A Garota Que Ficou Para Trás - EM HIATUS (JULHO) escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 11
Capítulo X - Pintamos o mundo em vermelho como Caravaggio


Notas iniciais do capítulo

Gente, esse capítulo é longo, mas eu não tinha como dividir ele. Tudo o que está nele precisa estar exatamente onde está.
ALERTA DE GATILHO - Violência. Muita.

Boa leitura ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/811405/chapter/11

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Dezembro.

Estou organizando a minha coleção de CDs, como faço a todo fim de ano. Coloco o Live through this para tocar, e enquanto a voz de Courtney Love embala a minha manhã, vou tirando o pó da prateleira e organizo tudo por ordem alfabética. Todo fim de ano, gosto de arrumar as coisas de um jeito novo. Mudo a cama de lugar, e rearranjo os pôsteres da parede, colocando o da Hope Sandoval ao lado de uma foto sépia da Mary Shelley, e danço e canto enquanto faço isso. Estou com o cabelo amarrado em um rabo de cavalo, e visto uma camiseta antiga e muito larga, que eu gosto de chamar de “camiseta de faxina”. Os flocos de neve caem violentamente do lado de fora, posso ver sua dança branca pela janela. Hoje é o último dia de aula antes da pausa de fim de ano, e eu estou muito empolgada por isso. Por algum motivo, me sinto leve.

Essa é a primeira vez que tenho um quarto em uma casa de verdade, e não em um trailer, viajando por aí como uma nômade. Começo a sorrir quando vejo tudo pronto, e limpo uma gota de suor da minha testa, porque as coisas parecem finalmente estar se encaixando em minha vida.

—Ficou muito bonito, principessa...- Dou um sobressalto, pois não havia visto a minha mãe parada no parapeito da porta. Não esperava que acordasse tão cedo. Sorrio para ela, que entra no ambiente e coloca as mãos sobre os meus ombros... – Você parece feliz, Hazel. Acho que nunca te vi feliz antes.

Fico corada, porque é verdade. Olho para ela e meu sorriso desaparece, fico um pouco preocupada: Devido a sua abstinência, Amélie perdeu mais alguns quilos e tem tremedeiras constantes. Ela tem lutado muito por sua sobriedade dessa vez, e isso acende uma chama de esperança no meu peito.

—Aquele garoto, o Winchester...ele faz bem para você, e eu gosto dele por isso...- Amélie sorri, entre as tossidas e as tremedeiras.

—Mãe, você devia procurar um médico...- Mudo de assunto, colocando a mão na testa suada dela – Você está com febre. Ficar sóbria por conta própria é perigoso, mãe.

—Não se preocupe comigo, Hazel. Eu vou ficar bem...- Assim que termina de dizer isso, Amélie cambaleia para frente e só não cai direto no chão porque eu a seguro.

—Mãe? Mãe?! – Não tenho forças para mantê-la em meus braços, por isso a deito no chão, devagar. Seu suor e seus calafrios aumentam, e seus olhos estão fechados – Pai! Socorro!

Grito isso com lágrimas nos olhos. Estou assustada, muito assustada.

Ouço os passos rápidos de Harvey Talbot na escada, e ele chega ao meu quarto em menos de trinta segundos.

—O que foi?! – Pergunta com os olhos arregalados. Assim que coloca os olhos em mim, segurando a cabeça de minha mãe no colo enquanto ela se contorce, ele vem até nós duas e a segura em seus braços, erguendo-a do chão – Vem comigo, Hazel!

Assinto, seguindo o meu pai pelo corredor. Com minha mãe em seus braços e vestido todo de preto, parece até mesmo a própria morte a carregando para longe. Entramos no quarto dos meus pais, e ele repousa o corpo dela na cama.

Seguro um braço no outro, tentando impedir a tremedeira, mas não consigo evitar.

—Busque água, rápido! – Ele grita, e percebo que Harvey também está trêmulo. Assinto, e tento enxugar as lágrimas dos olhos para que a minha visão pare de ficar embaçada, e faço o que ele me pediu. Volto com uma jarra de água gelada e entrego a ele.

—Pai? A mãe...ela usou? – Pergunto já me contorcendo, com medo da verdade. Mas o meu pai faz que não com a cabeça, e com um pano umedecido pela água, esfrega o rosto dela.

—Isso é uma merda de uma crise de abstinência...- Sua voz sai vacilante pelo nervosismo, e ele busca no banheiro um balde. Meu pai se senta ao lado dela, o balde em mãos e o olhar preocupado. Em questão de segundos, minha mãe se senta e vomita no balde, Harvey segurando os seus cabelos enquanto isso.

Observo a cena completamente estática. Eu a amo tanto.

Eu não entendo nadinha sobre ela, nunca entendi. Mas eu a amo. Me encosto na parede como se ela pudesse me dar o apoio de que preciso para não cair no chão, enquanto tampo a boca com as mãos para que o meu choro não faça barulho.

Ela foi feliz um dia. Foi feliz antes de mim. E se está tentando ficar sóbria, é por mim.

A culpa é minha. Se ela morrer, a culpa é minha.

Choro descontroladamente enquanto o meu pai tenta ajudá-la.

XXX

Uma hora se passou, e a crise dela durou o tempo inteiro. Entre vômitos e tremedeiras, agora ela está quase dormindo com o pano molhado em sua testa enquanto o meu pai segura a sua mão. Observo a cena completamente confusa, porque nunca sei o que esperar do meu pai...afeto ou violência? Nunca dá para saber. Ele pode te abraçar agora e te enforcar depois. Estou sentada em uma poltrona, abraçada em minhas pernas. Já tomei um banho quente e coloquei uma roupa de frio para me esquentar, um moletom preto e calças jeans escuras. Soltei o cabelo para que me abrigasse do frio, também. Desisti de ir a aula, não conseguiria me concentrar. Não com ela nesse estado.

Ficamos em silêncio, meu pai e eu, apenas observando o peito de Amélie subir e descer devagar.

—Hm...a multidão, a multidão...- Ela começa a murmurar. Meu pai franze o cenho, assim como eu – Eles sabem todas as letras, Harvey...

—Está delirando, por causa da febre...- Meu pai constata, passando as mãos pelos cabelos pretos que vão até seus ombros – Vai ser um dia longo.

—George White é perigoso, Harvey...- Ela sussurra um pouco mais alto, e só de ouvir o nome desse homem saindo dos lábios da minha mãe faz com que eu me encolha.

Não vou pensar sobre isso agora. Não vou abrir essa caixinha de pandora. Se a minha cabeça decidiu dar tela branca sobre tudo isso, que assim seja.

—Amélie, você está delirando, meu amor...- Meu pai beija a mão dela, claramente preocupado.

—Ah, ela é tão linda, querido...nossa Hazel é tão linda...- Ela se sacode levemente enquanto fala isso, os olhos fechando e abrindo o tempo inteiro, o rosto molhado de suor, os cabelos compridos e quase vermelhos espalhados em seu rosto – E ele a faz tão feliz, Harvey. Tão feliz...

Meu coração fica gelado e pesado. O ar mal consegue chegar nos meus pulmões. Fico estática ao ponto de não conseguir mover um músculo. Os olhos castanhos do meu pai me fitam, confuso por um momento.

E então...

Quase posso ver um fio de eletricidade nascer em sua íris.

Quem faz a Hazel feliz, Amélie? – Me agarro mais em minhas pernas, o coração socando a caixa torácica como se quisesse escapar.

—Sam Winchester...ele é bom, Harvey...- E após murmurar isso, adormece.

Meu pai fica encarando a parede por um tempo, em silêncio. Meu corpo inteiro fica tremendo sem parar, os olhos bem abertos e marejados.

—Você consegue se explicar, Hazel? – Meu pai finalmente me olha. Uma mescla de ódio e desprezo está pincelada em seu olhar, mas não consigo abrir a boca.

Apenas sinto o suor em minhas mãos e uma tremedeira descontrolada percorrendo meu corpo inteiro. Meu pai se levanta bruscamente e caminha em minha direção, o punho fechado. Ele se ajoelha frente a poltrona, ficando com o rosto na mesma altura do meu.

—Fala, porra! – Ele grita, mas eu me contraio ainda mais. Tento abrir a boca para falar, mas não consigo.

Nada sai. Estou em estado de choque.

O que se segue é rápido demais. Mal vejo sua mão pesada se erguendo no ar e já sinto o estralo em meu rosto. As lágrimas parecem voar pelo ar em câmera lenta, junto com um sangue que começa a escorrer violentamente do meu nariz pelo tapa que me atingiu. A parte esquerda inteira do meu rosto começa a queimar, como se brasas estivessem dançando pela minha pele. Harvey então me puxa pelos braços, violentamente, fazendo com que eu me levante. Ele me empurra com tudo na parede, e solto um grito quando minhas costas se chocam contra a parede.

—Para! Por favor, para...- Minha voz sai fraca entre os soluços, e a minha visão fica turva.

—Você me deve uma explicação, porra! Você me prometeu...- Sua voz sai entredentes, um tom pesado de traição em suas palavras, como se eu o tivesse apunhalado pelas costas – Me prometeu que ficaria longe daquele moleque...Há quanto tempo, Hazel? Há quanto tempo?

—Pouco mais de três meses...- Consigo formular a frase com dificuldade. Não adianta mais negar nada. Não há saída, meu pior pesadelo se tornou realidade. Ele sabe. Como anteriormente, não vejo o tapa chegando, só o sinto estralando em meu rosto, dessa vez do lado direito. Fico tonta pela força que ele emprega em sua mão ao me atingir, e sinto um gosto de ferro invadindo a minha língua.

Cuspo o sangue que se acumula na minha boca, quase me engasgando.

—Eu te odeio, sabia? Eu te odeio por ser tão burra, Hazel! – Ele grita comigo, e segura os meus ombros, me encarando com o rosto bem perto do meu – Ele é perigoso, aquele moleque. Eu sempre quis proteger você, porra!

Começo a rir, entre o choro. É uma risada involuntária e rápida, entoada por escárnio e lágrimas.

—E quem me protege de você, pai? – O encaro, muito tonta e com a visão totalmente embaçada pelas lágrimas e pelos golpes.

Harvey está coberto por raiva, encharcado pelo orgulho ferido. Ergue sua mão esquerda que agarra a minha testa, e bate com a minha cabeça na parede.

Sinto o impacto e ouço o barulho da parte de trás da minha cabeça se chocando com a parede, e uma dor lancinante se instalar pelo meu crânio.

Meu corpo quer desmoronar, mas meu pai me segura, pressionando as minhas costas na parede com força.

—Você é uma porra de uma vadiazinha desobediente e inconsequente...- Ele murmura, as unhas cravando a pele dos meus braços – Eu te avisei, não avisei? O que eu faria se você me desobedecesse?

Estou em estado de confusão mental por culpa do golpe que levei na cabeça, mas mesmo assim sei bem o que ele quer dizer.

—Não. Você não vai encostar nele...- Digo isso em um tom desafiante, e ele me larga, fazendo-me cambalear.

—Eu vou enterrar a porra daquele moleque a sete palmos, eu avisei você! – Ele se direciona até a porta, mas eu o sigo, cambaleante, e seguro o seu ombro.

—Pai, para! Para com essa merda toda, por favor...- Meu pai se vira bruscamente, e me empurra com tanta força que caio direto no chão do corredor, me estatelando. Ele retira o cinto da sua calça e começa a me açoitar com uma força descomunal. Cubro o rosto instintivamente e me encolho em posição fetal enquanto ele me atinge nos braços, a ardência aumentando conforme o cinto me atinge na pele, cortando-a. Sinto uma ardência tão intensa que começo a me contorcer.

—Você não sabe das coisas que eu sei, Hazel. Você não faz ideia...- Não consigo pensar sobre o significado da sua frase, não com a dor que estou sentindo. Quando ele para de me atingir e joga o cinto longe, abro os olhos e vejo que feridas se abriram em meu braço, ensanguentando minha pele e o carpete cinza.

Estou trêmula e tento me levantar, mas Harvey me chuta com força, atingindo a minha barriga.

Tento dar um grito que não sai, e o ar parece lutar para chegar aos meus pulmões. Não consigo me mexer.

—Você causou tudo isso, Hazel. Se eu tenho que matá-lo, a culpa é sua...- Meu pai diz, ao se ajoelhar do meu lado. Tento abrir a boca para implorar que ele não faça isso, que me escute.

Meu espírito se quebra por completo. Durante todos esses anos, ele foi quebrando a minha confiança e a minha fé, minuciosamente. Hoje, pareço sentir seu golpe final disferido a mim. Um vazio me preenche por dentro.

Ele devia me amar.

Meu pai devia me amar.

Tento fazer a voz sair, mas mal estou conseguindo respirar, como posso falar? Ele percebe minha tentativa frustrada de me comunicar, e isso parece enfurecê-lo mais ainda. Ele ergue o punho, e me atinge em cheio com um soco.

Tudo fica escuro.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

Fechei o semestre com as melhores notas, e fiquei na lista honrosa de exatas e consegui um destaque em história, também. Fico muito orgulhoso olhando o meu boletim, porque sei o quanto me custou chegar até aqui.

Me sento em uma das carteiras, e guardo o meu boletim dentro do bolso do moletom preto que estou vestindo, e visto o capuz na tentativa de parecer invisível. Não vejo a hora do sinal tocar, porque Hazel faltou hoje e ela não é do tipo que falta. Fico pensando em um milhão de coisas que podem ter lhe acontecido, mas tento me acalmar. Não posso ser tão paranoico assim....vai ver não acordou se sentindo bem.

Olho ao redor, e repouso o olhar na carteira perto da janela, onde ela geralmente gosta de se sentar.

E sinto um calafrio.

XXX

Começo a caminhar para casa, meio pensativo. Dean está fora da cidade, parece que John ligou para se encontrar com ele ou algo assim, meu irmão não deixou muito claro sobre o que se tratava. Uma pequena parte minha fica imaginando se o John Winchester vai dar as caras, já que o Natal se aproxima...

Chacoalho a cabeça, afastando a esperança. Não quero criar expectativas idiotas, não mais. Já foram muitos natais frustrados, eu já devia estar acostumado a essa altura, honestamente. John Winchester não liga para natais ou aniversários.

Ele liga para vingança, e qualquer um que se coloque entre ele e o demônio de olhos amarelos irá pagar o preço. Mas isso não importa.

Não mais. Porque tenho Hazel em minha vida, e ela faz tudo ficar melhor. Meu coração parece sangrar menos pelo vazio deixado por todas as obscuridades que rodeiam minha vida, e a escuridão inegável que mancha o meu interior por completo parece se enjaular quando ela está por perto.

Só espero que Dean volte para o Natal. Dean Winchester é uma parte vital da minha vida, porque ele sim nunca me deixou passar ocasião especial nenhuma sozinho.

Dean e Hazel. Só não me sinto sozinho no mundo porque eles dois estão comigo, e com eles em minha vida, tudo parece certo.

Chego em casa, exausto e preocupado, e quase escorrego na calçada úmida pela neve quando meu coração acelera assim que meus olhos encontram Harvey Talbot sentado nos degraus da frente do pórtico de minha casa. Sua boca semiaberta libera a fumaça do cigarro preso em seus dedos, e seu olhar está enegrecido.

—Sam Winchester. – Ele pronuncia o meu nome como se houvesse veneno em cada letra – Nós temos assuntos pendentes.

Seu olhar recai sobre mim como se ele fosse alérgico a minha imagem. Cravo as unhas nas palmas das mãos quando fecho os punhos, o maxilar já tenso pela raiva subindo em ondas pelo meu corpo.

—Temos, é? – Questiono, me aproximando, as narinas já infladas pela ira. Harvey traga o seu cigarro uma última vez, e atira a guimba para longe ao se levantar e ficar de frente para mim. Olho para seu rosto, que é mais baixo que o meu. Nunca encontrei nenhum cara que fosse maior do que eu, na verdade. Mas isso não parece intimidá-lo.

—Temos, Winchester. Quer que eu acredite sinceramente que não está comendo a minha filha? – Sua voz sai carregada de desprezo.

Meu corpo inteiro se enrijece por ele ousar falar dela desse jeito.

— Não fale dela dessa maneira. Nunca mais. - Digo entre entredentes. Não há ponto em negar mais. Ele sabe, se me confrontou. Não vou hesitar.

—Você deve ter sérios problemas, garoto, se acha que pode me ensinar sobre como devo falar sobre a minha filha. E eu a respeitaria mais se ela não estivesse fazendo exatamente o oposto de tudo o que lhe foi dito. Ela me desrespeitou, profundamente. Por falar em desrespeito...há quanto tempo?

Travo o meu maxilar e não tiro o olhar do seu. Não desviaria meus olhos dos dele nem se minha vida dependesse disso. Ele está maluco se acha que me intimida.

—Desde o dia em que você torceu o pulso dela e a deixou sozinha sem cuidado algum para ir sabe-se lá para onde... - Tento relaxar um pouco os punhos, mas não consigo. Todo o meu corpo está tenso. Harvey parece surpreso pela minha sinceridade - Eu a amo, Harvey. A amo e a respeito de todo o meu coração. E por esse motivo, respeitei a vontade dela de manter tudo em segredo até que ela sentisse que você iria aceitar as coisas numa boa.  Nunca gostei da ideia, mas jamais passaria por cima da vontade dela. Principalmente sabendo o tipo de coisa que você já fez com ela. – As palavras saem com um gosto amargo, só de me lembrar de todas as vezes que esse desgraçado tocou nela.

Harvey sorri um sorriso sombrio.

—Você deve me achar o vilão. Mas eu sou apenas um pai protetor, Winchester. Se minha filha desobedece, ela apanha. É assim que fui criado e é assim que tem que ser. Não sou um monstro, sou um pai rígido. Hazel sempre foi uma garota boazinha, sempre andou na linha...- Ele dá um passo a frente, e passa a mão no próprio rosto, irritado – E aí você apareceu.

—Você só pode estar de brincadeira. Ou você é completamente desconectado da realidade e acredita nas próprias mentiras, ou é apenas cruel. Você a machuca, e você não tem esse direito. Você não está a educando, está apenas machucando ela! – Meu sangue ferve, e eu quero arrebentar a cara dele, mas preciso me conter. Preciso ir com calma – Você deveria se perguntar os motivos pelos quais sua filha tem tanto medo de você, para querer esconder as coisas, para começo de conversa. Eu não sei em que porra de vida que você foi criado para acreditar que pode bater em uma garota e justificar isso com amor paterno...

—Não vim até aqui para ficar ouvindo você ranhetar sobre como acha que devo chefiar a minha família, seu moleque insolente...- Harvey me empurra, e o meu sangue esquenta ainda mais. Ele está pedindo para isso aqui ficar bem longe de uma conversa civilizada – Vim aqui para dizer a você, de homem para homem...que você nunca mais vai vê-la, Winchester.

Ergo as sobrancelhas e solto uma risada debochada.

—Você não vai me impedir de ficar com ela, Harvey. Eu já disse, eu a amo. Eu a amo e nem você, nem deus ou o diabo me impediriam de ficar com ela, me entendeu? – Me aproximo dele, completamente tomado por ódio e com o corpo pronto para violência, caso se faça necessário – E eu é quem vou te falar uma coisa, de homem para homem. Você nunca mais vai tocar nela, me ouviu?

Fico com o rosto muito próximo ao seu, as narinas infladas e o olhar ameaçador. Seus olhos enegrecidos não desviam dos meus, mas um sorriso irônico se forma em seu rosto, me confundindo. Harvey dá um passo para trás e ergue os braços no ar, como se quisesse que eu olhasse para suas mãos.

—Tarde demais, Winchester. Está errado se pensa que está no controle da situação...- Meus olhos pousam no sangue seco em seus punhos, e meu estômago se revira – E se eu a puni, a culpa é toda sua.

O meu coração se despedaça em um milhão de pedacinhos. Sinto uma fúria irradiando dos meus ossos até as extremidades do meu corpo, e afasto a tontura que me acomete por imaginar o que ele pode ter feito com ela.

Dou as costas para ele e corro até a casa dela, imediatamente. Sem pensar duas vezes.

Tento abrir a porta, mas está trancada. Harvey vem caminhando, da minha casa até a sua calçada, calmamente. Me afasto um pouco da porta e então a chuto com toda a minha força, arrebentando todas as trincas de uma vez só. Entro na casa completamente escura e meus olhos a procuram, desesperadamente.

—El! – Grito, a dor evidente na minha voz. Não ouço nenhuma resposta, e sinto que vou vomitar.

Ele não mataria a própria filha, mataria?

Sinto vontade de chorar só pelo pensamento de perdê-la, mas enterro o choro no fundo da minha garganta.

Subo as escadas correndo, quase tropeçando nos degraus pelo desespero. Quando me vejo no topo da escada, entro no corredor e me deparo com Hazel.

O que havia restado dos pedaços do meu coração quebrado parece se estilhaçar em um milhão de vezes mais, ao colocar os olhos nela. Seu corpo magro e pequeno está estirado no chão, sangue por todo o lado, e está desacordada.

Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta. Ela não pode estar morta.

Corro até ela e me ajoelho ao seu lado. Seu rosto está encoberto pelos cabelos castanhos, que eu afasto com os dedos trêmulos. Suas bochechas estão vermelhas, as marcas dos dedos de Harvey de ambos os lados. Há uma trilha de sangue seco entre seu nariz e a boca, e os braços estão cheios de cortes, provavelmente causados por alguma coisa que ele usou para açoitá-la.

A primeira coisa que faço é colar a orelha em seu peito. Meu corpo inteiro está tomado pelo medo de não ouvir as batidas do seu coração. O pavor de ouvir o silêncio.

Respiro aliviado ao ouvir seu coração acelerado batendo, pulsando vida.

Não está morta. Meu Deus, obrigado. Obrigado por mantê-la viva.

Ergo sua cabeça com cuidado, e a seguro em meu colo, me agarro a ela desesperadamente. Sinto seu rosto gelado, como todo o resto de sua pele. Sinto o cheiro metálico do seu sangue preenchendo o ambiente, e beijo o topo da sua cabeça. Não percebi quando foi que as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, e não me importo em fazê-las pararem. Estou tremendo e soluçando, e só desejo que alguém pudesse me dizer o que fazer.

Queria que minha mãe estivesse aqui.

—Hazel? El....- Sussurro, entre o choro, tentando acordá-la enquanto a tenho em meus braços – Linda, acorda...

Mas ela sequer se move. Sua respiração está fraca, e eu me levanto, com ela no colo. Seu corpo repousa em meus braços, gelado e inerte. Desço as escadas enquanto a seguro, e desde que vi seu corpo desacordado no chão, apaguei Harvey completamente da minha mente. Só pensei nela e na dor excruciante de vê-la ferida.

Quando estou entre a cozinha e a sala, me deparo com ele parado na porta fechada atrás de si, a arma apontada para mim, suas mãos trêmulas.

Meu coração gela, não por medo de ser atingido. Mas por medo de ele errar e acabar acertando-a ao invés de mim.

—Harvey, abaixe essa arma...- Digo com a voz calma, e não me movo – Esquece a porra da raiva que você está sentindo e me deixe levá-la ao hospital, porra!

—Não! – Ele grita, se aproximando mais de mim – Ela já apanhou assim antes, eu não fiz nada que ameaçasse a vida dela. Ela não precisa ir ao hospital. E é você que eu quero, Winchester!

— Não pode estar falando sério! - Respondo, desesperado por tê-la desacordada em meus braços, totalmente ferida enquanto há uma arma apontada em nossa direção - Ela é a sua filha! A sua filha, porra! Ela precisa de ajuda!

— Ela precisa que você fique longe dela, isso que ela precisa! - Ele está descontrolado. A mão ainda tremendo, segurando a arma com o dedo muito próximo ao gatilho.

Quando vou abrir a boca para responder, Hazel se remexe em meus braços e geme baixinho. Seus olhos se abrem devagar, e por um breve momento sinto um alívio gigantesco ao ver sua íris me encarando. Está atordoada, mas o fato de ter conseguido acordar é um bom sinal.

—Sam...? - Ela murmura com a voz ferida, o olhar confuso e semiaberto em meu rosto.

—Coloque-a no sofá e se afaste dela! - Harvey grita a plenos pulmões - Ou eu vou atirar, porra!

—Vou fazer isso, ok?! - Digo tentando soar calmo e firme, olhando dela para a arma apontada para nós dois - Não faça nenhuma besteira, Harvey. Só vou me mexer para colocá-la no sofá...

Não sei como sair da situação. Não trouxe uma arma comigo, não há ninguém por perto e eu não vou fazer nada que coloque a vida dela em risco. A arma dele me segue enquanto dou a volta no sofá e a coloco ali, com o maior cuidado do mundo.

Dou a ela um último olhar. Não porque eu aceitei morrer, não. Eu vou tentar fazer de tudo para sair dessa situação, mas as probabilidades não estão ao meu favor. Harvey Talbot é uma serpente inteligente, sabia muito bem que quando eu a visse nesse estado, me desestabilizaria totalmente.

Ela se remexe confusa, enquanto está deitada, mas não tem forças para muito mais do que isso.

Ergo as mãos no ar, e não tiro os olhos dos de Harvey. Me aproximo, ficando a pouco mais de dois metros dele.

—Qual o seu plano, Harvey, hm? Vai executar um garoto desarmado de dezessete anos e depois o que, exatamente? – Estou tentando ganhar tempo. O único motivo pelo qual não estou morto no chão nesse exato momento, é pelo fato de que ele está hesitante, nervoso. O braço inteiro treme ao segurar a arma e claramente não está em juízo perfeito.

—Você seria a ruína dela, Winchester. E você sabe disso, seu filho da puta! – Um suor denso lhe escorre o rosto, as veias do pescoço lhe saltam e o olhar com pupilas dilatadas sequer desvia por um segundo. Sou mais alto e com certeza mais habilidoso, mas Harvey tem mais massa corporal. Estou analisando tudo minuciosamente, porque sei o que isso aqui vai virar em instantes – Estou disposto a cumprir pena se isso significar que você estaria debaixo da terra, bem longe dela.

—Eu nunca entendi a sua aversão por mim, Harvey. Desde o primeiro momento...- Um vinco se forma em minha testa, cujo uma gota de suor despenca até a minha bochecha – Mesmo quando soube que eu quase morri naquele acidente para tentar salvá-la, mesmo quando estava claro que eu jamais iria machucá-la...qual o seu problema comigo, Talbot?

Um sorriso enegrecido brota em sua feição como uma rachadura.

—Você sabe, Winchester. Ou devia saber...e se não sabe agora, caso eu o deixasse vivo para que descobrisse, então um dia saberia. Você não é bom para ela, nem nunca vai ser. Tem algo horrível dentro de você, gritando para sair...- Harvey dá um passo à frente, quase colando a arma na minha testa. Meu coração se acelera descompassado, seu olhar penetra o meu como uma navalha – Eu sei muito mais do que você pensa que eu sei, Winchester. E eu vou até o inferno para proteger a minha garotinha.

Sinto uma náusea ao ouvi-lo usar essa expressão e então fico extremamente confuso. Não sei ao que ele está se referindo. Não poderia saber sobre a minha família...poderia?

Porém, caso saiba...isso explicaria muita coisa.

—Alguma última palavra, Winchester? – Ouço seu dedo destravar a arma, e disfiro a ele um sorriso irônico.

—Vai para o inferno, sogrinho. — Antes que ele aperte o gatilho, o desarmo com um golpe forte em seu braço trêmulo. A arma desliza pelo chão, e sinto um alívio imenso me invadindo por isso ter dado certo.

Obrigado, John Winchester, por me treinar como a porra de um soldado militar desde os seis anos de idade. Os traumas que você deixou estão me sendo úteis hoje.

Vejo o espanto em seus olhos e me aproveito da situação para lhe desferir um soco bem no meio do maxilar, arrancando sangue da sua boca imediatamente. Ele cambaleia para trás por um momento, mas então avança na minha direção, tentando me atingir com seu punho. Eu recuo rapidamente, escapando do seu golpe. Ele tenta correr em direção a arma, e eu empeço a sua passagem e tento derrubá-lo com uma rasteira, mas ele antecipa o meu movimento e se esquiva, o que me deixa vulnerável por dois segundos.

Dois segundos era o que ele precisava para me atingir, fazendo o meu nariz sangrar e meu corpo cambalear para trás. Não levo nem três segundos para me recuperar, e pego um impulso rápido que serve de apoio para acertar um murro bem no meio da sua barriga. Harvey geme de dor, mas não vacila por muito tempo. Ao apoiar os braços no balcão da cozinha os seus olhos encontram uma garrafa de vinho parada na superfície, vazia. Sem hesitar, Harvey quebra a garrafa, estilhaçando-a em mil pedacinhos, exceto pelo cabo pontiagudo que ele segura em mãos.

Quando ele vem na minha direção usando toda a força do seu corpo contra mim, prensando-me na parede, uso muita força para conter os seus braços que seguram a parte estilhaçada e pontiaguda da garrafa na direção do meu rosto. Consigo empurrá-lo, e ele faz um movimento no ar com o objeto afiado, tentando me atingir, mas eu me esquivo rápido como um sopro.

Ao olhar para ele, ao ver sua figura patética tentando me matar, parece que o mundo fica em câmera lenta. Porque me lembro de todas as vezes que ele machucou o amor da minha vida chamando isso de proteção. Um ódio crescente me invade e tudo ao meu redor parece estar em silêncio. Estou embebido em adrenalina.

Um comichão de escuridão me coça por dentro do peitoral, louco para sair. A escuridão me preenche, parece pulsar em minhas veias, crescendo.

Eu fico violento quando ela pulsa assim.

De repente, minha mente é tomada por um milhão de maneiras em que eu poderia matá-lo, aqui e agora. E em como eu adoraria fazer isso, prazerosamente. Decido que vou ceder ao meu lado obscuro, e vou para cima dele com a intenção de acabar com tudo.

Mas então, ouço a voz de Hazel gritando o meu nome:

—Sam! – Cometo o erro de olhar na sua direção, e a vejo cambaleando, se apoiando ao sofá e com lágrimas nos olhos, coberta em seu próprio sangue seco, apavorada por ver seu pai e seu namorado se enfrentando.

Exatamente como ela temia desde o começo.

A escuridão volta a se encolher, se esconde por dentro dos meus ossos. Esse é o pai dela, porra. Uma merda de um pai, mas ainda assim o único que ela tem. Não posso achar que ela me perdoaria caso eu o matasse em um surto de descontrole de raiva, como agora. Ela jamais me perdoaria.

Nesse momento, sou tudo o que ela não merece. Uma voz dentro de mim dá razão as coisas que ele disse: “Você não é bom para ela, nem nunca vai ser”. Ela não merece as mãos de um assassino a segurando a noite, não.

Merece um homem bom. E eu vou ser um homem bom, para ela.

No entanto, nesse mísero segundo em que o meu olhar cruzou o dela, Harvey se aproveitou da minha fraqueza momentânea e me atingiu com a parte pontuda da garrafa, bem no ombro. Dou um grito de dor quando o vidro perfura a minha carne, e cambaleio para trás.

—NÃO! – Ela grita, com toda a sua força. Me apoio na bancada da cozinha, e com a mão trêmula, retiro o vidro da minha carne. O sangue começa a escorrer abundante e quente, mas não deixo isso me abalar. Vou para cima dele com tanta força, que o derrubo no chão.

Começamos a rolar pelo carpete, hora eu consigo ficar por cima do seu corpo, hora ele me vence por ter me atingido e me enfraquecido. Quando consigo ficar por cima dele e lhe dou um soco de direita, Harvey enfia o seu dedo indicador dentro da minha ferida exposta, me fazendo gritar de dor.

—Pai, para! Por favor, para! – Os gritos de Hazel são tão altos e estridentes, encharcados de dor. Olho para ela por um segundo, e vejo suas mãos tampando sua boca, seu rosto vermelho coberto por desespero e seu corpo frágil em estado de choque.

Odeio fazer parte de um momento que a está machucando tão profundamente, mas não tenho escolha. Mais uma vez eu me traio ao olhar para ela por tempo demais.

Hazel é o meu calcanhar de Aquiles, e Harvey parece perceber isso, pois alcança a arma que estava a pouco mais de um metro de nós dois.

Ele consegue subir em cima de mim, e cola o cano da arma na minha testa.

Tudo é rápido demais.

Busco o olhar de Hazel uma última vez. Quero que seus olhos sejam minha última visão, porque sei que agora ele não irá hesitar em puxar o gatilho.

Mas não sou só eu que olho para ela. Harvey também olha. Hazel está com o caco de vidro que havia me atingido em mãos, o segurando próximo ao seu pescoço, o peito subindo e descendo em desespero completo, os olhos arregalados e obstinados.

—Tira essa porra de arma da testa dele, pai! – Ela grita a plenos pulmões, as mãos trêmulas ao segurar o objeto pontiagudo tão perto da sua jugular pálida e inofensiva – Eu juro por tudo o que me é sagrado que eu vou rasgar a porra da minha garganta se você não sair de cima dele agora, seu filho da puta!

—Hazel, não! – Grito para ela. Não suporto a ideia de que ela atente contra a própria vida. Prefiro morrer a vê-la se machucar.

—Você não faria isso...- Harvey especula assustado, com decepção em sua voz. Parece estar incrédulo.

—Vai pagar para ver? – Ela enfia a pontinha do vidro no início da base do pescoço, e uma gota de sangue vermelho brota em sua pele como um rubi.

—NÃO! – Gritamos, seu pai e eu, em uníssono. Harvey sai de cima de mim, e resolve apontar a arma na direção dela, que fica imóvel, o caco de vidro caindo da sua mão, um fino rastro de sangue traçando o seu pescoço.

—Você se despreza tanto assim?! – Ele grita com ela – Se odeia tanto que morreria por ele?!

Antes que ela possa responder, me levanto com um solavanco e me coloco na frente dela, entre o cano da arma e o monstro que a segura.

Fecho os olhos esperando o pior, segurando-a atrás de mim, impedindo que se mova. Ouço ela gritando, e me sobressalto quando ouço um estrondo.

Por um momento, penso ser o barulho do tiro. Mas abro os olhos ao perceber que na verdade, John e Dean Winchester entraram pela porta, já antes quebrada para valer, escancarando-a por completo. Meu pai aponta uma Glock G19 na direção de Harvey.

—Solta essa arma, Talbot. – Meu pai diz com a voz mais fria do mundo. Está vestindo uma roupa toda preta, a barba está por fazer e parece exausto – Não me faça ter o prazer de pintar a sua cozinha de vermelho.

Harvey hesita por um momento, e o meu irmão também ergue uma arma na direção dele, o olhar afiado como uma adaga.

—Tampa os olhos da garota, Sammy. Ela não precisa ver isso. – Dean fala isso em um tom obscuro. Hazel grita, implorando que tudo isso pare. Sinto um rasgo no peito a cada grito seu.

Harvey se vê encurralado, e por um momento, não desgruda os olhos dos meus.

—Se algo acontecer com ela, a culpa é toda sua. Não vá chorar no túmulo dela, depois...- Ele diz isso lentamente, e joga a arma no chão, se dando por vencido.

Há coisas demais dentro da minha mente agora, para que eu tente interpretar o que ele quer dizer com tudo isso. Harvey Talbot parece saber de algo, ou melhor, parece acreditar em algo. Mas não consigo pensar nisso agora. Não com a dor lancinante da ferida aberta e jorrando sangue em meu ombro, não com Hazel ferida por dentro e por fora bem atrás de mim, trêmula.

Não há espaço para mais nada.

—Boa escolha, canalha. – Meu pai diz, travando a arma e a colocando no cós do jeans, andando lentamente na direção de Harvey, que tem o rosto ensanguentado pelos meus golpes. Ele é bem mais alto que Harvey, e para de andar só quando o seu rosto está praticamente colado no do oponente. – Sam, cubra mesmo os olhos da garota. Eu vou ensinar esse filho da puta desgraçado que ninguém se mete com o meu filho e sai ileso disso...

Meu pai o atinge com força, bem no meio do rosto. Posso ouvir o som do seu nariz se quebrando, e imediatamente seguro o rosto de Hazel contra o meu peito. Ela está chorando e se debatendo, mas eu sou mais forte. Odeio usar minha força para contê-la, mas ela está desesperada e ferida.

Não posso deixar que se solte, e não posso deixar que veja isso.

—Shhh...- Sussurro para ela, a boca no topo da sua testa, apertando-a contra o meu peito enquanto ela usa toda a sua força para tentar se desvencilhar de mim, em vão.

—Ouvi dizer que você gostar de bater em mulher, Harvey...isso é verdade? – John questiona entredentes, o olhar frio recaindo sobre o homem que ele segura pelo colarinho – Responde, filho da puta! – Meu pai grita, enquanto sova o rosto do cara com socos, progressivamente mais fortes a medida em que ele continua. Sangue começa a jorrar do rosto de Harvey, e vejo um dos seus dentes voando pelo ar – O que foi? Não consegue falar? – Meu pai bate com a cabeça de Harvey na bancada da cozinha, e honestamente não sei como ele não desmaia imediatamente.

Não sei o quão longe meu pai vai ir para retaliar a situação com Harvey Talbot, e seria um deleite para mim poder apreciar cada segundinho de sofrimento dele. Mas tenho algo muito maior para me preocupar, algo muito mais importante que a vingança.

Hazel.

—Não o mate! Por favor, não o mate...- Hazel implora, meio aos soluços, o rosto enterrado em meu peito. Estou tremendo, porque fico em estado de choque ao vê-la transtornada assim. Isso mexe com a minha cabeça, me deixando tonto. Ter que usar minha força para contê-la, mesmo que sem machucá-la, também me abala profundamente.

—Tire a garota daqui, Samuel. – Meu pai diz isso, sacudindo a mão no ar, limpando o sangue de Harvey dos nós dos dedos – Agora!

Uso a minha força para sair do ambiente, arrastando-a comigo. Ela se rebate e grita, mas isso não adianta de nada. Consigo chegar primeiro até a frente de sua casa, e percebo que o meu sangue está manchando a pele e a roupa dela. Também consigo notar uma tontura me assolando, graças ao ferimento e a perda de sangue.

Mas vou aguentar firme.

Com muita insistência e paciência, entro com Hazel pelo pórtico da minha casa, e então finalmente para dentro. Passamos pelo pequeno Hall e vamos em direção a sala.

Hazel afoga o rosto no meu peito e chora descontroladamente. Acaricio o topo da sua cabeça e aperto seu corpo contra o meu em um abraço, delicadamente.

—Shhhh...- Sussurro para ela enquanto as minhas mãos acariciam agora seu rosto. Seu olhar devastado repousa sobre o meu, e me estilhaço em mil pedacinhos ao sentir sua dor – Meu pai não vai matá-lo, Hazel. Se acalme, El...

Digo isso com um nó na garganta, porque não sei se é verdade. Apenas torço para que seja. Ela não precisa de mais dor, de mais perdas. Embora ele seja um monstro, ela não quer ver o pai morto. Hazel é uma pessoa muito melhor do que eu.

Os soluços dela vão cessando, e ela balança a cabeça de maneira confusa, enquanto tento limpar suas lágrimas com o polegar, mas acabo piorando a situação, manchando seu rosto com sangue fresco e quente.

—Eu achei que você fosse morrer e foi o momento mais assustador da minha vida...- Ela quebra o silêncio com a voz rouca e falha, por tanto chorar e gritar.

Me encosto na parede, completamente tonto, uma tremedeira me acometendo.

Aguente firme.

—Por um momento, também pensei que você fosse morrer, El...- Digo a ela com a voz quebrando, quase posso ver as palavras se estilhaçando no ar - Nunca mais coloque a sua vida em risco pela minha, Hazel. Nunca mais...

Encosto a minha testa na dela, de olhos fechados. Estamos ofegantes pela adrenalina que vai deixando aos poucos os nossos corpos, dando lugar para a dor física irromper de uma vez pela superfície das nossas peles. Não conseguimos dizer mais nada. Há tanto a ser dito, que o silêncio parece ser a escolha mais sábia nesse momento. Há muito o que assimilar de uma vez.

Nossos olhares se cruzam, transbordando um milhão de coisas. E o que acontece a seguir não é a coisa certa a se fazer nessa situação, porque estamos em um péssimo estado onde a prioridade seria ir para a emergência. Mas não parecemos saber fazer a coisa certa. Se fosse certo, não seria a gente.

Hazel acaricia o meu rosto, também ensanguentado, e seu olhar é de dor e súplica.

Súplica por algo que sei exatamente o que é, e que também preciso, tanto quanto preciso respirar nesse momento.

Seguro seu rosto em minhas mãos e colo meus lábios com os seus, fecho meus olhos com força ao sentir os seus lábios, sentindo coisas demais, estou em combustão.

Ódio. Ira. Medo. Raiva. Amor. Dor. Frustração. Culpa. Desejo.

Tudo queimando e explodindo no meu peito.

Sinto o gosto do nosso sangue se mesclando no beijo, dançado em nossas línguas. O sabor metálico deveria causar estranheza, mas não é isso o que sinto.

Eu sinto o oposto.

Interrompo o nosso beijo imediatamente. Tiro os meus lábios dos seus assim que percebo o tipo de desejo imenso que senti ao sentir o gosto do seu sangue na minha língua.

Isso não é certo. Nenhum pouco. E eu vou me forçar a esquecer para sempre o que acabo de sentir. Assim como vou esquecer a sensação pulsante em minhas veias assim que a primeira gota de sangue tocou a minha língua. Ela me olha, um vinco entre seus olhos, como se também tivesse sentido algo...diferente.

Mas nenhum de nós abre a boca para falar sobre o que acabou de acontecer.

A porta de casa se abre, e Dean entra no cômodo, completamente apressado e transtornado.

— Sam, Hazel...vamos para o hospital. - Os olhos de Dean se arregalam ao ver a quantidade de sangue que irrompe da minha ferida - Depressa!

Meu irmão se coloca entre mim e Hazel, dando apoio a ambos nós dois, que estamos fracos e trôpegos.

Quando estamos passando pelo gramado coberto por neve, vejo o rastro vermelho que deixamos para trás, refletindo dos cristais de gelo como uma pintura trágica de Caravaggio.

Boa parte dos vizinhos estão na frente de suas casas, horrorizados com toda essa confusão. Primeiro, ajudo Hazel a entrar no banco de trás do Impala, e então percebo Amélie desacordada no banco da frente. Me sento ao lado de Hazel, e Dean entra no carro com pressa, arrancando em alta velocidade.

Enquanto estamos seguindo rumo ao hospital, tenho a plena certeza de uma coisa, ao olhar para Hazel completamente encolhida, trêmula e ferida.

Eu faria qualquer coisa por ela.

Esse é meu último pensamento antes de desmaiar, sendo engolido pela escuridão.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gente, algumas considerações:

Existe um motivo plausível (quem viu a série sabe bem) para a sensação de desejo que o Sam sentiu ao beijar a Hazel e sentir o sabor do sangue dos dois misturados. Esse evento na verdade só vai ser devidamente explorado na fic "O Homem que perdeu a alma", mas precisava deixar uma pistinha aqui na prequel.

Esse capítulo foi super pesado, e eu sinto muito por isso, mas não tinha outro jeito. A história precisa ser contada.

Comentem ok? ♥
XOXO



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Garota Que Ficou Para Trás - EM HIATUS (JULHO)" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.