O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 3
Duas espadas




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A carroça seguia seu trajeto sob a luz da lua, sacudindo o suficiente para jogar algumas coisas de um lado a outro vez ou outra. Gabriel não se interessava pela paisagem adiante, pois para tanto precisaria se aproximar do mercador que conduzia os cavalos. Ao invés de disso, perdia-se em pensamentos diante da vegetação e das colinas distantes. Já faziam algumas horas desde que tinham se afastado da Vila dos Farrapos e desde então, nenhuma moradia foi vista.

—Tral, não é? – indagou o mercador em voz alta para sobressair todo o barulho do veículo, do vento e dos cavalos.

Gabriel sentiu uma fisgada incômoda na barriga. Não queria falar com aquele sujeito, mas pelo visto isso seria impossível. Na verdade, notou que estava sendo injusto com alguém que não lhe fizera mal algum e, pelo contrário, o estava ajudando. Brigou consigo mesmo em pensamento e deixou o fundo da carroça para se juntar a Nicolas no banco dianteiro.

—Sim, senhor.

—Foi muito heroico da sua parte ajudar a Heler. Tem minha gratidão, afinal eu estimo muito aquela pirralha.

O rapaz apenas esboçou um fraco sorriso de canto.

—De onde é, Tral?

—Cidade dos Portos. Vim para essas bandas em busca de odelas. – respondeu de acordo com o que se lembrava da instrução de Heler.

—Ah, Cidade dos Portos! Eu pretendo conhecer aquele lugar algum dia. Dizem que é excelente para fazer negócios.

Gabriel olhou para Nicolas, que olhava para a estrada com uma expressão muito tranquila. Notou que faltava um pequeno pedaço em sua orelha esquerda e teve calafrios ao imaginar como aquilo tinha acontecido.

—Conhece o Bar da Rosa da Cidade dos Portos? Dizem que a dona dele é uma verdadeira beldade.

—Eu... Sim. Ela é bem bonita mesmo, mas não faz meu tipo. O senhor não é casado, né?

Nicolas gargalhou, meneando a cabeça em negação.

—Não, felizmente não! Um homem como eu não pode pensar em casamentos, isso mudaria completamente meu estilo de vida, eu odiaria. Mas me fale mais da dona do bar e talvez eu repense.

—Ah, como posso dizer?! Ela é realmente muito bonita. Suas... Curvas... Seu cabelo, sua pele... Não sei descrever, é quase perfeita. – pensava em cada palavra na construção de sua mentira, tentando disfarçar o nervosismo ao observar os cavalos.

—Isso me deixa muito interessado. Acho que eu realmente vou precisar retornar a Cidade dos Portos...

Gabriel congelou e seus olhos ficaram arregalados. Um frio horrível lhe cortou de fora a fora. Quando se deu conta, suas pernas estavam tremendo e não era por conta dos solavancos da carroça. Retornar. Então Nicolas conhecia a Cidade dos Portos.

—Sabe o que é engraçado, Tral?! Eu poderia jurar que o Bar da Rosa fica em Calendria, para onde estamos indo. E... Se eu bem me lembro, a Rosa pode ter sido realmente muito bela em sua juventude, mas agora é só uma velhinha encrenqueira.

O rapaz encarou o homem com absoluto pavor, embora este continuasse olhando tranquilamente para a estrada.

—Senhor... Eu...

—Você...? – Nicolas o encarou e quando o fez, estava absolutamente sério. Os olhos castanho-claros do homem prendiam-se aos verdes de Gabriel como se quisessem enxergar sua alma.

Então, a carroça parou no meio do nada. Dos dois lados haviam campos, grama verde e algumas árvores mais distantes. O vento fazia questão e sacudir o tecido que cobria o veículo, bem como as roupas dos dois no banco dianteiro.

—Quem é você?

—T-Tral! Tral Dotan!

—Mentira! – rosnou o homem, chutando o rapaz para fora e o derrubando com violência no chão de terra.

Ele tentou correr, mas o mercador facilmente lhe agarrou pela camisa e o atirou de novo contra o chão. Depois apoiou o joelho em seu peito, sacou o punhal e apontou para um dos olhos verdes dele.

—Por favor, não faça isso!

—Diga quem é você! Um emberlano? Um calendrino? Um maldito informante? Não vou permitir que ninguém faça mal aos moradores da vila!

—Não sou nada disso! Está cometendo um erro! Aaaah! – perdeu o fôlego quando o joelho em seu peito se tornou mais pesado.

—Você ouviu as conversas na taverna. Se levar isso aos nobres de Calendria, será o fim da Heler, do pai dela e da vila! Já vi muitas pessoas queridas serem mortas por muito menos, não posso permitir que isso se repita! – Nicolas ergueu o punhal ligeiramente para desferir um golpe contra o outro.

—Gabriel! – gritou o rapaz desesperado.

Houve silêncio. O mercador estava perplexo com o que tinha acabado de escutar.

—Meu nome é Gabriel. Por isso eu não quis dizer a verdade! Meu nome é um tabu, não é?! Eu não quero fazer mal a Heler ou a vila. Tudo o que eu quero é voltar pra casa, senhor Nicolas.

O mercador saiu de cima do rapaz, que finalmente conseguiu se levantar com dificuldade. Embora seu peito doesse e seu coração estivesse batendo muito rápido, o rapaz estava mais preocupado com a reação do homem que o encarava absolutamente desconfiado e de cenho franzido.

—Se chama Gabriel e sua casa é em Calendria? Eu juro que vou te...

—Minha casa não é em Calendria. Mas preciso ir até lá. Preciso tentar falar com o mago Merlin e saber se há uma maneira de voltar para o meu mundo.

—Seu mundo? – a confusão só aumentava no rosto do mercador.

—Eu não sou desse lugar. Olha, eu sei que tudo isso é um grande absurdo e não te culpo por não acreditar em mim. Eu realmente não sei o que fazer para provar que estou falando a verdade!

Nicolas sentou na traseira da carroça e começou a brincar inconscientemente com o punhal, algo que o mais novo não pôde evitar de observar e se preocupar. De repente estava pensativo, como se fizesse um grande esforço para vasculhar na memória algo importante.

—Quando viajei para o reino dos anões em Stonehold, ouvi rumores sobre algo maluco e pensei que era besteira, afinal aqueles idiotas gostam muito de inventar histórias. Mas agora... – ele encarou o rapaz, ainda perplexo – Isso seria possível?! Não... Óbvio que não! É loucura!

—Desculpe, mas o que é loucura, senhor Nicolas? – tentou o rapaz com extrema cautela.

—Qual o nome do seu reino?

—O meu reino?

—Responda rápido! Sem pensar! Vamos! – ordenou e apontou-lhe de longe o punhal.

—Ah... Terra! Espera, esse é meu planeta!

—Seu reino!

—Brasil! Mas não é um reino!

—Seu idioma!

—Português!

—Cinco comidas de lá!

—Arroz com feijão, macarrão, feijoada, galinhada e x-tudo!

Nicolas meneou a cabeça em confusão.

—Não faço ideia sobre o que está falando. Mas se o seu idioma é diferente, como pode falar tão bem o nosso idioma? Está mentindo!

—Sobre isso, não sei responder! – replicou em desespero - Eu consigo perceber que estou falando uma língua estranha e que a escrita de vocês é bem diferente, mas ainda assim sou capaz de entender e pronunciar.

—Aquele mago... O que ele andou fazendo? – desesperou-se Nicolas, passando a mão pelos cabelos grisalhos – Isso não é possível! Está tentando me fazer de idiota, pirralho! É um maldito informante dos nobres que procuram um pretexto para destruir a Vila dos Farrapos! Desde que o Rei Negro protegeu aquele lugar e depois Merlin também o fez, aqueles desgraçados ficaram obcecados! Eu tenho que te matar! Vou garantir que eles estejam seguros! – vociferou por fim, pulando da carroça em direção ao jovem.

—E se estiver errado? – gritou Gabriel numa mistura de irritação e medo – Vai matar um inocente! Vai matar alguém que não fez nada para Heler, para o senhor Heitor ou qualquer outro daquela vila!

—Eu não posso arriscar!!!

O mais jovem percebeu uma preocupação genuína nas feições do outro. Embora de expressões duras, havia um instinto protetor no mercador, como alguém que tentava guardar com esmero aquilo que lhe restava. Alguém que tinha perdido muito e se recusava a perder mais. Todavia, tanta confusão em tão pouco tempo e tudo o que tinha acontecido nesses últimos dias trouxeram uma pressão maior do que Gabriel era capaz de suportar. Foi quando explodiu:

—Heler confiou em você! – berrou o rapaz – E eu confiei nela! Nunca quis viajar com você, mas ela me disse que eu não precisava me preocupar! Se eu fosse um maldito informante como está dizendo, já teria te matado e roubado a carroça! Por que eu precisaria de você vivo? Além do mais, que tipo de informante não saberia que a droga do bar sei lá o que não fica em Calendria? Seu... grande idiota! Estou desarmado, não percebe? Idiota!

A respiração de Gabriel era ofegante, como se tivesse acabado de correr cem metros a toda velocidade. Já Nicolas o observava de maneira minuciosa. Houve um instante de silêncio, até o mercador finalmente abaixar o punhal. Estava ficando cada vez mais frio conforme a noite avançava e no céu, a lua iluminava a região, cercada por incontáveis estrelas.

—Talvez tenha razão. Nenhum informante seria tolo de andar por aí indefeso, além do mais, só um idiota forasteiro saberia tão pouco sobre este continente e o outro do Oeste. Desconhece a Cidade dos Portos e também Calendria. Por Nymira... – suspirou, guardando a arma branca de volta na cintura – Por que essas maluquices só acontecem comigo?! Tá, vamos embora.

O garoto hesitou.

—Anda, moleque! Sobe logo, não temos a noite inteira!

Minutos após darem continuidade a viagem, Nicolas olhou para trás e viu o rapaz outra vez sentado na parte traseira. Diferentemente de outrora, agora parecia irritado.

—Vai ficar de birrinha? Eu nem te machuquei.

—Não enche! – retrucou Gabriel com rispidez.

—Eu não ia mesmo te matar...

—Sim, você ia.

—Tá... Eu ia sim, mas por uma ótima razão. Além do mais, você é bem esquisito e cheio de mistérios, sem falar na porra desse nome. E afinal, o que caralho é um x-tudo?

Silêncio.

—Não vai falar comigo, forasteiro?

Silêncio.

Nicolas deixou escapar um riso, mas logo recobrou a seriedade quando reflexões vieram a sua mente. “Merlin e suas frequentes viagem a Stonehold... Aquela conversa dos anões bêbados a respeito de um tal Portal dos Mundos... Achei que estivessem falando do Escudo do Mundo. E agora esse garoto esquisito aparece... Tudo isso é estranho demais. Seria possível existirem outros mundos? Além disso, ele diz se chamar Gabriel. Como alguém teria coragem de dar ao filho o nome do Rei Negro?”

—Ei, Gabriel.

O rapaz olhou confuso para o mercador. Era a primeira vez que alguém o chamava pelo nome desde que chegou. O mais velho notou que tinha conseguido capturar a atenção dele e se aproveitou disso para tentar saber mais.

—É o seu nome, não é?

—Sim...

—Gabriel o que?

—Fernandes.

—Fernandes, hein... Por que não me conta em detalhes tudo o que aconteceu? Mas dessa vez, sem mentiras.

E o rapaz contou sem omitir nada, desde o momento em que acordou na floresta próxima a vila, até o instante em que conheceu Nicolas.

—Entendi. Eu nunca ouvi nada parecido, se quer saber. E olha que já presenciei muitas coisas doidas. – ele soltou o ar dos pulmões e assobiou – Acha que Merlin terá as respostas que procura? Na minha opinião, está indo direto para a boca do lobo.

—Não sei. Heler me contou sobre ele, que é um mago extremamente poderoso e tudo o mais. É a única esperança que eu tenho, sabe? Quer dizer, o que posso fazer? Qual estrada eu pego para ir pra casa? Estou preso neste mundo querendo ou não. Além do mais, ele não sabe nada sobre mim... – tentou se animar, mas isso não durou nem dois segundos – E eu não sei nada sobre ele ou esse mundo...

—Hum, pensando por esse lado, você está bem fodido. Mas Heler te deu um bom norte, porque uma coisa é certa, Merlin é o maior conhecedor de magia e coisas estranhas que essas terras já viram. – o mercador preferiu omitir o que sabia a respeito dos anões – É, talvez esteja no caminho certo. Ele é com certeza... Essa não... Droga!

—O que foi? – estranhou o rapaz.

—Militares de Calendria.

Gabriel precipitou-se rapidamente para a dianteira da carroça e viu um grupo de cinco cavaleiros cavalgando na direção deles. Usavam as mesmas armaduras daqueles que tinha visto na floresta; prateada, com um brasão em relevo no peitoral que lembrava uma flor e capas brancas.

—Espero que se lembre, seu nome é Tral. Você veio da Cidade dos Portos e está em busca de odelas. Não diga nada idiota, pirralho... – murmurou.

—Sim, senhor.

A carroça perdeu velocidade até parar completamente quando foi cercada pelos cinco cavaleiros.

—Boa noite, senhores! – cumprimentou Nicolas.

—Boa noite, mercador! – respondeu o cavaleiro que estava a frente deles, tirando o elmo e revelando o rosto marcado por uma cicatriz transversal da testa até a mandíbula. Um homem de meia idade, barba feita e calvo, de expressões tão duras quanto as do próprio mercador – Estão vindo de onde?

—Da Vila dos Farrapos. E antes disso, do vilarejo Lisbel, Sir Decarlo.

—Não vende mais para os porcos da Cidade Sombria? – debochou o militar, arrancando sorrisos bajuladores dos seus.

—Eles me rejeitam. – respondeu com uma gentileza que Gabriel considerou bem questionável.

—E você, rapaz? Quem é?

—Tral Dotan, senhor. Um cozinheiro atrás de odelas, Sir Decarlo. – fingiu a mesma gentileza de Nicolas e este arqueou a sobrancelha, olhando do rapaz para o cavaleiro na expectativa de que este acreditasse e não fizesse perguntas desnecessárias.

—Tsc. Um mercador e um cozinheiro. Erick! O que encontrou aí atrás?

—Nada irregular, capitão! – respondeu o soldado Erick em alta voz depois de checar a bagagem da carroça.

Gabriel reparou que o tal capitão Decarlo carregava duas espadas ao invés de uma, como todos que tinha visto antes. Embora um fio de curiosidade tivesse percorrido sua mente, definitivamente não queria vê-lo em combate, sobretudo na situação em que se encontrava.

—Desçam da carroça vocês dois! – ordenou em tom firme.

Ambos desceram. O garoto sentiu que a situação estava ficando estranha. Perguntou-se várias vezes se tinha feito algo errado, se tinha deixado passar algum detalhe. Quando levou uma cotovelada leve e sutil do mercador, percebeu que estava com a expressão errada de medo e logo se recompôs.

—De onde você é, cozinheiro? – indagou o capitão.

—Da Cidade dos Portos, Sir. – respondeu prontamente.

—Navegou de muito longe, hein. Tudo isso só para apanhar algumas odelas?

—São essenciais nas minhas receitas. Eu costumo fazer algumas tortas que...

—Tá, tá... Não importa. – ele segurou Gabriel pelo braço com firmeza e aproximou o rosto para olhá-lo de perto – Estou procurando um sujeito jovem como você. Disseram que ele tinha um corte de cabelo diferente, mas o seu é bem comum. Disseram também que ele tinha olhos verdes... Ah, vejamos o que temos aqui... Louzada, me dê a merda dessa tocha! Anda! – berrou para o soldado que logo lhe entregou o objeto em chamas.

Gabriel sentiu o calor forte da tocha incomodar sua pele, mas se manteve firme e encarou o capitão sem pestanejar. Teve para si que caso hesitasse ou tentasse dificultar, aquele sujeito de pavio curto poderia prejudicar tanto a si, quanto ao mercador. Embora tivessem discutido recentemente, não o odiava e até conseguia entende-lo, afinal, seu surto se dera em prol da proteção da vila.

—Seus olhos são verdes, cozinheiro. Como disse que se chama mesmo?

—Tral, Sir. Tral Dotan.

Decarlo estudou Gabriel minuciosamente, então sorriu e o largou, devolvendo a tocha para Louzada. Quando o rapaz respirou aliviado, sentiu uma forte pancada na barriga que o deixou de joelhos. Por um instante, seus sentidos ficaram completamente embaralhados e a dor consumiu sua mente. Demorou a entender que tinha sido golpeado por um soco de Decarlo.

—Parem! Ele é só um cozinheiro! – protestou Nicolas.

Sir Erick desembainhou a espada e a colocou próximo ao pescoço do mercador, então o ameaçou:

—Fique fora disso ou não negociará nada amanhã.

—Ele é só um cozinheiro, mercador?! – perguntou retoricamente o capitão – Pode ser que sim, pode ser que não. A única maneira de descobrir a verdade é através de uma longa e persuasiva conversa. Lamento, garoto, mas não posso me dar o benefício da dúvida. Ordens são ordens.

Os outros dois soldados que até então nada fizeram, uniram-se para amarrar as pernas e os braços de Gabriel. Em seguida, Sir Erick o jogou nos ombros como a um saco de milho e lançou sobre o cavalo, montando logo atrás.

—Você não viu nada. Você não ouviu nada. Fui claro, mercador?

—Claro como o dia, Sir Decarlo. – respondeu um Nicolas impotente, cujo olhar estava preso no rapaz que era forçado a olhar para frente.

Os militares deram meia volta e cavalgaram em direção ao reino de Calendria. Por algum tempo, Nicolas esfregou os cabelos e proferiu uma lista de palavrões. Foi então que decidiu seguir o caminho contrário; a carroça passou a se mover com destino a Vila dos Farrapos.


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