O que sobrou de nós escrita por GreeneMoon


Capítulo 2
capítulo I: correr ou morrer




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Kira estava aos beijos com Pedro na cabine do banheiro do segundo andar. Suas línguas dançavam em sincronia e as mãos dele estavam em toda a parte de seu corpo como ele gostava. Ela já conhecia todos os trejeitos dele, todo o jogo de sedução, tudo que fazia dele ser quem ele era. Namoravam há tanto tempo que nem se lembrava mais de quando tudo começou, a única coisa que sabia era que estavam juntos em todas as fases de suas vidas e não pareciam ter nenhuma pretensão de seguir outro caminho a não ser o do altar.

Bom, era isso que suas famílias esperavam que fizessem.

No entanto, os planos de Kira eram diferentes.

Estavam no terceiro ano do ensino médio, prestes a se formar, e ela tinha sido aceita em uma das faculdades da Ivy League como seus pais sempre planejaram. Ano que vem ela estaria embarcando para Nova Jersey e pretendia viver todas as experiências que Princeton tinha a lhe oferecer, e por mais que adorasse Pedro, namoros de escola não estavam inclusos no pacote.

— Chega, precisamos ir - Desgrudou os lábios dos dele e o afastou de seu corpo. Tinha cansado, como sempre acontecia. Gostava dos amassos, mas enjoava do romantismo.

— Por quê? - Pedro resmungou, tentando agarrar seu corpo novamente. A garota desviou com facilidade, se direcionando para frente do espelho para retocar seu liptint. - Não é como se alguém ligasse pro que fazemos no intervalo.

— Eu ligo. Preciso me alimentar bem pra treinar a nova coreografia mais tarde.

Pedro revirou os olhos, enquanto Kira colocava seu cabelo em ordem. Pra ele poderia ser a coisa mais fútil do mundo ter que se alimentar bem para dar o melhor de si em alguma coisa, mas para ela não era. Kira tinha sido criada para ser a melhor em tudo que se dispusesse a fazer e qualquer padrão que fugia disso era inaceitável.

Olhou uma última vez na direção de seu namorado e saiu do banheiro a passos rápidos e decididos, caminhando para o refeitório onde todos se reuniam para conversar e lanchar. Enquanto pegava um suco verde na máquina, observou a mesa dos seus amigos de longe. Estavam rindo de alguma coisa, provavelmente debochando de algum infeliz que atraiu a atenção indesejada deles. Não se orgulhava do quanto podiam ser cruéis quando queriam, mas não podia fazer nada, era assim que as coisas funcionavam no ensino médio e gastava sua energia apenas com o que conseguia controlar.

Um dia típico, normal, tudo estava em seu devido lugar: seu namorado, seus amigos, seus pensamentos, sua vida. Exceto pelo garoto parado do lado de fora do refeitório encarando fixamente a janela de vidro que separava o interior do exterior.

Kira apertou os olhos em sua direção tentando entender o que diabos o cara estava fazendo ali de baixo de um sol de 40° sem mover um músculo. Começou a caminhar na direção de seus amigos ainda observando o garoto, mas tudo parecia em câmera lenta. Uma sensação estranha começou a pinicar sua pele como um aviso, um presságio de que alguma coisa muito ruim estava prestes a acontecer.

Franziu as sobrancelhas parando ao lado da mesa onde ninguém calava a boca um segundo, totalmente alheios a situação lá fora. Girou a tampa da garrafa de suco, ouvindo perfeitamente quando o lacre se partiu, como se todos os seus sentidos tivessem ficado aguçados só pela sensação que aqueles olhos vítreos lhe causavam.

Levou o suco até a boca, mas não sentiu o primeiro gole descer por sua garganta porque, no mesmo momento, o garoto se mexeu.

Seus movimentos não eram rápidos, mas o descontrole supria qualquer necessidade de velocidade. O corpo do garoto ia e vinha se chocando contra o vidro temperado da janela em uma raiva ensandecida, manchando tudo com sangue fresco que escorria dos cortes profundos que se formavam em sua pele. Seus olhos eram de um vermelho carmesim, sua boca estava aberta em um rosnado feroz que em nada parecia com o de um humano e suas unhas arranhavam a superfície sem se preocupar com a dor.

Parecia um show de horror e todos eles eram forçados a assistir.

— Que porra é essa? - a voz de Davi quebrou o silêncio em que todos se encontravam.

— Aquele não é o Antônio, o garoto do primeiro ano? - outra pessoa que Kira não soube identificar questionou.

— O que deu nele?

Ninguém sabia explicar o que tinha acontecido com o tal Antônio, mas tinha certeza de que o garoto não era mais quem ele costumava ser. E que ele estava prestes a quebrar aquele vidro para fazer sabe-se lá o que com a primeira pessoa que estivesse em sua frente.

Se preparou para chamar seus amigos para saírem dali, quando mais duas outras pessoas surgiram correndo tão ensandecidas quanto o garoto e se chocaram na mesma janela que se partiu em milhões de pedaços levando os três para o chão.

No entanto, em poucos segundos, estavam novamente de pé rosnando e babando como cachorros com raiva. Da distância que Kira estava conseguiu ver perfeitamente quando aqueles olhos vermelhos dançaram freneticamente entre as pessoas e Antônio avançou em uma garota assustada do segundo ano que estava pegando sua mochila para sair do refeitório.

Não acreditou quando o garoto deu a primeira mordida. O sangue jorrou, a garota gritou e viu quando foi arrancado o pedaço de sua jugular, mas ainda assim, parecia irreal, como uma cena de filme de terror em 3D ou um pesadelo que tentava acordar e não conseguia. Pode ver quando a vida da garota se esvaiu, mas Antônio continuou em cima de seu corpo arrancando pedaços e mastigando como se fosse a melhor das refeições.

Kira saiu de seu torpor quando percebeu o corpo da garota tendo espasmos violentos e sua boca começar a espumar. Seus membros retorciam em ângulos anormais e sua garganta, mesmo sem um pedaço, emitia sons animalescos.

Até que parou completamente. Durou apenas um minuto para que ela girasse e abrisse os olhos vermelhos para encarar as pessoas ao seu redor como se fossem suas presas.

Em um segundo ela era a caça e no outro era o caçador.

O refeitório, antes cheio de risadas e vida, virou um caos de pessoas correndo de um lado para o outro tentando fugir do que costumava ser pessoas - agora Kira não fazia ideia do que eram. Havia sangue e rosnados em todas as partes sinalizando que a situação tinha saído do controle muito rápido para eles terem alguma chance.

— Kira, precisamos sair daqui! Agora! - Davi gritou agarrando sua mão e a arrastando junto a seus amigos.

Correram para a porta de entrada do refeitório, mas já estava congestionada demais para que conseguissem sair por ali. Girou em seus calcanhares buscando as saídas de emergência, mas elas também estavam cheias de pessoas tentando fugir daquele pesadelo. Era como uma grande ratoeira e eles eram os pedaços de queijo atraindo os ratos que não paravam de vir.

Àquela altura, muitos dos estudantes já tinham sido mordidos ou estavam no chão servindo de refeição para os infectados. Não tinham por onde escapar, qualquer lugar em que pessoas estivessem aglomeradas os atraía como um enxame de abelhas. Exceto pela janela por onde entraram. Não tinha ninguém indo naquela direção, não era uma opção quando as portas de emergência e de saída ficavam do outro lado. Era por ali que sairiam.

— Não vai dar pra sair por aí, vamos ter que atravessar o refeitório e sair pela janela quebrada. - Sinalizou para os seus amigos que tentavam abrir caminho a qualquer custo para chegarem na porta e não escutavam nada do que ela falava. Segurou com força os braços de Davi e Ana chamando sua atenção. - Para com isso, porra! Não vai dar pra sair por aí!

— E vamos sair por onde? - Ana gritou de volta, seu corpo tremendo e os olhos verdes esbugalhados. Seu cabelo loiro, que vivia impecável, estava grudado no suor de sua testa.

— Pela janela! - Kira apontou e percebeu que seus dedos também tremiam. Seu corpo todo tremia com o pavor que sentia toda vez que olhava a cena de alguém sendo devorado a dentadas.

Não esperou resposta, arrastou seus dois melhores amigos pelos braços e acelerou os passos iniciando uma corrida frenética para chegar até a janela. Não percebeu quando outras pessoas a seguiram, provavelmente percebendo que também não conseguiriam sair pelas portas. Todas aquelas pessoas correndo na mesma direção atraiu a atenção dos infectados que começaram a correr desvairados em sua direção. Queria xingar um caralho muito alto naquele momento, mas não tinha tempo pra isso. Precisava chegar naquela janela com seus amigos e sair daquela escola o mais rápido possível.

Sentiu quando a mão de Ana se soltou abruptamente da sua e parou olhando para trás. Sua amiga estava caída embaixo de um aluno mais alto e mais pesado do que ela e por cima dele havia um infectado arranhando e mordendo todo pedaço de carne que encontrava. Sangue jorrava melando o chão ao redor de Ana enquanto ela gritava e se debatia.

— Puta merda! - Davi xingou alto e correu em direção de Ana, mas Kira sabia que aquilo não era uma boa ideia. Por mais que não soubesse nada sobre o que estava acontecendo, já tinha percebido que enfrentar um dos infectados sem nada para se proteger era como oferecer um banquete de graça para eles.

Alcançou uma das cadeiras que estava caída no chão ao seu lado e a ergueu com toda a força que a adrenalina que corria em seu corpo tinha lhe dado. Acertou a cabeça de uma garota que corria em sua direção com a boca espumando, provavelmente salivando por um pedaço de sua carne. Sentiu a vibração do ferro em sua mão quando ele quebrou alguns ossos do crânio dela e sabia que não esqueceria aquela sensação nunca mais em toda a sua vida. No entanto, ela não se levantou mais.

Correu para Davi que lutava para não deixar que os dentes de um infectado acertassem sua jugular e para Ana que empurrava o corpo do garoto que começava a ter os primeiros espasmos que sinalizavam que ele voltaria a vida em breve. Empurrou com o pé o corpo se debatendo de cima de sua amiga que se levantou em um pulo apavorado, olhando ao redor com desespero.

— Davi - gritou para o seu amigo que não olhou em sua direção, mas sabia que ele prestava atenção. - Empurra esse filho da puta pra trás com força.

Fazendo o que pediu, Davi levantou um dos joelhos colocando entre eles e forçou o corpo do garoto para trás empurrando com toda a força que tinha. No mesmo momento, Kira levantou a cadeira acertando a cabeça do infectado que tombou para o lado.

Sem perder tempo, os três correram para a janela, passando pelos vidros quebrados e saindo para o lado de fora.

— E agora? - Ana perguntou, olhando para trás, para o refeitório que estava tomado pelo caos.

— Vamos para minha casa. - Kira respondeu, agarrando a mão de sua amiga e a arrastando junto com ela e Davi que pareciam ser os únicos com o extinto de sobrevivência falando mais alto.

— Não é melhor ficar dentro da escola e esperar ajuda? - Davi questionou enquanto corriam pelo corredor arborizado que fazia o trajeto para a entrada da escola.

— Você quer voltar lá pra dentro? - Ana perguntou com a voz tremula. - Você comeu bosta, Davi?

— Porra, eu só tô' dizendo! A gente não sabe como as coisas estão lá fora. Já pensaram nisso?

— Chega! - Kira disse, cortando o assunto. - Qualquer lugar é melhor do que ficar nessa escola. Seja lá o que essas coisas forem só vão se multiplicar e tomar cada vez mais espaço até nos encurralarem de vez. Não é inteligente ficarmos aqui.

Ambos ficaram em silêncio, pois sabiam que Kira estava certa. Não tinha como ficarem ali esperando um resgate que não sabiam quanto tempo ia levar. Até lá poderiam estar mortos.

— Ei! Vocês aí embaixo! Por favor! - um grito desesperado fez com que parassem de correr. Davi olhou para cima e viu uma garota escorada no parapeito de uma janela. - Por favor, ajuda a gente a descer.

Davi olhou para Kira que já estava com seus olhos fixos na garota. Estava pensando seriamente se valia a pena ficarem expostos ali só para ajudar uma garota que nunca tinha visto na vida, mas não precisou se questionar muito. Aqueles olhos castanhos cheios de lágrimas e a expressão de puro desespero já tinham a convencido de que não podia deixá-la para trás.

— Tem uma escada aqui - Ana chamou a atenção de seus amigos para a porta que tinha aberto. O metal tremia enquanto ela segurava a maçaneta, mas Kira estava orgulhosa por sua amiga ter pensado mais rápido que ela. Havia várias salas do zelador espalhadas pelo colégio onde deixavam as coisas básicas para que a escola sempre ficasse organizada e limpa. Graças a Deus.

Tiraram a escada e a expandiram até a janela para que a garota e quem mais estivesse com ela descesse. Os rosnados que havia cessado no refeitório começaram a se fazer presente novamente, então precisavam ser rápidos se quisessem sair dali antes que aquelas coisas resolvessem sair para caçar. Davi e Ana seguravam a escada para que não se movesse muito enquanto a garota descia rapidamente. Atrás dela vinha outra garota, provavelmente sua amiga e um garoto de óculos que parecia que ia desmaiar a qualquer momento de tão pálido que estava.

Kira segurou a cintura da garota e a ajudou a descer e repetiu o processo com os outros dois, ajudando todos a chegarem em segurança no chão, sem fazer muito barulho. Quando pensou que não tinha mais ninguém, a cabeça de Pedro e seu primo Yuri apareceram em seu campo de visão.

— Porra Kira, graças a Deus! - Pedro xingou, descendo a escada com rapidez para chegar até ela. Yuri repetiu o processo e ambos chegaram até o chão quase no mesmo segundo. Pedro puxou seu corpo com força e abraçou. - Achei que não ia te ver mais.

Claro que achou. Pedro sempre duvidou muito da sua inteligência, achando que ela seria incapaz de sobreviver no mundo sem ele. Kira sempre deixou que ele pensasse que tinha o controle das coisas quando, na verdade, era ela quem ditava as regras.

Retribuiu o abraço de seu namorado, mas soltou logo em seguida, se afastando. Olhou ao redor para o grupo que tinha dobrado de tamanho e respirou fundo. Pelo que tinha visto em filmes de terror, um grupo grande significava muito mais problemas para enfrentar. Porra!

Começou a caminhar em direção a entrada da escola com todos seguindo o seu encalço. Davi tomou a dianteira quando chegaram na curva que ligava o corredor com a entrada da escola e esticou o pescoço para olhar, quando voltou sua feição parecia de alguém que tinha soltado um peso de 100 toneladas.

— Tá' limpo. – declarou, deixando a respiração sair em uma lufada.

Seguiram para a parte da frente, olhando ao redor para se certificarem que não teriam nenhuma surpresa correndo até eles esfomeado.

A escola Ruy Barbosa era uma estrutura antiga, mas bem reformada. Em outros tempos foi uma mansão de algum senhor feudal extremamente rico, portanto era uma propriedade que reunia bons hectares, que antes eram o charme principal da instituição por ser bem completa em áreas de lazer e esportes. Também era um internato que abrigava os alunos em tempo integral, mesmo aqueles que moravam na cidade, pois era famoso por sua qualidade de ensino e pelos alunos que entravam nas melhores faculdades do mundo.

Kira até concordava com a qualidade de ensino, mas sabia que o Ruy Barbosa era famoso entre os pais por ser um lugar onde podiam deixar seus filhos inconvenientes e só voltar para buscar nos feriados ou no final do ano. Às vezes, nem nos feriados.

No final das contas, nada disso tinha importância agora. Aqueles quilômetros de terras só serviam para deixá-los desesperados tentando buscar alternativas mais rápidas de saírem de lá sem fazer muito estardalhaço e chamar a atenção que não queriam.

Rosnados começaram a soar de dentro da escola e pelas janelas podiam ver os infectados correndo de um lado para o outro atrás de mais presas para se alimentarem. De onde vinha aquela fome não sabia explicar, mas era voraz e impiedosa, não deixando espaço pra misericórdia.

Kira, com certeza, não queria virar alimento pra ninguém, por isso caminhou rapidamente em direção as guaritas que ficavam na entrada da escola, do outro lado da propriedade. Sabia que lá ficavam alguns seguranças e os porteiros, um deles podia ajudar tirando eles daqui.

— Kira, fica perto de mim, eu te protejo. – Pedro passou na sua frente e segurou a sua mão, mantendo seu corpo em uma posição de proteção. A garota não queria revirar os olhos pra atitude porque sabia que ele não fazia por mal, mas também sabia que estava se protegendo muito bem mesmo sem ele.

Deixou passar. Aquilo não era hora pra praticar seu feminismo, mesmo que quisesse muito.

Olhou para trás, para as pessoas que os seguiam e pode reparar no grupo que destoava totalmente do que era acostumada a andar. Já tinha visto o trio que resgataram do banheiro algumas vezes, mas nunca tinha trocado nenhuma palavra com eles. Eram três dos cinco bolsistas que tinham conseguido passar no processo seletivo no começo do ano, o que significava que eram muito inteligentes também. Ótimo. Precisava de gente que usasse o cérebro.

— Eu sou a Kira. – Se apresentou para os três que a olharam assustados. – Não vou dizer que é um prazer devido às circunstâncias.

— E porque prazer você só dá pra mim, gata. – Pedro brincou, soltando uma risadinha. Todos olharam para ele por um instante, incrédulos em como ele conseguia rir em meio a uma situação daquelas. Ele nem reparou na gafe.

— Fe-Fernando – o garoto de óculos gaguejou. Podia ver o pavor escorrendo pelos seus poros, literalmente, já que ele não parava de suar.

— Luna – uma garota baixinha de cabelos castanhos curtos respondeu. Ela era como uma miniatura de uma boneca de porcelana, mas tinha atitude no olhar. Kira sabia reconhecer uma pessoa forte quando via, Luna com certeza era uma delas.

— Eu sou a Ava. É um prazer. – Aquela era a garota que tinha pedido sua ajuda. Ela tinha o cabelo loiro escuro que parecia brilhante e sedoso, com um corte repicado elegante e o cumprimento um pouco abaixo dos seus ombros. Suas sobrancelhas eram muito bem desenhadas e combinavam com seu rosto simétrico, deixando seu olhar carregado, mas acolhedor. Seus olhos eram castanhos escuros e estavam um pouco fechados devido ao sorrisinho que ela dava em sua direção.

Kira geralmente reparava muito nas garotas a sua volta porque foi ensinada a estudar bastante o ambiente pra saber exatamente quem eram suas possíveis concorrentes. Mas, em uma situação como aquela, não tinha nenhum motivo para estar reparando tanto em Ava. E o fato dela ter feito uma piadinha não a incomodou em nada.

— O prazer é meu. – brincou de volta. E ela nem brincava. Não com desconhecidos, pelo menos.

O resto do grupo se apresentou entre si e Kira voltou a prestar atenção no seu real objetivo: sair dali.

Avistaram as guaritas, mas o que viram só fez com que o pavor voltasse a pinicar suas peles. Tinham infectados ali. Alguns estudantes tiveram a mesma ideia que eles e atraíram a atenção que se esforçaram tanto para não conseguir. O resultado era o banquete que estava acontecendo ao ar livre.

A cena era de retorcer o estômago. Alguns dos corpos estavam tão mastigados que podiam ver suas tripas, alguns ficaram irreconhecíveis pois os rostos tinham sido dilacerados. Kira já tinha visto o que uma mordida era capaz de fazer com uma pessoa, mas isso era porque os infectados estavam sendo atraídos para várias direções ao mesmo tempo. Aqueles ali estavam focados somente nos corpos jogados no chão, se alimentando sem nenhum indício de que pretendiam parar.

Sua ficha caiu ali. Realmente aquilo estava acontecendo e ninguém podia os salvar. Estavam por conta própria, porque até mesmo aqueles que foram treinados para o combate, tinham sido abatidos. Não tinha certeza se era um evento isolado, mas acreditava que não. Aquilo podia estar acontecendo em toda parte e eles não teriam nenhum lugar para voltar. Seus pais não chegariam até eles, talvez nem o exército conseguisse. Precisavam salvar a si mesmos.

Kira observou o Jeep parado na estrada que dava para os portões de saída. Ela sabia dirigir, mas precisavam abrir o portão para conseguirem sair. Olhou para trás, pronta para traçar um plano com o grupo, mas todos eles olhavam para a cena da mesma forma que ela segundos atrás, provavelmente suas fichas caindo como a dela também caiu. Estavam na merda.

— Certo, não tem ninguém pra ajudar, como todos nós podemos ver. É com a gente agora. – Enfatizou o óbvio, chamando a atenção dos demais. – Tem um Jeep parado ali, eu sei dirigir, mas precisamos chegar na cabine da guarita para abrir o portão. – Todos olharam para a guarita onde havia três infectados em cima do corpo de um dos porteiros. – Não dá pra pensar muito, se não, nós não saímos do lugar.

— E quem é que vai lá abrir esse portão? – Pedro perguntou e logo em seguida levantou as mãos. – Eu não vou nem que me paguem.

— Não era você que disse pra Kira que ia protegê-la? – Ana retrucou, com as mãos na cintura. – Você é um bosta mesmo, Pedro!

O rosto de Pedro ficou vermelho.

— Eu vou proteger a minha mulher sim, mas vocês que se virem, porra! 

— Caralho, você é um cusão – Davi retrucou, balançando a cabeça negativamente. – Eu vou, mas precisamos chamar a atenção daquelas coisas antes, não quero ser comido por ninguém.

— Não, você é muito grande, vai chamar muita atenção, corre o risco de todos eles irem pra cima de você de uma vez e isso vai dar muito errado. – A voz de Ava se fez presente, chamando a atenção imediata de Kira. Ela estava apavorada, mas tentava não deixar com que isso a vencesse. – Eu vou, sou rápida, sou parte do time de corrida da escola.

Kira não gostou nadinha do plano.

— Tá, eu vou com você.

— Kira, você ta' maluca? – Pedro esbravejou, segurando seus ombros e fazendo com que ela o encarasse. Fuzilou seu namorado com o olhar da forma que ele sabia que ela estava perdendo a paciência. Ele a soltou, bufando.

— Nem pensar, você é quem sabe dirigir aqui, precisa estar dentro do carro pra conseguir nos tirar o mais rápido possível desse show de horror. – Ava pontuou enquanto prendia o cabelo em um rabo de cavalo. Os outros concordaram com ela.

— Fora isso, também tem o fato de que nem sabemos se a chave está dentro do Jeep. – Fernando observou, se erguendo na ponta dos pés para tentar uma visão melhor. – Se não tiver lá é melhor que alguém saiba fazer ligação direta. Alguém já roubou um carro aqui?

— Eu nunca roubei um carro, mas meu pai já. – Luna respondeu dando de ombros. – Foi o ensinamento de pai pra filha que ele gentilmente me forneceu. 

Ana ergueu as sobrancelhas na direção da garota.

— Vamos chamar a atenção deles pra cá, são atraídos pelo barulho então precisamos de algo que faça bastante disso. – Olhou para Yuri, sabendo que ele sempre andava com um celular escondido pelo corpo. Na escola era proibido o uso de celulares durante a semana para que os alunos focassem nos estudos, sendo liberado somente aos finais de semana. Óbvio que todos davam um jeito de burlarem essa regra, mas ninguém dava bobeira com seus celulares substitutos por aí. Ninguém além de Yuri.

— Porra, nem pensar! Eu tô' contando com esse celular pra conseguir falar com os meus pais!

— Estamos indo pra minha casa Yuri, você vai conseguir falar com os seus pais de lá. - Kira esticou a mão esperando que ele lhe desse seu celular. – Anda logo!

Mesmo contrariado ele deu seu celular para ela que programou o alarme para tocar em vinte minutos.

— Vou colocar o celular do outro lado e quando ele tocar é hora de agir. Ava, você precisa correr muito rápido e ativar o botão do portão, assim que fizer isso, você corre de volta para mim, entendeu? – olhou no fundo daqueles olhos castanhos tentando passar o máximo de segurança que conseguia. Ava assentiu positivamente enquanto dava pulinhos para se aquecer. – Qualquer indício de que você não vai conseguir sair de lá, esquece o portão e corre de volta. A gente dá outro jeito.

— Eu vou conseguir. – A garota sorriu em sua direção e se voltou para os amigos. – Não saiam de perto deles.

Luna e Fernando assentiram e a abraçaram. Ava parecia confiante, mas pela tremedeira em suas mãos, Kira sabia que ela estava engolindo o pavor a seco. Seu coração apertou de uma forma dolorida.

— Kira, deixa que eu vou colocar o celular do outro lado. – Pedro se ofereceu e ela quis dar um soco na cara dele. Girou em seus calcanhares e o olhou firme.

— Se você não vai fazer pelo grupo, não tem por que você fazer por mim.

Lançou um último olhar na direção de Ava que assentiu confirmando que estava pronta. Ana lhe pediu para ter cuidado e Davi apertou sua mão com força. Fernando e Luna continuavam atrás de Ava tentando dar algum apoio moral mesmo que eles estivessem em frangalhos. Yuri continuou sendo a sombra de Pedro que estava emburrado como uma criança birrenta.

Kira não se deixou pensar antes de correr para o outro lado do gramado, pois o relógio já apontava dez minutos para disparar o alarme. Tentou fazer o máximo de silêncio que conseguia, evitando qualquer galho ou pedra que pudesse fazer algum barulho e chamar a atenção dos infectados. Quando chegou do outro lado faltavam três minutos. Jogou o celular perto de um arbusto para que, quando o alarme tocasse, não houvesse nada que atrapalhasse o som de reverberar forte o suficiente para chamar a atenção que desejavam.

Estava na metade do caminho de volta quando ele disparou. Pode ver os infectados saindo de seu torpor com um rosnado animalesco, correndo atrás do que eles pensavam ser sua próxima refeição ao mesmo tempo que via Ava sair em disparada para a guarita.

Ela estava indo bem, silenciosa e cautelosa em suas passadas até chegar na porta de acesso para o painel de controle da entrada da escola. Os infectados estavam todos do outro lado do gramado e o Jeep estava livre para eles. Correram o mais rápido possível para o carro, que graças a Deus, estava aberto, mas não estava com a chave na ignição. Luna entrou em ação entrando pela porta do motorista e puxando os cabos de baixo do volante para fazer a ligação direta que os tiraria dali.

Todos entraram no carro se acomodando o melhor que puderam, mas Luna teria que ficar no colo de Fernando para que Ava pudesse entrar. Balançou a cabeça para Pedro que entrava na porta da frente, ao lado do motorista.

— Você vai atrás. – Ele começou a querer argumentar, mas Kira o cortou rapidamente. – Você tem tempo pra se acomodar agora Pedro, a Ava vai precisar entrar correndo dentro do carro, qualquer coisa que a atrapalhe pode custar a vida dela!

Mesmo emburrado, ele assentiu e se acomodou no banco de trás, fechando a porta. Todos estavam dentro quando Luna conseguiu ligar o carro e passou pelos bancos para trás, sentando-se no colo de Fernando. Kira entrou dentro do carro, mas continuava olhando para Ava que estava dentro da cabine da guarita procurando pelo maldito botão. Começou a suar frio, o alarme não duraria mais tanto tempo.

— Vai, Ava.. – Sussurrou em desespero. Não queria que nada acontecesse a ela, não desejava uma morte como aquela pra ninguém.

A tensão dentro do carro era palpável quando o portão começou a subir. Ninguém tinha calculado o quanto de barulho um portão eletrônico podia fazer, principalmente um daquele tamanho. Todos olharam ao mesmo tempo para os rosnados que começaram a soar mais altos e os infectados que começaram a correr em suas direções. Kira, no entanto, só conseguia olhar para Ava que corria na direção do Jeep com toda a velocidade que conseguia ter em meio ao pavor.

Enquanto a garota corria, os infectados também, ambos na mesma direção. A sorte é que eles estavam vindo na direção da janela de Kira enquanto Ava corria na direção do banco ao lado do motorista, mesmo assim, não demoraria para que os infectados prestassem atenção nela.

Kira não pensou muito quando começou a bater no vidro da sua janela tentando chamar o máximo de atenção que conseguia. Um a um, aquelas coisas começaram a se chocar no seu lado da porta, arranhando o metal do carro e se lançando com força no vidro.

No entanto, não foi o suficiente para que todos eles ficassem entretidos, pois um deles estava correndo de encontro a Ava. Sentiu quando a respiração de todos no carro paralisou. Uma coisa era você assistir pessoas que não conhecia serem devoradas, era triste, apavorante, mas ainda assim, era distante demais para que parassem mais que um minuto para pensar naquilo. Outra coisa era assistir uma pessoa próxima morrer daquele jeito horrível. Kira sentiu que começaria a hiperventilar a qualquer momento, mas se lançou para frente, abrindo a porta do carro para facilitar a entrada de Ava. 

Davi voltou a bater no vidro do carro tentando manter a atenção do resto dos infectados presa neles, o que ajudou muito mais do que esperavam. Ava driblou o infectado que corria em sua direção, que por pouco não agarrou seu braço, e correu o mais rápido que conseguiu, se jogando no banco e fechando a porta segundos antes de mais um infectado aparecer do nada e se lançar com força na lataria. Kira mal percebeu que estava agarrando Ava com força pela cintura e que a garota estava jogada sobre seu corpo, ambas respirando pesadamente. 

O silêncio reinou por alguns instantes e tudo que podiam ouvir era o barulho dos infectados acertando o Jeep com força. Precisavam sair dali. 

— Você está bem? - Kira sussurrou a pergunta no ouvido de Ava. A garota assentiu lentamente e se ajeitou no banco do carro, respirando fundo. 

— Vamos dar o fora daqui! - Yuri pediu em desespero. 

Kira agarrou o volante do carro e apertou o acelerador partindo para fora da escola. Pelo retrovisor conseguia ver que os infectados continuaram os seguindo para fora, tentando alcançar o carro, mas sem sucesso. Não tinham calculado que o portão ficaria aberto para que todas aquelas coisas saíssem por aí, mas não conseguiam pensar em tudo. Quando Kira virou a curva de uma esquina que dava acesso para a rodovia principal, conseguiram ver que o portão era a menor das suas preocupações a partir de agora. 

A cidade estava em chamas, carros estavam abandonados pela estrada e o show de horror prevalecia mesmo fora dos muros da escola. Infectados corriam para todos os lados atrás de pessoas desesperadas que não conseguiam fugir rápido o suficiente, corpos estavam espalhados pelo chão sendo devorados, os muros estavam vermelhos do sangue que escorria por eles e até mesmo a polícia que estava tentando controlar a situação, estava sendo abatida pelos infectados que não paravam de avançar. 

Kira teve a certeza de que tudo estava perdido. Ninguém os salvaria e não tinham para onde fugir. Girou o volante do carro entrando em um desvio para fugir do trânsito de carros parados na estrada principal. Agradeceu pelos finais de semana desbravando a cidade com seus amigos, pois conhecia as ruas como a palma de sua mão. Precisavam chegar em sua casa o mais rápido possível. 

Enquanto deixavam o tumulto para trás, Kira só conseguia rezar para que tudo aquilo fosse um pesadelo do qual ela poderia acordar a qualquer momento. 

No entanto, esse momento nunca chegou.  

 


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