Akai Ito escrita por NicoleLouise


Capítulo 2
O depois




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Mais de uma década depois, com vários arrependimentos e muitas transformações na bagagem, decido voltar para casa. Passar pelos lugares que trazem tantas lembranças e remontam à um tempo que não volta mais nunca é fácil. Cumprimento vizinhos e antigos colegas, passeio pelas ruas pasma ao ver que muitas coisas já não existem mais. Tudo tão igual e ao mesmo tempo tão diferente, como todos nós, acho.

E após uma semana intensa de organização, burocracias e arrumação, decido ir até a rua do antigo café que tanto me apeguei enquanto morei aqui. Fico surpresa em saber que continua aberto e com o mesmo nome de sempre. Entro, me sento à mesma mesa que sentava nos tempos de maior juventude e espero meu pedido. Desfruto do café, que agora parece ter um gosto ainda mais especial pois traz consigo memórias, aconchego e nostalgia de um tempo em que meu universo estava nesta cidade. Acabo ficando muito mais tempo no estabelecimento do que planejei e me permito divagar por caminhos que, sem escapatória, me levam àquele dia. Àquele encontro que teve início aqui no café. À noite mais fascinante e, ao mesmo tempo, que deixou um rastro de tormento melancólico que, ao longo dos anos, acabou se tornando uma pesada lamentação que veio da angústia de nunca ter concretizado nenhuma das infinitas possibilidades de futuro que tivemos naquele dia. Dispondo somente de nossas companhias e de uma câmera para registrar que tudo realmente aconteceu, que não foi mera ilusão, confiamos cegamente que nos reencontraríamos dia após dia se assim tivesse de ser.

Apesar de tudo, sempre penso naquele que roubou meu coração há mais de dez anos atrás. Penso se está bem, se continua espirituoso, se fez uma família. Logo depois que o conheci, parecia vê-lo em todos os lugares, como um vislumbre que sempre estava por perto, um fio interligado aos meus sentidos, puxando minha atenção onde quer que fosse. Pouco tempo depois, refugiada em leituras, encontrei registros de uma antiga crença chinesa que expressava em palavras exatamente aquilo que sentia e que, naquele encontro, escrevi no verso de nossa foto em forma de poesia. Desde então, o provérbio parece estar marcado bem no fundo de minha mente, como lembrete de tudo o que foi e do que poderia ter sido. 

Já meio atordoada com tantos pensamentos e lembranças, pago meu pedido e peço para embalar o restante. Enquanto espero, decido voltar a pé na esperança de que uma boa caminhada ao ar livre até o caminho de casa dê um descanso para esta mente inquieta que tem sido minha companheira desde sempre. 

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Aproveitando o final de tarde ameno e convidativo, volto a pé do trabalho, contemplando a paisagem ao redor. Esse tem sido meu trajeto diário na última década e nunca perde a graça. A cidade, mesmo se transformando ao longo dos anos, continua aconchegante e, as ruas, convidativas. Viro uma última vez à esquerda antes de seguir reto até chegar em casa e algo parece puxar meus sentidos. Olho ao redor da rua e tenho plena certeza de que estou enlouquecendo. Reconheceria o cabelo castanho escuro e aquele sorriso em qualquer parte do universo. Sorrindo para o atendente à porta do café, a mulher que faz constante parte dos meus pensamentos pega uma embalagem e acena, depois segue seu caminho na direção da rua. Continua exatamente como me lembro, o tempo só favorecendo uma beleza que já era extraordinária na juventude. Sem refletir muito e com o coração ribombando nos ouvidos, continuo caminhando em sua direção, ainda achando estar em uma grande alucinação. Com os olhos sem conseguir desviar da mulher ainda há muitos metros de mim, as lembranças parecem surgir como uma delicada tapeçaria de memórias: sua voz, sua risada, seu cheiro; nossas promessas e tudo o que podíamos ter sido. 

Como se o outro lado do fio que me atém ligado a ela tivesse sido despertado, acompanho seu olhar virar em minha direção e minhas pernas se detém, incapazes de dar mais um passo, acovardadas.

Demora um segundo para que ela olhe novamente e me enxergue. Sua expressão reflete a minha e, de repente, não há expressão nenhuma. Em seguida, milhares de expressões perpassam seu lindo rosto até que ela consiga chegar mais perto de mim. Somos só olhares e todos parecem sumir. As conversas cessam. A música é interrompida. O tempo parece passar lentamente. 

Dessa vez, consigo dar um passo a frente. Ela me olha com uma infindável surpresa e, não conseguindo mais sustentar meus sentimentos, ergo a mão para passar sobre seu rosto. Ela segura minha mão em sua bochecha e um sorriso lastimoso pousa em seus lábios. Fecho os olhos, inspiro seu cheiro e retribuo seu sorriso, um misto de alegria e angústia.

Ela chega mais perto, agora sua testa encostando em meu tórax, e o que se segue é o mais insólito e inimaginável dos momentos: 

Erguendo os olhos para que estejamos face a face, sussurra o provérbio chinês que tenho tatuado em meu peito, no lado do coração, em homenagem àquele encontro que se findou há mais de dez anos:

 

"Akai Ito".

 

 

 

 

 


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