Heart escrita por aphrodi


Capítulo 1
To Be Enchanted




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Como se redigida por um autor inclinado a explorar desventuras e cenários desfavoráveis, a história de Henry e Sienna esteve atrelada às tragédias, escapatórias, culpa, fantasmas e sangue muito antes de se conhecerem. Talvez seja exatamente por carregarem infortúnios que se encontraram. Mas naquela tarde chuvosa parece que o destino concedeu a ambos um presente precioso e inestimável, embora por tempo cuidadosamente limitado, os fazendo acreditar que possivelmente teriam um final feliz.

As batidas na porta soaram mais altas que as gotas de chuva, fazendo Sienna sobressaltar-se. As páginas do livro escaparam, fazendo com que se perdesse na leitura, mas a jovem mulher somente fechou o livro e inclinou-se para frente. Do corredor ainda era possível escutar a senhora Barton tentando convencer o filho a ficar parado, tal como os pedidos do doutor para que o paciente tentasse aguentar a dor que seria passageira continuavam nitidamente audíveis. Com mais uma batida na porta, Sienna decidiu que não seria muito sensato da sua parte em deixar alguém aguardando na chuva. A melhor solução não seria chamar o dono da casa somente para atender a porta por mais que houvessem concordado que ela o fizesse. Entretanto não pretendia passar toda sua vida temendo que agentes estivessem do outro lado esperando a encontrar com a guarda baixa. 

Era algo simples, atender a porta, e por mais que ansiasse tornar a fazê-lo como sempre fez, as palavras do doutor sempre ecoavam em sua mente fazendo com que a apreensão retornasse. “Não está mais segura”. Ela respirou fundo ao se recordar da entonação astrosa do doutor ao lhe alertar como quem lembrava que a única certeza que todos tinham era a morte.

Deixando o livro sobre a mesa, Sienna soltou o ar pela boca ao concluir que nada de pior poderia acontecer. Se o doutor carregava tamanha conformidade, apesar de existir uma pequena vontade de ajudá-la, não era uma surpresa que em algum momento ela também deixasse as esperanças de lado e apenas vivesse sem esperar algo de bom ou ruim todos os dias. A certeza ainda era decorada pela dúvida de quando iria acontecer.

Desejou que quem quer que fosse não houvesse desistido pela demora. Girou a chave na tranca com certo pesar ao pensar que talvez fosse alguém precisando de ajuda imediata enquanto ela havia passado alguns momentos refletindo sobre o próprio medo. Entretanto todo pensamento anterior se dissipou por completo. O vento forte fez com que a água da chuva a alcançasse, não se molhando tanto apenas pela figura a sua frente que pareceu se surpreender em vê-la. Sienna mal constatou sua aparência em um primeiro momento, tendo encarado aqueles olhos cinzentos por tempo suficiente para saber que não era um agente, mas sim alguém sentindo dor. E, como se soubesse exatamente o que o afligia, seu olhar recaiu para o braço esquerdo do desconhecido. A manga do sobretudo cobria sua pele, porém, ela permaneceu esquadrinhando-o até que percebeu o tom escuro no tecido que não era devido a água da chuva alterando a cor da peça de roupa para um tom marcante. 

Ela sentiu o próprio corpo estremecer e tinha absoluta certeza de que não seria em razão da chuva trazendo o frio. 

— Boa tarde — disse o homem após alguns instantes em que o silêncio se estendeu. — Perry está em casa? 

Quando o doutor recebia a rara visita de sua neta, a mesma era quem atendia aqueles que o procurava. Em todas as vezes Sienna escutava as pessoas se referindo a ele como doutor ou doutor Reeves. O conforto no modo de mencionar o dono da casa, não pelo nome exato, Peregrine, mas pelo apelido, a indicava que aquele não era um paciente como os outros. Talvez fossem amigos, talvez guardassem segredos um do outro. Tais pacientes mais próximos não apareciam com frequência e eram justamente aqueles que Reeves permitia que ela ajudasse a tratar, por isso Sienna já havia visto todos pelo menos uma vez e se lembrava bem de cada rosto. 

Mas o homem a sua frente nunca havia estado em sua presença, nem mesmo em sonho. Era a primeira vez que o via e a julgar por seus traços ela presumiu que o desconhecido não seria muito mais velho que ela e estaria em seus vinte e poucos anos de idade. Parecia pálido, o que provavelmente seria resultado de ter pegado chuva e o vento permanecer gelado durante todo o dia. Tinha o cabelo escuro e curto e a barba bem-feita. Era mais alto que Sienna, embora não parecesse ter uma estatura excessivamente acima da média. Seus olhos, de longe, foram o que captaram a atenção dela em um segundo momento de observação. Apesar de o considerar bonito, e saber que se perderia em seu olhar não fosse a urgência daquele segundo, ela encontrou inquietação nos olhos cinzentos do desconhecido. Como se houvesse uma aflição escondida que se contorcia e ele a reprimisse. A expressão rígida, por mais tranquilo que tentasse parecer, dizia claramente que seu controle estava chegando ao limite.

— Sim, ele está aqui, mas está atendendo alguém no momento. Talvez demore até que consiga lhe ajudar com isso — ela respondeu ao apontar para a mancha de sangue no sobretudo. 

— Suponho que esteja na minha frente na fila? 

Sienna riu baixo. 

— De forma alguma. Talvez eu tenha a sorte de auxiliar o doutor — ela explicou brevemente. — Entre logo antes que acabe adoecendo por causa da chuva. 

Por um momento ele exibiu um sorriso, que a jovem não compreendeu, e agradeceu antes de entrar na casa. 

— Sienna! — Chamou o doutor e seus passos ecoaram pelo corredor. — Sienna, prepare a papoula! 

O homem de idade surgiu na sala e passava a mão enrugada pelo rosto, aparentemente cansado, e Sienna reprimiu o riso ao imaginar como a situação no quarto deveria ser minimamente engraçada. Neil era um garoto de quinze anos que havia chegado chorando por conta de uma mordida na perna. Tudo que o doutor fizera até momento fora analisar o ferimento de longe e há vários minutos tentava apenas limpar. Contudo Neil começava a espernear e a gemer de dor antes mesmo que qualquer pequeno procedimento fosse iniciado, tornando a tarefa cansativa para o doutor. A senhora Barton parecia se deixar levar pelo drama do filho e, ao que tudo indicava, seu auxílio não vinha sendo efetivo. 

Sienna gostaria de ajudar, entretanto, somente chegava perto dos pacientes que Reeves considerava amigos íntimos e de confiança. Nem mesmo havia visto os rostos de Neil ou sua mãe, limitando-se a escutar as vozes quando se exaltavam. 

— Ah! Ele reclama de dor somente de segurar a perna, assim é impossível... — reclamou o doutor e interrompeu a si mesmo ao ver Sienna trancando a porta e o homem seguindo para o sofá no centro da sala. — Henry! O que raios...? Sienna! Não deveria deixar ninguém entrar. 

— O acordo não é exatamente esse — ela o corrigiu apesar de sua culpa. — Não devo evitar que ninguém entre.

— O acordo leva a essa conclusão, mocinha, ao não abrir a porta. 

— De qualquer jeito ele precisa da sua ajuda. 

— E eu preciso da sua. Papoula. Agora — disse Reeves de maneira quase severa e apontou para o caminho que levava a cozinha. A outra suspirou. — E sem reclamações. 

— Isso é injusto, Reeves, tudo que você faz é reclamar e ninguém pode torcer o nariz? — interveio Henry ao sentar-se no sofá. 

Reprimindo os lábios para não rir, e piorar a irritação do doutor, Sienna apressou-se em deixar o cômodo e desapareceu silenciosamente. Reeves, por outro lado, não evitou que seus passos soassem pesados pelo piso amadeirado. A carranca não suavizou, as linhas de expressão em sua testa eram severas e as sobrancelhas abaixadas acentuavam o olhar de repreensão mesmo que ainda não soubesse o que acontecera para que recebesse uma visita de Henry Waldford. 

— Quem molha meu sofá e o mancha de sangue acha que pode opinar em assuntos que não o desrespeita — revidou Reeves, agora respirando pesado. — Quando é que vai me trazer uma garrafa de vinho ao invés de uma dor de cabeça? 

Inesperadamente o doutor riu do próprio comentário como se de repente a situação que o irritava não pudesse ser tão séria ou não o incomodasse. 

— Você fala como se eu sempre te trouxesse algum problema — observou Henry, não seguindo a onda estranhamente leve que o mais velho trouxe com a risada súbita. — E é a primeira vez que chego com algo... preocupante, acho. 

Reeves já estava com as mangas da camisa branca dobradas até o cotovelo, mas por hábito puxou o tecido um pouco mais para cima ao sentar-se ao lado de Henry. 

— E o que temos aí? 

Henry não respondeu, apenas retirou o sobretudo úmido e o deixou no sofá o que fez Reeves respirar fundo antes de segurar o punho do outro e induzi-lo a esticar o braço. O corte já não sangrava tanto quanto antes, mas evidentemente era profundo e a extensão fez com que Reeves ficasse sério. Da fossa cubital o ferimento seguia uma linha reta até quase o punho. Os olhos já praticamente leitosos de Reeves permaneceram analisando o corte, deixando Henry desconfortável com tamanha minuciosidade.  

— Quantas vezes, Waldford? — tornou a perguntar o doutor com grande pesar.  

Henry não era tão ingênuo. Sabia que o olhar atento do doutor havia identificado as bordas da cicatriz, mesmo que sobre ela houvesse sido feito outro corte. Traços da cicatriz era difíceis de ver, com o sangue e o novo ferimento, mas a pequena pista não passaria despercebida por Peregrine. Se por acaso não fosse encontrada, seria revelada pela energia pesada. Henry até mesmo percebeu que aquela moça que o atendera deveria ter tido um pressentimento ruim ao vê-lo.

— Não tem mais importância, não pretendo continuar utilizando magia — justificou-se de antemão.

— Foi inteligente o suficiente para fazer parecer que tentou o ritual apenas uma vez, não tenho como acreditar no que diz. 

Henry sentiu como se houvesse levado um soco no estômago. O que seria dele se fosse visto como um homem sem palavra? O arrependimento tornou a pesar em seus ombros de modo que fechou os olhos por alguns instantes, as memórias eram recentes demais para que se sentisse no poder de afastá-las. Havia sido sua culpa, afinal, talvez nunca devesse tornar distante o ocorrido. Os erros existiam para ensinar. 

— Eu não fui o único que acabou ferido, Reeves — revelou o homem, abaixando o olhar para o próprio ferimento. — Não é fácil controlar as consequências disso e se já não se resumem a mim mesmo... Bom, é melhor que eu saiba quando parar. 

Reeves assentiu e decidiu não pedir por detalhes. De onde eles vinham existia apenas estilhaços e nada mais que pudesse ser recuperado. Sua decisão em não perpetuar o uso da magia era diferente do outro lado da família que ainda restava e havia cortado laços. Seus ancestrais não eram admirados por terem conhecimento profundo, mas por terem precisão mesmo nas coisas mais simples e quase insignificantes. Um descendente não alcançar o que tanto tinham orgulho, e por isso serem procurados sombriamente no passado, deveria ser algo tão frustrante quanto realmente nunca ter encontrado real aptidão para sequer tentar. Reeves respirou fundo, era um sentimento que ainda o contrariava quando sabia que nunca tentaria mesmo se tivesse a inclinação suficiente para tal façanha. A maior consequência do uso da magia era a Ordem e tamanha maldição para si ou sua família formada longe desses assuntos, ele não pretendia trazer. 

— Esse é o maior sinal de que precisa continuar, garoto. Se ainda existem falhas, conserte-as — aconselhou Reeves. — Por que disse que era preocupante? 

Henry engoliu em seco, assentindo silenciosamente, pensando no quanto a perfeição no uso da magia havia tornado seus antepassados alvos que nunca tinham sossego da Ordem. Não queria se tornar um alvo por ser preciso, mas também desgostava da ideia de ser tão ruim que jamais se tornaria reconhecido. Suspirou e tentou se concentrar no momento presente, afinal ainda não estava decidido se continuaria tentando aperfeiçoar os feitiços.

— É alarmante porque isso não para de latejar, é como se eu sentisse a lâmina ainda cortando repetidamente — explicou Henry. 

Reeves encarou o mais novo por alguns segundos antes de apoiar o dedo médio no polegar e, com a agilidade que não se esperaria dele a julgar por sua lentidão usual, desferiu uma pancada com o dedo na testa de Henry. 

— Claro que está incomodando desse jeito se utilizou um objeto impregnado de magia. Muito provavelmente não usou o correto — explicou Reeves. — Eu vou limpar e suturar, mas não posso fazer nada quanto as forças sombrias. O que eu sei é que vai passar com o tempo.

Com pesar, o mais novo balançou a cabeça positivamente. Era nítido seu incômodo, embora misturado ao alívio de saber que aquilo passaria. 

— Então você leu as anotações? — questionou Henry. 

— Eu seria estúpido se não o fizesse — revelou Reeves. — Mudar meu sobrenome e ir para longe não altera nada de importante. Ninguém larga do meu pé. Temos que saber o mínimo e o que nos dispusermos a fazer, temos que fazer com perfeição. 

Henry sorriu fraco e provocou: 

— Por isso vai apelar para a papoula? 

— Não me irrite criança, eu sei fazer meu trabalho direito — resmungou Reeves.  

— Só se o paciente estiver sob efeito de... 

— Henry Waldford! — Reeves ergueu a voz rouca. — Se você pedir por um gole do chá enquanto eu faço a sutura, garanto que não vai receber nenhuma gota! 

— Obviamente está velho, qualquer um pode ver, mas eu não esperava que estivesse tão rabugento.

— Moleque insolente!

A julgar pelas ofensas que escutava ocasionalmente, não foi difícil para Sienna compreender que existia uma relação familiar. Se realmente por terem laços de sangue ou por consideração ela não saberia dizer, mas escutá-los discutindo a levava a reviver memórias. Por coincidência ou não, seu avô era igualmente rígido e muito crítico quando rodeado dos netos. Ela compreendia. Afinal eram cinco irmãos aprontando pela casa, tirando a tranquilidade de qualquer um, e por esse motivo as repreensões eram frequentes.  

Mesmo sem saber quem era Henry, ou qual sua relação com a magia, ficou aliviada quando a discussão com Reeves se tornou audível. O que quer que tivesse acontecido, talvez não fosse tão sério a ponto de tornar a visita algo completamente lúgubre. Concentrada em preparar o chá, não escutou realmente nada do que discutiam, apesar de vez ou outra ouvir uma risada de Henry e a voz rouca de Reeves falhar durante algumas exigências de respeito. 

Quando o cheiro do chá inundou a casa, não tardou para que Reeves surgisse na cozinha como era de costume. Para evitar que Sienna Vaughn fosse vista na casa, o doutor buscava a bandeja com chá na cozinha e ele mesmo levava e servia. A jovem, preocupada, questionou quando o viu: 

— Neil se acalmou um pouco? 

— Eu dei uma olhada nele quando passei pelo corredor e ele aquietou, mas com certeza vai voltar com o choro de mentira assim que eu der indícios de que tornarei a tratar dele. 

— Ele parece ser bem sensível a dor, por isso fica receoso — comentou Sienna. — Tenha paciência. 

— E eu lá estou em idade de esperar que os outros tenham calma? — indagou o doutor ao arquear uma das sobrancelhas grisalha e falha.  

— Exercitar sua tranquilidade não faria mal. Mas se tem energia para a impaciência acho que é sinal que está muito bem de saúde. Isso é bom. 

— Diga isso para o folgado no sofá — resmungou Reeves ao pegar a bandeja pronta sobre a mesa. — Suturei a ferida dele, poderia aplicar o unguento? Eu deixei preparado. 

Uma vez que o preparo daquele chá era demorado, por ingredientes além da papoula que tornava Reeves um doutor muito procurado, ela não se surpreendeu que o mesmo houvesse cuidado de Henry e adiantado algo para ela. Ainda assim era incomum que ele diminuísse suas tarefas quanto ao cuidado de alguém quando era raro que ela pudesse ajudar diretamente. 

— Que atencioso, senhor Reeves. 

O doutor franziu o cenho, como se estranhasse o comentário quando as conversas eram baseadas em ironias e cinismos, mas somente deu início a sua caminhada lenta com a bandeja nas mãos. Sienna o seguiu, já acostumada a ter de dar passos demorados quando o outro ia na frente. Surpreendeu-se quando chegou na sala e viu Henry enrolado em um cobertor. Realmente, Reeves deveria se preocupar com aquele rapaz em particular. 

— Unguento, bandagens e depois o coloque para fora — instruiu Reeves ao continuar seu caminho para o quarto. 

— Ele é estranhamente cruel para alguém que se dedica a cuidar dos outros, não acha? — comentou Henry assim que escutaram a porta do quarto mais próximo sendo fechada pelo doutor. 

— Arrisco dizer que sabia o que iria encontrar se viesse até ele — respondeu Sienna. — Mas não o colocarei para fora, ainda não parou de chover. 

— Então há limites para a sua crueldade? 

Sienna sorriu diante a brincadeira e se aproximou do sofá. 

— Depende. 

— Não sei o que fiz, mas se estou dentro da condição que me concede o tratamento gentil é suficiente para me tranquilizar — disse Henry. — É uma aprendiz? 

— Da crueldade? Eu aprendi anos antes de vir para cá — revelou ela e sentou-se ao lado do rapaz. — Da arte de cuidar... eu diria que aprendemos um com o outro. Ou quase isso. 

— O que quer dizer exatamente? 

Sienna pegou o pote de vidro sobre a mesa de centro, analisando o unguento preparado pelo doutor. Mesmo que se recusasse a usar magia, Reeves a conhecia suficientemente bem. As ervas ali contidas não eram coincidentemente as escolhidas para quando magia seria envolvida. Não faria o mesmo efeito sem as palavras certas, sem a intenção necessária, mas a escolha era um sinal de compreensão e, principalmente, permissão. 

Novamente encarou os olhos acinzentados do rapaz, encontrando a inquietação. Ela tocou o braço de Henry, agora com os pontos, e sentiu algo estranho que a fazia sentir frio mesmo estando dentro da casa e aquecida com o vestido de mangas longas. 

— O que aconteceu, Henry? 

Ele retesou-se apesar de não encontrar nada além de olhos castanhos acolhedores. Havia gentileza na pergunta feita, o tipo de gentileza e preocupação que era difícil de recusar quando apresentada sem intenções de pedir por algo em troca. 

— Uma situação saiu de controle, senhorita. Nada incomum demais, acredito. 

Uma verdade e desvio. Sienna não se sentiu mal em continuar não compreendendo, pois encontrou na resposta o que mais importava. A omissão naquela situação era suficientemente esclarecedora. Não era o ferimento que a causava calafrios e provavelmente também não era a causa do sofrimento dele. Por isso havia se encontrado observando com tanta atenção aquele olhar desde o primeiro momento. Era o mesmo que ela via no espelho quase todos os dias quando pensava que poderia ter destruído sua própria casa. Ela então se atentou de que Reeves o havia suturado sem o auxílio de qualquer coisa para amenizar a dor. Henry havia suportado a dor dos pontos.... Aquele olhar inquieto e aflito realmente provinha de sentimentos transbordando. 

— O que vai acontecer é incomum. — Sienna pegou um pouco do unguento e seus dedos deslizaram sobre a pele do rapaz. — Vai ter que guardar esse segredo com você. Reeves não me permite praticar, mas sempre conversamos sobre para que eu tenha maior conhecimento. Foi isso que eu quis dizer. 

Henry sentiu o sangue esquentar, como se a ferida estivesse sendo aberta novamente, mas dessa vez era como se a queimação seguisse o caminho contrário. Era diferente de como já havia visto outros fazerem. Sienna não estava fazendo nada mais do que aplicar o unguento e ainda assim ele sentia algo sendo removido, toda aquela sensação incômoda sumindo de dentro para fora e não seguindo mais profundamente por sua carne.  A moça não estava emitindo palavras ensaiadas, era como se estivesse manifestando algo sem realmente pretender ou sem intenção de controlar. Parecia que desejava que aquela sensação ruim o deixasse e, tal como sua vontade, a sensação se desprendia. 

Em instantes Sienna começava a cobrir o seu braço com a bandagem, com cuidado e atenção. Quando Reeves havia suturado fora inevitável sentir dor, mesmo que estivesse fazendo seu trabalho com cautela, e mesmo o ato simples de enfaixar o ferimento deveria lhe causar algum incômodo. Entretanto o alívio causado era suficiente para que não sentisse nada além de um toque gentil. 

— Obrigado — agradeceu uma vez que a moça finalizou seus cuidados.

— Muito cedo para isso. E se eu te colocar para fora? 

Henry virou-se para trás e apesar do vidro da janela permanecer molhado, era evidente que lá fora a chuva havia cessado. 

— Parou de chover. 

— O senhor Reeves não se desfez do baú com algumas roupas do filho e devem te servir. Deveria se trocar antes de partir, ainda acho que vai acabar adoecendo — ponderou Sienna ao perceber que as vestes de Henry permaneciam úmidas. — Ainda está frio. 

O rapaz sorriu novamente da mesma forma quando havia chegado. Dessa vez Sienna constatou melhor as batidas do próprio coração. O olhar de Henry parecia desanuviado, como se as densas nuvens em seu olhar houvessem se dissipado assim como as nuvens carregadas tinham desaparecido do céu. 

— Pode ser algo bom. Significa que eu precisaria retornar muito em breve — ele respondeu ao deixar o fino cobertor de lado e se colocar de pé.

Sienna se levantou, acompanhando Henry, e com um sorriso respondeu: 

— Tenho minhas dúvidas se seria realmente proveitoso. Retornará em uma manhã ensolarada para me convidar a um passeio durante a tarde, não iria querer me acompanhar com um ataque de espirros. 

— Afirma que retornarei? — indagou Henry. — O que viu? 

O rubor surgiu no alto das maçãs do rosto da moça, que percebendo já ter correspondido muito diretamente decidiu que não faria mal terminar a conversa com a brincadeira que ela mesma havia criado. 

— Sorrisos e flores. 

— Qual flor? — ele perguntou, tentando parecer sutilmente interessado. 

— Boa tentativa, mas precisará descobrir. 

— Isso é um pouco injusto, não acha? 

— Nenhum pouco, senhor Henry. Você é quem vai ver o dia de seu retorno e terei de aguardar. 

— Seria realmente interessante se eu tivesse o olhar iluminado assim como o seu — ele riu. 

— Surpresas fazem bem, eu acho. 

O que deveria ser uma despedida simples e breve culminou em mais risos do que o esperado e quando Henry finalmente deixou a casa, a lua já estava alta no céu estrelado. 

Sienna não havia sonhado com a chegada de Henry, mas descobriu estar certa sobre sorrisos e flores. Assim como Henry descobriu que a rosa branca era a favorita dela. Ambos os olhares se iluminaram de encontro um ao outro, impedindo que vissem o sangue em seu caminho. Mas essa é uma história que somente outros Waldford poderiam contar. 


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Notas finais do capítulo

A história contada pela Adelaide entra em contradição com o fato de aqui ser dito que Sienna nunca sonhou com o Henry. Mas foi muito depois que Sienna descobriu que alguns sonhos com um rapaz, que nunca via o rosto, era o Henry :p



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