. E, de cabeça baixa, ainda segurando a asa, Sephiroth saiu e não se afastou daquele homem por um momento sequer.

Naquele dia, ao invés de se divertir pelos corredores pela primeira vez, ele aprendeu sobre a morte e sobre uma coisa que sempre desejaria, mas nunca poderia ter.


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