Eu Sei Quando Você Mente escrita por Mitchece


Capítulo 8
Baseado em fatos reais




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Desde o dia em que recebeu a carta de Paloma, Miriam pegou o costume de, logo ao acordar, abrir a porta da sua sacada e observar o lado de fora de casa. Mais precisamente os portões. Queria garantir que eles realmente estivessem fechados. Tinha vezes em que o portão menor vacilava e se destrancava até mesmo com uma rajada de vento um pouco mais forte. Ela avisou o pai na semana em que ele esteve em casa e jurou mandar alguém consertar.

Também conferia de noite, antes de dormir. E nem sempre confiava na vista. A intuição mandava descer até o andar de baixo, sair pela sala, atravessar o jardim e conferir com as próprias mãos. Balançava o metal para garantir que ele estava preso à fechadura.

Com o tempo percebeu que tinha um macete que podia usar na hora de fechar que garantia que ele não fosse se destrancar sozinho. Na hora da fechadura entrar no lacre, tinha que puxar o portão para cima. Assim, parecia que o trinco ficava mais rígido ao espelho.

No dia seguinte ao rolê na praça, Miriam aproveitou o penúltimo dia antes do retorno das aulas para dormir até um pouco mais tarde. Mas o ritual se manteve: pulou da cama e foi para a sacada se espreguiçar e olhar o jardim e os portões. Não foi o portão que lhe chamou a atenção, mas sim o jornal enroscado na parte de cima dele. O jornaleiro devia ter colocado pouca força para arremessá-lo e ficou preso.

Antes de tomar café, lembrou-se dele e foi até o jardim para pegar. Ficou na ponta dos pés para alcançá-lo. Não sabia por quê seu pai insistia em assinar tantos jornais assim. Ainda mais porque mal ficava em casa. Cátia ia acumulando eles na mesa de centro da sala de estar para o homem escolher um ou dois para ler por alguns minutos enquanto toma seu café preto.

Puxou as folhas com cuidado para não rasgar. Quando o teve em mãos, não pôde evitar de olhar a capa. Um arrepio tremendo lhe subiu à espinha quando leu.

— Já pegou o de hoje? - Cátia surgiu ao fundo, ainda de pijamas, caminhando até Miriam e pegando o jornal de sua mão. - Minha nossa senhora!

A cuidadora exclamou após ler. Ficou um tempo encarando o papel e depois buscou os olhos de Miriam, que ainda estava muda.

— Esse eu faço questão de esconder - a mulher balançou o jornal em protesto. - Se sua mãe ler um negócio desses, pode piorar. Ela tá tendo dias tão bons... Coitada! Vai até constipar.

— Posso ler antes? - Miriam pediu esticando o braço. Cátia a olhou com surpresa, mas entregou.

— Esconde esse negócio depois - pediu voltando para dentro da casa. - Joga fora!

— Cátia! - Miriam a chamou antes que ela sumisse pela porta principal. - Você já conhecia essa história?

A mulher pensou um pouco. Deu para ver que deu uma respirada mais profunda e voltou para perto de Miriam porque queria dizer baixo, quase sussurrando:

— Foi um bafafá na época, querida. Deu até na TV. Eu morava numa cidade aqui perto. Lembro bem. Agora, sabe como sua mãe fica com assunto violento, né? Deixa isso longe dela, querida.

— Tá bem - Miriam assentiu e Cátia a deixou sozinha no quintal.

Voltou a atenção para a reportagem, mas não conseguiu ler mais do que a primeira estrofe. Sua cabeça estava a mil para conseguir se concentrar em tantas letras. Ficava apenas retornando para a manchete e a relia inúmeras vezes: "O Anônimo está de volta à cidade".

Miriam percebeu que Dário fuzilava Windera com o olhar desde a hora em que ela se reuniu aos demais na praça da concha acústica. Na verdade, ela mesma tinha percebido. Num certo momento, trocou de lugar e subiu no alto da arquibancada e sentou-se ao lado de Sabrina e Hélio para fugir do campo de visão do garoto.

— A reportagem cita a gente? - Sabrina perguntou, preocupada.

— Não. Você não leu ? - Dário pareceu surpreso.

— Não quis - a garota loira justificou e se ajeitou no concreto. Um forte vento bateu de repente, bagunçando seus fios. Ela tentou ajeitar e ficou um tempo tirando-os da cara, mas perdeu a paciência e amarrou eles mesmos em um coque na parte de trás. Windera também passou pelo mesmo, mas seus cabelos cacheados eram mais grossos e comportados. Miriam agradeceu por estar com os seus tão curtos, mesmo sentindo bastante frio na nuca e pescoço.

— Não fala nada da gente - Felipe respondeu depois de um tempo. Estava mais quieto, amuado. Mas ia se soltando conforme falava. - Só fala que a Paloma e a Larissa tavam sendo ameaçadas com cartas. Igual antigamente.

— E tipo, como o jornal descobriu as cartas? - Hélio pediu nitidamente preocupado.

— Alguém deve ter entregado. A polícia não descobriu nada antes, então só pode ter sido uma pessoa dando um furo depois - Windera saiu do silêncio. Seu sotaque estava mais forte e carregado, bem diferente da primeira vez que estiveram por ali.

— Então chamou a gente aqui pra acusar todo mundo de novo, isso? - Dário a confrontou.

— Não - ela saiu na defensiva. Também não tinha mais a postura forte de antes. - Só queria conferir se vocês contaram para outra pessoa. Só isso. Ninguém aqui seria maluco de dedurar assim e correr o risco do seu próprio segredo vazar... E outra: pode irritar o Anônimo.

Dário arrumou a camiseta em sinal de desconforto. Concordou com ela, mas não queria manifestar isso verbalmente.

— Não contamos para ninguém - Hélio e Sabrina disseram quase em uníssono.

Miriam fez um movimento negativo com a cabeça e Dário repetiu.

— Eu contei - Felipe confessou. - Mas duvido que essa pessoa ia falar. Têm mais medo do segredo vazar do que eu.

Parecia que todos queriam repreendê-lo por ter contado para outra pessoa. Havia um acordo não velado de não jogar o assunto para fora dali, mas a justificativa dele fazia sentido.

— Então conversa com essa pessoa pra ver se ela vazou algo - Miriam pediu para o garoto mirrado do lado dela e ele respondeu que sim.

— A gente precisa se ajudar - Dário pediu. - Não veem que somos menos um agora? Vamos esperar mais alguém morrer pra fazer alguma coisa?

— Na verdade, menos dois - Felipe completou. - O Marcos não vem?

— Ele não respondeu minha mensagem - a estrangeira respondeu. - Liguei e não atende.

— Pronto, pessoal. Resolvemos: é ele - Felipe brincou. - Deve estar ocupando imprimindo cartinhas. Caso encerrado.

Felipe pegou o jornal das mãos de Miriam e jogou dois degraus abaixo de onde estavam sentados, bem no meio de todos e com a manchete de capa virada para cima. Todos ficaram olhando a notícia por um tempo, até que o garoto quebrou o silêncio:

— Seguinte: e se eu estiver errado?

— Sobre o Marcos? - Sabrina perguntou. - Já disse que eu suspeito dele.

— Não - o garoto respondeu irritado com a burrice. Depois, desceu um degrau e apontou o dedo para o nome da manchete. - E se o Anônimo não for um de nós? E se o Anônimo for simplesmente... o Anônimo.

— O mesmo assassino de vinte anos atrás? - Dário perguntou meio confuso.

— Isso! - Felipe voltou para onde estava sentado. - Ninguém foi preso, ninguém sabe quem ele era. E se anos depois ele decidiu simplesmente voltar a ser o Anônimo, mas em escala maior?

— Ele é um assassino em série - Windera complementou. A energia voltou para seu tom de voz. Até sua postura havia melhorado. Quando ouviu, Miriam lembrou do que Marcos tinha dito sobre ela no dia anterior. - Pode não ter conseguido segurar seu impulso por morte e decidiu fazer de novo.

— Exatamente - Felipe concordou com ela.

— Será? - Sabrina perguntou preocupada e olhou diretamente para o namorado, que deu de ombros, também em dúvida.

— Não têm nada que a gente possa descobrir sobre ele? O antigo Anônimo? - Hélio pediu.

— Sei lá. Foi há muito tempo - Dário respondeu.

— E a família da Valéria? Sabe onde tão? - Sabrina questionou.

— Até onde sei eles se mudaram da cidade - Felipe refletiu olhando para as copas das árvores.

— Sabe o que eu acho? - Miriam perguntou, quebrando a linha de raciocínio que o restante do grupo estava levando. - Que a gente devia acabar com essa porra. Falar a verdade, todo mundo. Se o Anônimo tá ameaçando a gente, é só contar os segredos pra todo mundo que ele não vai ter mais nada pra brincar. Depois a gente vai na polícia e pede proteção deles.

— Ele pode matar a gente de qualquer jeito - Sabrina contestou um pouco irritada.

— Eu tou de boa de contar - Dário se manifestou e todos os demais concordaram, menos Felipe. - Não acho que vai adiantar de alguma coisa.

— Tá - Miriam murchou. - Só queria pôr um ponto final nisso.

A primeira visita que Marcos recebeu foi de sua mãe e irmã. A mulher entrou com tudo no quarto do hospital e se arremessou aos prantos sobre o filho. Entre murmúrios e lamentações, o garoto conseguiu ouvir algo como "Vão pegar aquele ladrão desgraçado". E assim as coisas foram começando a fazer sentido.

Sua visão era turva e a sensação sobre o corpo bem fraca, então não reconheceu de imediato a segunda visita, mas a sua voz potente que lembrava a de um radialista ajudou a recordar. Era um antigo amigo de seu padrasto, um médico bem renomado que atendia numa cidade grande ali por perto. Marcos tentou ficar atento ao que ele dizia e conversava com sua mãe, que ficava agradecendo ao médico o tempo todo pela disposição e viagem até lá. "O que não faço pelo meu velho amigo? O melhor prefeito da região!", ele repetia. Entre as explicações, Marcos fisgou que as facadas não atingiram nenhum órgão vital e que o risco de infecções era médio e precisariam acompanhar de perto. O único tópico fora a perda de sangue, mas a transfusão feita naquele dia mais cedo tinha ocorrido bem e ajudaria o garoto.

A terceira visita foi em grupo. Sua mãe e irmã se retiraram do quarto para dar espaço a três homens: um jornalista, um policial e seu padrasto, o prefeito. Marcos já estava mais atento. A dor no ombro era leve e os vários pontos no braço nem ardiam mais. Mas seu corpo era pesado. Não conseguia levantar os braços, por exemplo. Parecia não ter forças para isso. A enfermeira o ajudou a recostar na cama para ficar levemente sentado para poder conversar.

— Levamos um susto, garoto - a voz grave do prefeito quebrou o silêncio. Odiava que ele o chamasse assim. Aproximou-se da cama e repousou sua mão grossa sobre o ombro que estava machucado. Em seguida, falou para os outros dois homens: - Mas esse é um rapaz forte, é um dos meus.

Depois, insistiu para que Marcos explicasse o que houve. Ainda fraco, começou a contar lento. Sobre sua ida até o posto. Tanto o jornalista, quanto o policial tomavam notas. Não sabia que eles fariam aquilo no mesmo momento. Olhou para o padrasto e começou a entender o que estava fazendo.

Deu detalhes sobre como foi atacado, omitindo apenas a informação da tatuagem. Os dois homens agradeceram e se despediram, deixando Marcos sozinho com seu padrasto no quarto do hospital.

— Eles vão fazer o trabalho deles - o prefeito comentou olhando pela janela. Cada vez notava mais que seu padrasto o encarava cara a cara com certa raridade - E você ainda vai render a primeira página.

O prefeito repetia tanto aquela frase dentro de casa que deveria ser inscrita em sua lápide.

— Eu sei coisas sobre você que renderiam primeiras páginas até o ano que vem - Marcos resmungou encarando-o pelas costas. Mas depois teve que fitar seu rosto bravo e irritado.

— Já disse que estou cansado de ouvir esses insultos e provocações de gente que mora na minha própria casa! - Quando ficava bravo, ele cuspia descontroladamente. Abaixou um pouco o tom ao lembrar que estava em um hospital, local mais cheio. - Devia me agradecer por te dar tudo o que eu te dou!

— Não pedi nada disso - Marcos provocou apontando para as coisas ao seu redor.

— Acha que é fácil bancar sua escola, seu carro, sua CNH falsa, os bens-bons da sua mãe e da sua irmã?

Marcos não respondeu. Virou o rosto para o lado oposto de onde o homem corpulento dava seu chilique e respirou fundo. Seu corpo pareceu até voltar a doer mais depois das falas.

O garoto esperou um tempo, engoliu em seco e perguntou o que queria desde o começo:

— Você mandou o seu jagunço me matar?

Marcos fez questão de perguntar olhando novamente para o rosto do prefeito. Ele fez uma cara esquisita no começo, um pouco confuso, como quem não tinha entendido sobre o que se tratava. Pigarreou e começou a desenhar uma resposta um pouco atropelada depois de perceber que a feição de Marcos era séria, de que não estava brincando.

— Você acha que eu sou o culpado por toda a merda da sua vida, né, pirralho? - Dava para perceber que estava furioso, mas continha seus ânimos, principalmente no volume da voz.

— Mandou ele matar a Paloma? - Marcos se segurou para não chorar ao lembrar da namorada, mas não pôde evitar de seus olhos marejarem. - Larissa também? Era você, esse tempo todo?

— Ah, seu moleque... - o prefeito fez como se fosse avançar sobre o garoto na cama de hospital para lhe dar uns tapas e descontar sua raiva fisicamente, mas hesitou e cerrou os punhos. Seu rosto era de tanto ódio que até o bigode grosso parecia esboçar sentimentos de raiva.

— Eu reconheci o Manuel, Seu Prefeito - Marcos vomitou as palavras também com certo ódio. - Eu vi a tatuagem dele. Era ele. Você mandou ele me matar!

— Já têm um outro maluco tentando foder com a minha campanha! - Tentou desviar a atenção do assunto para outro caminho. - Não vou aceitar que faça isso também!

Os dois se encararam, bravos, por quase um minuto inteiro. O barulho da máquina que acompanhava seu pulso se sincronizou com o respirar pesado do seu padrasto. Um tique nervoso se desenhava na sua sobrancelha direita e sua imagem parecia ficar ainda maior, principalmente pela perspectiva baixa que Marcos o olhava. Por um momento, realmente sentiu medo do homem atentar algo contra ele ali mesmo.

— Eu devia é ter mandado ele te molestar mais! Pra aprender a parar de ser pirralho - o prefeito confessou com todo o rancor que estava acumulando. - Têm que ter visão, garoto. Nossa vida é assim: têm uns sacrifícios aqui e ali. Faço isso o tempo todo. Você também consegue.

— Então é assim que achou que ia resolver essa situação? - Marcos continuou provocando. Ainda tinha medo, mas estava até gostando de deixar o padrasto com os ânimos alterados. - Que sua campanha ia melhorar só porque sua família também é vítima disso tudo? Por isso a primeira capa? Ia jogar de vítima?

— Se você soubesse as merdas que tenho que engolir e fazer pra manter o meu cargo e o bem da nossa família... - o homem fechou os olhos e bateu com força no colchão bem ao lado da perna direita de Marcos.

— Você é só um político corrupto, putinha de fazendeiro.

O prefeito não respondeu de imediato. Fuzilou o garoto com o olhar, pegou seu chapéu de boiadeiro que estava sobre a poltrona e parou na frente da porta.

— Vou contar com a sua descrição, garoto. Depois da eleição, faça o que quiser, mas saiba que te tiro de casa num segundo. Ou peço pro Manuel fazer o serviço completo na próxima. Em casa a gente conversa.

E saiu.

— Ah, Albuquerque nem é uma cidade tão ruim assim! - Dário defendeu enquanto atravessava a rua com Miriam.

— Assim, não é a pior cidade que eu já morei - Miriam refletiu para defender seu ponto. - Mas, se não me engano, foi a única que teve alguém me ameaçando e matando pessoas.

Apesar da seriedade da situação, a garota trouxe um pouco de cinismo para sua fala e fez Dário dar uma leve risada.

— Você tem um bom ponto - ele aceitou.

— Morei até em cidades menores.

— Deve ser horrível.

— Olha, vou confessar que é sim. Mas têm uma parada nessas cidades que me deixa meio desconfortável.

— O que é? - ele pediu, curioso.

— A gente já falou, né, sobre como todo mundo se conhece e não têm muito pra onde fugir. Mas parece que as pessoas curtem isso demais, mais do que precisa. Quero dizer, saber tanto sobre os outros. Da vida, do que fazem, com quem andam.

— Acho que tou tão acostumado com isso que nem me dou tanta conta - Dário se justificou.

— É, parece ser automático pras pessoas, mesmo. Nunca curti isso. Principalmente vinda de fora, sendo novidade - Miriam refletiu com certo pesar. - Eu ando na rua e as pessoas me seguem com os olhos, analisando tudo.

— Não julgo elas - Dário comentou com certa malícia. - Bonita assim, né. Também fiquei te olhando.

Miriam não soube o que responder, mas desviou seu olhar do de Dário pela vergonha. Sentiu as maçãs do rosto queimarem.

— Só falei uma verdade - o garoto justificou, mas manteve a pompa do flerte, sem se abalar pelo silêncio da garota.

— Para com isso - ela pediu meio sem jeito e envergonhada.

— Pedindo com jeitinho, faço qualquer coisa - respondeu descontraído. - Até ir investigar um crime que aconteceu há vinte anos.

— A gente já tá chegando?

— Sim. É ali na praça da igreja, mesmo.

Fizeram o resto do percurso em silêncio e Dário guiou Miriam pela praça até uma pequena banca de jornais vazia. Na frente, um homem gordo e quase careca estava sentado em uma banqueta de madeira meio torta, observando a rua como se fosse um programa de TV muito interessante.

— Seu Sérgio - Dário o cumprimentou logo após virar a quina da banca e entrar no campo de visão do homem.

Miriam veio atrás e encarou o jornal no expositor. "O Anônimo está de volta à cidade".

— Piquetinho! - o homem bradou contente para Dário. Pelo apelido que usou, parecia conhecer o garoto. - Como tá o pai?

— Ele tá bem - Dário respondeu com muita simpatia. - O Senhor parece ótimo também. Fez falta aqui pelas bandas da praça.

— Tô, ô se tô - o senhor retrucou. - Nunca mais que eu deixo minha mulher me enfiar num centro cirúrgico, rapaz. Nunca mais.

— Mas que bom que rolou tudo bem. Ah, essa é a Miriam. Lá da escola.

— Essa moça bonita eu não conheço. Quem é o seu pai?

— Ah, a gente se mudou pra cá faz pouco tempo - ela justificou meio sem graça. Em toda cidade pequena era essa a pergunta que mais ouvia. Parecia só ser reconhecida como uma pessoa quando sabiam quem eram seus pais. Era alguém pelo seu sobrenome e não pelo nome.

— A gente tá fazendo um trabalho pra escola - Dário deu uma reforçada na simpatia para a mentira sair bem feita. - Sobre segurança e tudo mais. Cê sabe como anda a cidade...

— Sei, menino - Seu Sérgio ouviu com atenção.

— E a gente queria falar um pouco sobre o caso antigo, da Valéria e do Anônimo. Eu sei que o senhor era delegado na época e a gente queria ouvir um pouco mais sobre. Tipo, mais, mesmo.

O Senhor analisou os dois jovens por um momento, inclinou o corpo para o lado e alcançou um dos jornais do dia. Balançou suas folhas e colocou nas mãos de Dário, que desenhou uma expressão levemente decepcionada.

— Tá tudo aí na reportagem - Seu Sério não disse amargo, mas ainda sim sério. - Tudinho escrito aí, o que precisa saber.

— Eu sei, eu sei - Dário lamentou. - Mas achei que o senhor podia contar mais. Tipo, sei lá. Deve ter algumas informações, né?

— Seu pai sabe bem o estorvo que esse caso foi pra minha carreira, Piquetinho. - Seu Sérgio limpou a garganta e depois cuspiu no chão. Não parecia mais irritado. - Já é passado. Investigamos, prendemos pessoas, depois soltamos. E o caso morreu com o tempo. Virou só mais um causo na cidade.

— Entendi - Dário respondeu sem saber como continuar a conversa. Então Miriam o atravessou para não deixar o assunto cair:

— E a Valéria? Como ela era?

— Ah - o senhor começou a olhar para cima para resgatar na memória. - Ela era uma dona de casa normal. Conhecia os pais deles. Povo bom, pena que se foram cedo, num acidente de carro. Daí a menina casou logo com o vizinho, o Armando. Deu uma sumida, era bem caseira. Deu um ano de casório e o desastre aconteceu.

— O ex-esposo dela ainda mora na cidade? - Miriam perguntou.

— Não, não. Se mudou pra São Paulo logo depois da gente fechar o caso na polícia.

— E nunca tiveram nenhum bom suspeito de ser o Anônimo, então? - Dário fez a pergunta seguinte.

— O prefeito da época pressionou muito a gente pra resolver o caso logo. A eleição tava perto, perto. Queria prisão de qualquer suspeito que fosse só pra sossegar o facho da cidade, mas a cada suspeito o burburinho só aumentava. Principalmente porque a gente prendia e interrogava qualquer um, mesmo. Tinha qualidade nenhuma. Daí o caso andava nada. Mas os causos, sim.

— Por isso nunca chegaram perto de descobrir quem era o Anônimo? - Dário refletiu.

— Na verdade, vou te contar uma coisa, menino. Já soltei esse verbo pro seu pai uma vez também - Seu Sérgio se ajeitou no banquinho torto. - Tenho pra mim que esse Anônimo é balela. E me arrependo muito de nunca ter conseguido provar.

— Então o senhor não acredita no Anônimo? - Miriam interrompeu com curiosidade.

— Nunca acreditei. História pra lá de maluca, essa. Cê sabe como corre os causos por aqui, né? A história vai aumentando, virando outra coisa. Tinha as cartas, isso sim. Eu li todas. Umas duzentas vezes. Mas não acho que foi tudo a mesma pessoa.

— As cartas foram, tipo, só para distrair?

— Talvez sim, talvez não. Por ser meio inusitado, acho que o povo gostou. Dava um bom papo, sabe? A cidade só falou disso por anos e anos - Ele puxou os jornais de volta da mão de Dário. - Esse Anônimo também é isso, um fantasma. Só pra distrair o povo do que importa mesmo. Se num fosse ele, o prefeito não teria sido reeleito. Era um traste. Eia, homenzinho ruim.

— Como assim? - Dário pediu para entender melhor. - Mesmo com o caso sem resolver, o prefeito se saiu bem? É que, tipo, o prefeito de agora não está muito bem...

— Uma coisa eu aprendi sendo delegado e político, meninada: um caso sem solução é um estorvo. É melhor inventar um culpado. O prefeito Noel aproveitou muito a época. E ter tido só uma única vítima ajudou. Foi como se a polícia e o prefeito tivessem afugentado o Anônimo pra longe de Albuquerque. Mas a verdade verdadeira é que a gente não fazia a mínima ideia do que tava fazendo.

Miriam e Dário se entreolharam intrigados.

— O prefeito de agora, como é o nome dele, mesmo? - Miriam perguntou;

— É Olavo - Dário respondeu.

— Isso, prefeito Olavo - ela continou. - Ele tentou isso, né? Com o delegado que foi preso. O pai da Paloma.

— Batata! - Sérgio comemorou. - É esperta essa sua namorada, Piquetinho. O prefeito botou o delegado, amigo dele, na roda. Mas foi pelas culatras, né. A outra moça morreu. Nem tudo que dá certo uma vez, dá certo de novo.

A última frase do Seu Sérgio mexeu com a cabeça de Miriam, que formulou a pergunta:

— Agora teve alguma outra coisa parecida com o primeiro caso, da Valério? Tipo, outra semelhança, qualquer coisa que lembre o passado.

— Se essas duas jovens que se foram, que Deus as tenha - o senhor continuou -, tiverem alguma coisa a ver com a Valéria, é só na história, mesmo.

— Como assim?

— A Paloma, filha do delegado. Ex-delegado, sei lá mais. Era filha da maior comadre da Valéria da época. E a outra moça, Larissa, né? A mãe dela era empregada da casa dos pais da Valéria desde muito novinha, bem moça ainda. Interroguei ela muitas e muitas vezes. Inclusive, seu pai, Piquetinho, já deu uns amassos na Valéria atrás da igreja na quermesse, eu lembro! Ela era uma moça muito da bonita.

Dário pareceu surpreso com a informação e Sérgio deu uma risada, completando:

— Seu pai nunca te contou, né? Eia, esse Piquetão. Era um galã e tanto na nossa época.

— Então as duas tinham uma relação com a Valéria, querendo ou não - Miriam refletiu em voz alta.

— E quem nessa cidade não têm, moça? - Seu Sérgio deu outra risada. - Contei só por curiosidade. Enfim, é o que acho: esse Anônimo foi um fantasma anos atrás e deve tá sendo hoje de novo.

— Seu Sérgio, muito obrigado pela ajuda - Dário rapidamente cumprimentou o homem e Miriam fez o mesmo. - Vai ajudar bastante na escola!

Os dois voltaram para o meio da praça bem reflexivos.

— Então esse Anônimo não tem nada a ver com o primeiro, se é que ele existiu. Não é baseado em fatos reais - Dário comentou, ainda meio confuso.

— Sabia que dizer que algo é baseado em fatos reais é errado? - Miriam perguntou enquanto se preparavam para atravessar a rua.

— Não entendi.

— É que se você falar que algo é baseado em fatos, já tá dando a ideia de que é de verdade e aconteceu. Não precisa falar reais. Falar fatos reais é tipo falar bolo bolo.

— Então esse Anônimo não é baseado em fatos - ele se corrigiu, rindo.

— Isso. Você pega as coisas rápido - Miriam zombou, e depois voltou a refletir: - Aquilo que ele falou sobre a relação da Paloma e da Larissa com a Valéria, até você, me pegou um pouco.

— Acho que é nada - o garoto opinou. - Se for assim, a cidade toda deveria ter recebido uma carta.

— Você tem razão. É que até agora a gente não sabe o motivo de ser exatamente a gente os remetentes da carta e isso ficou muito na minha cabeça.

— E outra: por que você teria recebido? Acabou de chegar aqui - Dário lembrou. - Windera também.

— É verdade - Miriam se sentiu um pouco besta. A busca por respostas e pistas estava deixando ela meio perdida, já.

— No fim a gente não descobriu muita coisa - Dário disse decepcionado.

— Só que o Anônimo atual muito provavelmente não é o primeiro, se é que ele existiu - ela conclui. - Felipe tava errado. Quer dizer, errado e certo ao mesmo tempo. Também foi ele que disse que era um dos remetentes.

— Então a gente investiga os outros? Isso? - Dário quis entender.

— Acho que é o que temos pra fazer... A única pista, se é uma pista.

— Ok. Mas a gente vê isso amanhã. Tenho um compromisso agora de noite - Dário disse ao parar na esquina e se aprontar para cada um seguir para um lado da quadra.

— Tá bem - ela respondeu se preparando para dar um abraço de despedida. Mas Dário foi mais rápido, mirou os dois lábios juntos e roubou um beijo de Miriam. Num primeiro segundo a garota até hesitou, mas depois se entregou.

— Sem lágrimas dessa vez - ele comentou risonho e foi embora.

 


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