O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 23
O Estranho




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Na mais alta torre do palácio real, arredondada e protegida apenas por parapeitos de pedra que se erguiam a pouco mais de um metro de altura, era possível ter uma boa visão dos arredores, desde a floresta em volta até a cidade que, naquele dia, estava muito movimentada.

Trajando uma armadura de placas azuis que cobriam as vestes negras por baixo, o imponente rei Yliel se apoiava com as mãos no parapeito e observava a intensa movimentação de soldados pela rua principal do reino. Seus olhos azuis avaliavam cirurgicamente cada detalhe e se um dia ele aparentou um ar amigável, agora tinha a expressão de um soberano frio que combinava com aquela tarde nublada.

—Mandou me chamar, senhor? – anunciou-se Gabriel enquanto terminava de subir as escadarias espiraladas que conduziam ao topo da torre.

—Sim. – respondeu, embora ainda se mantivesse observando na mesma direção – Você está sem espada e não pode lutar uma guerra desarmado, por isso ordenei que forjassem uma que lhe fosse adequada. Ali, pegue-a. – apontou, ainda de costas.

O rapaz notou a diferença entre o Yliel de algumas semanas e este, porém não se sentiu desconfortável sobre isso. Ele olhou para o canto indicado pelo rei e viu uma espada embainhada, logo se adiantou para pegá-la. A própria bainha já era muito bonita, preta e com detalhes dourados, todavia ao retirar a lâmina do seu interior, ficou realmente admirado. Viu o reflexo dos seus olhos verdes no aço e sentiu um formigamento por todo o braço até as costas.

—Rastare, também conhecido como aço élfico. Extremamente raro, só pode ser encontrado no subterrâneo de Aurora e no desfiladeiro de Três Luas, o reino dos elfos de Moroeste. Entretanto, é necessária muita habilidade para forjar qualquer coisa com esse material. – explicou, voltando-se para o rapaz e o encarando num ar de rigor – Está sentindo? Sua aura sendo drenada pouco a pouco?

Gabriel olhou do rei para a espada, franzindo o cenho. Tentou folgar a pegada no punho que também era negro com detalhes dourados, porém foi inútil.

—Como se para isso?

—Com o domínio da aura. Se eu te entregasse essa espada quando nos conhecemos, você provavelmente já estaria de joelhos. Só que agora está de pé, o que denota um grande progresso da sua parte, embora não seja suficiente.

Ao dizer isso, Gabriel sentiu as pernas vacilarem e lutou para não cair. Já não sentia o braço, nem o punho da espada em sua mão direita, tudo estava adormecido.

—Seria muito fácil lhe entregar uma espada qualquer. Você seria capaz de lutar contra soldados de nível inferior, mas fracassaria se alguém mais poderoso atravessasse seu caminho.

—Merlin... – disse baixinho e com irritação.

—Não só ele. – replicou, tomando a espada da mão do humano e a apontando para o Leste – Merlin não é o único indivíduo poderoso em Calendria, amigo. Não sabemos praticamente nada referente aos dias atuais, mas no passado, seu eu anterior encontrou dificuldade ao lutar contra um sujeito que, diga-se de passagem, você já conheceu.

—Decarlo? – estranhou.

—Não... – o rei quase riu, como se tivesse escutado uma piada – O Humano das Duas Espadas seria facilmente derrotado e humilhado. Não... O homem que fez frente a Gabriel Eichen se chamava... Duronth Vingard... Alabas, comandante do exército de Calendria naquela época.

Ao ouvir aquilo, se lembrou imediatamente da luta de Alabas contra o capitão Decarlo. Embora estivesse velho, ele fez frente a alguém que usava duas lâminas e, pior ainda, tinha liberado um poder sinistro que parecia tê-lo enlouquecido.

—Não sabemos o nome do comandante atual, tampouco dos outros capitães, exceto Decarlo, graças as suas infames torturas nos arredores da floresta Lazúli. – ele desembainhou Elindora e começou a mover ambas as lâminas como se fossem brinquedos, cortando o ar em movimentos precisos – É mais do que óbvio que estarão esperando por você, Gabriel. Só que no campo de batalha, não poderei garantir sua segurança o tempo inteiro, nem ocupar nossos soldados com essa tarefa. Temos nove mil aptos a lutarem essa guerra e, como pode imaginar, Calendria possui um exército muito maior. Estimamos que estejam na casa dos quinze mil homens, mas pessoalmente acredito que esses números sejam “otimistas” demais.

Yliel entregou Elindora para Gabriel, que hesitou por um momento.

—Experimente.

Ele então a empunhou e na mesma hora sua visão ficou turva, simplesmente não viu quando bateu os joelhos no chão da torre. Ainda conseguia ouvir o rei, embora sua voz parecesse distante:

—Assustador, não é? A quantidade de aura que essa espada drena. Sou o único capaz de empunhá-la e nem mesmo Erdwen, meu mais poderoso soldado, pode manejá-la adequadamente. – contou calmamente, se abaixando para pegar de volta a lendária espada.

Foi como tirar um peso horrível das costas e da mente. Quando Elindora saiu de sua posse, o rapaz finalmente conseguiu se levantar, mas ainda se sentia atordoado.

—Não estou contando e fazendo essas coisas para perturbá-lo, amigo, mas para que entenda no que está se metendo. É verdade, nós de Aurora esperamos por você e desejamos que lute ao nosso lado, entretanto ninguém, nem mesmo eu ousarei interferir na sua decisão, seja ela qual for.

—Eu já disse... – falou com a voz fraca, segurando a cabeça como se ela fosse cair – Já disse que lutarei com vocês. E mesmo que agora eu entenda ainda mais o quanto sou fraco, minha decisão não mudou. Me dê essa espada, por favor.

Curioso, Yliel lhe entregou a outra lâmina que tinha sido forjada para o garoto. Ao recebe-la, o garoto liberou a própria aura e tornou o verde em seus olhos mais intenso. Assim, pôde enxergar a energia em seu corpo sendo literalmente sugada pela espada... E viu que isso estava acontecendo bem rápido.

—Sua espada tem um nome, senhor. Quero que esta aqui também tenha um. – admitiu, segurando no próprio ombro que já tremia.

Um brilho de satisfação percorreu os olhos do rei elfo.

—Reborn.

—E o que significa? – indagou Yliel.

—Vem de uma das línguas do meu mundo. Significa Renascida. – explicou ofegante – Quando nós partiremos, senhor?

—Renascida... Um nome pertinente. Partiremos na noite do próximo dia.

—Excelente. Ela e eu vamos nos entender até lá. – afirmou convicto, guardando Reborn em sua devida bainha e a prendendo na cintura – Não tomarei mais o seu tempo, senhor, entendo que estará muito ocupado. Quando a hora chegar, eu me apresentarei.

—Não se esqueça de visitar sua amiga, Gabriel. – pediu enquanto também guardava Elindora.

—Obrigado por cuidarem dela, mesmo que ela pertença ao povo que os atacou.

Yliel meneou a cabeça em negativa e com um olhar sincero, disse:

—Heler arriscou a própria vida para tentar salvar minha filha. Não importa que seja calendrina, importa que um fio do seu cabelo é mais nobre do que a maioria do seu povo.

Sentindo-se aliviado, Gabriel deu um meio sorriso e desceu pelas escadarias espiraladas.

Já era noite e ele ainda estava nos jardins do palácio real, meditando sem para tanto largar a espada que recebera. Era estranho, pois de olhos fechados conseguia enxergar a chama que representava sua aura, no entanto era como se ela estivesse diminuindo ao invés de aumentar. Dessa vez, seu objetivo era garantir que isso não acontecesse, porém estava sozinho nessa tarefa.

Após inúmeras tentativas, ele caiu deitado na grama de braços abertos, largando a espada. Ofegava como se tivesse acabado de correr um longo percurso, suava frio e seu braço direito inteiro estava adormecido. Por um momento, sentiu como se a mão de Leeta lhe tocasse o ombro e isso realmente doeu... Pois ela não estava ali.

—Maldita Calendria... Maldito Merlin... Maldito Decarlo e Walther... São todos uns miseráveis! – disse entredentes, mordendo o lábio inferior enquanto as lágrimas começavam a escorrer até a orelha, afinal ainda estava deitado – Por que não me matou? Eu estava bem ali, perto dele... Por que matou a Leeta? Por que fizeram isso com a Heler? Eu queria... Como eu queria dar minha vida e morrer para que elas estivessem bem! Deveria ser eu, desgraçados! Nunca vou perdoar isso, é injusto demais!

Quando olhou para o lado, viu Ada sentada em W, o observando. Havia pesar em seus olhos castanhos, como alguém que empatiza com a dor do outro, como se quisesse dividi-la para tornar mais fácil de carregar.

—Como a Heler tá? – indagou ele, enxugando os olhos e se sentando.

—Conseguiu tomar uma sopa de vegetais que a Sylie preparou. Ainda tem dificuldade para falar e o ferimento em sua barriga infeccionou um pouco, por isso redobramos o cuidado para tratar e limpar. – contou calmamente – A adaga não estava envenenada, felizmente. Porém, para causar uma infecção mesmo com tantos cuidados, com certeza encontrava-se em péssimas condições.

—Aquele verme maldito... – praguejou, fechando os punhos irritado.

—Essa espada é sua, Gabriel? – indagou a mulher de cabelos negros e trançados, cumprindo o que havia dito sobre não chama-lo de rei no momento.

—Sim, o senhor Yliel mandou que a forjassem. Mas eu não consigo dominá-la, por mais que tente de novo e de novo. – admitiu frustrado.

—Ela é menor do que aquela que você tinha em sua outra vida. – revelou Ada, analisando a arma minuciosamente, mas sem tocá-la – Mas ainda assim parece muito perigosa.

—Se lembra de ter visto o Rei Negro? – perguntou o rapaz interessado.

—Bom, eu era pequena naquela época, mas lembro de algumas coisas. Ele tinha prometido reconstruir a terra natal dos emberlanos, a qual chamou de Nova Emberlyn. Quando aparecia, estava sempre cercado por outras pessoas que pareciam bem importantes, embora eu não lembre dos seus rostos ou nomes.

—E como era o rosto dele? – quis saber mais, como se procurasse juntar as peças.

—O rosto de um homem muito sério, é o que me lembro. Bom, estamos falando de você em outra vida, mas seus rostos não se parecem tanto, exceto pelos...

—Olhos. – completou ele.

—Sim. São os mesmos olhos e ninguém que eu conheci se compara.

—Engraçado... Nas vezes em que eu o vi, os olhos dele pareciam lagos de fogo. Eu não vi nada de verde neles, nada mesmo.

—Não é assim que eu me lembro dele. Eu acredito em você, sei que não está mentindo, mas quando fala desse jeito, não consigo sequer imaginar como é. – disse ela meio sem jeito.

—Em algum momento, ele se transformou no monstro que eu vejo dentro de mim. – ele apanhou a espada e ficou de pé, assumindo a posição que Aelin lhe ensinara – Desculpe, Ada. Não tenho muito tempo para dominar a Reborn, minha espada.

—Tudo bem. – respondeu ao se levantar e bater com as mãos no vestido azul-claro – Se eu puder fazer qualquer coisa para ajuda-lo, sabe que é só pedir.

—Já está fazendo ao cuidar da Heler. Vou visita-la antes de partir, prometo.

—Direi a ela. – proferiu Ada com um sorriso antes de se retirar.

A espada élfica e Gabriel pareciam competir em um cabo de guerra, porém ele sentia como se sua oponente fosse na verdade um gigante com força bem superior, quase invencível. Como o senhor Yliel consegue empunhar a Reborn e a Elindora juntas?

O domínio da aura. Essas palavras vieram a sua mente, mas empunhar a espada estava lhe tirando a concentração, por isso a largou sobre a grama.

Se você não libertar sua aura para medi-la, não conseguirá dominá-la. Não vai sair do lugar se continuar o reprimindo!” Lembrou-se das palavras de Yliel quando treinaram nas cordilheiras.

Sinto como se houvesse uma porta que não pode ser aberta. No fundo, eu sei que ele está lá, do outro lado, carregando consigo todo o restante da aura que eu ainda não consegui liberar. Mas o que acontece se eu abrir a porta? Mal consigo controlar esse nível absurdo de aura e sempre que meus olhos mudam, fico esgotado rapidinho.

—Não posso...

Se ele aparecer, se ele assumir o controle, todos estarão correndo um grave perigo. Só eu o vi, só eu senti toda a ira que borbulha no interior daquela armadura negra como se fosse um vulcão prestes a explodir. Além disso, há... aquilo... Eu tento não pensar sobre aquela insanidade, mas me dá vontade de vomitar, tamanho é o meu medo.

—Ele me advertiu sobre o que aconteceria...

Mas eu só quero dominar minha aura, que está incompleta! Não tenho muito tempo, logo estarei no campo de batalha junto com os elfos. Isso tudo é tão maluco que eu sequer parei para pensar na experiência que deve ser lutar em uma guerra, posso acabar morto em segundos. Leeta... Se estivesse aqui, o que diria pra mim? Como eu queria ouvir sua voz agora. Se... Se ao menos acontecesse com você igual aconteceu comigo...

Mesmo em meio a escuridão da noite, tudo ao redor dele ficou ainda mais sombrio. Calafrios começaram a percorrer todo o seu corpo e embora tentasse afastar a aquela hipótese, sabia muito bem o que estava para acontecer. Seus olhos num verde intenso buscaram em volta a armadura negra, na tentativa de entender quanta aura o Rei Negro possuía, todavia não o encontrou.

—Quem está aí? – perguntou baixinho, se esforçando para empunhar Reborn e ignorando o quanto isso estava lhe desgastando.

De repente, viu a si mesmo, como se fosse um reflexo quase perfeito no espelho. Quase, vale ressaltar, pois ao invés do verde, os olhos do outro possuíam uma cor bem diferente e intensa. Púrpura.

—O que? – Gabriel ficou atordoado e extremamente confuso – Eichen?

—Não... – o rapaz no espelho sorriu – Para a sua sorte, não.

—Quem é você, então? Por que é igual a mim? Que droga está acontecendo?

—Eu? Sou seu melhor amigo. Sou aquele que está impedindo o Rei Negro de assumir o controle, pois você é muito fraco e jamais conseguiria tal feito sozinho. – a voz era idêntica a sua, contudo saía como se alguém muito mais experiente estivesse falando, fosse pela calma ou pela certeza de cada sílaba proferida.

—Então é por sua causa que ele não consegue me dominar? – questionou intrigado, ignorando ter sido chamado de fraco, pois até concordava.

—Ah, exatamente. O Rei Negro está no controle da maior parte de sua aura e você, Gabriel, já se deu conta disso. Um empecilho, uma loucura, ele não vê que isso pode resultar na morte de ambos quando a guerra começar. Dito isso, estou aqui para ajudá-lo.

—E como você ajudaria? Aliás, quem é você? Corta essa de amigo, seja direto! – exigiu impaciente. Durante toda aquela conversa, Gabriel notou que não havia nenhum resquício de aura ao redor do seu reflexo e a única coisa incomum que via eram seus olhos.

—Eu entendo que esteja irritado e sua pressa é justificável, Gabriel. Quer vingar a morte de sua amada Leeta, quer mostrar a Calendria que eles não podem fazer o que bem entenderem. Até pouco tempo, vocês estavam juntos... Você tinha o calor dela em seus braços, mas eles lhe tiraram isso de uma forma cruel. – aquelas palavras pegaram no fundo do coração do rapaz – São uns miseráveis... Devem pagar pelos seus crimes... Não é nisso que está pensando?

—Sim...

—O tempo é curto, Gabriel. Você não vai se tornar um exímio espadachim da noite para o dia, assim como não vai conseguir controlar sua aura e dominar sua espada nesse prazo tão curto. Me perguntou como eu ajudaria... Posso lhe emprestar o poder necessário para dizimar todo um exército.

O rapaz se viu lutando contra centenas de militares e todos caíam mortos diante de um poder descomunal. Aquilo não lhe pareceu estranho, mas tentador. Um escape para a sua raiva, um alívio para a sua dor. Aquilo... Como conseguir?

—E o que quer em troca? – indagou, encarando sério os olhos do reflexo que estavam atrás daquelas imagens.

—Basta que você faça algo extremamente simples.

—Diga seu preço.

O reflexo moveu os lábios e pronunciou cuidadosamente cada sílaba com notório fascínio. Num primeiro momento, Gabriel assentiu com a cabeça.

—É só isso?

—Só isso... E terá o poder necessário para vingar Leeta, salvar os elfos e subjugar Calendria. – garantiu.

O rapaz suspirou, então largou a espada e agarrou o pescoço do reflexo com ambas as mãos, o enforcando.

—Por que só agora? – indagou entredentes – Quando Leeta precisou desse tal poder, você não estava lá para ajudar, mas agora que estou destruído, você aparece. Acha que sou idiota? – vociferou.

—Está sendo precipitado. – retrucou o outro, mas embora tivesse o pescoço apertado, sua voz ainda saía clara e calma – Eu estava ocupado lidando com o Rei Negro, por isso não apareci naquele momento, do contrário sua ira o libertaria e mais pessoas teriam morrido. Pense!

—Mentira! – rosnou – Naquele momento, eu não estava irado, mas sofrendo com uma puta dor do caralho! Você não me diz quem é, se faz de bonzinho e é esse tipo de gente que eu mais desconfio. Sabe o que eu acho, Estranho?

—Não sabe o que está fazendo. Me deixe ajudá-lo!

—Eu acho que estou sentindo exatamente o que senti naquela banheira... Estou sentindo aquela mesma sensação horripilante, quando tudo ficou macabro de mil maneiras. Talvez você seja o próprio Eichen ou uma terceira pessoa atrelada a minha alma, não importa. Não vou fazer o que está me pedindo!

—Se não fizer, é certo que morrerá! Acha que balançar a espada durante uma noite vai te tornar um espadachim? Yliel não está raciocinando por causa da dor de perder sua filha e não poderá te ajudar quando a hora chegar. Eu não estou te pedindo ouro, não estou pedindo sacrifícios. É tão difícil de entender que só quero ajudar? – questionou o Estranho com uma expressão preocupada.

Aos poucos, Gabriel começou a afrouxar as mãos em volta do pescoço dele.

—Eu poderia dizer que sou capaz de trazer Leeta de volta, mas isso sim seria mentir. Contudo, posso garantir que você ganhe essa guerra. Os emberlanos seriam libertados, Ada voltaria para Nova Emberlyn e você finalmente ficaria livre para decidir entre ficar ou regressar ao seu mundo. No fim das contas, eu só estou te oferecendo uma coisa, Gabriel. Liberdade.

O rapaz tentou mussitar as duas primeiras sílabas que se lembrava, porém arregalou os olhos quando uma lembrança poderosa se apossou da sua mente. Foi na floresta, nos arredores de Calendria, quando o capitão Decarlo proferiu algo e depois foi possuído por um poder descomunal, que o deixara insano. Nesse instante, olhou para o Estranho, que o encarava de volta com os olhos arregalados. Duas orbes púrpuras, presas a ele de um jeito assustador no pior sentido da palavra. Arregalados...

Arregalados... AQUELES OLHOS...

FIXOS... ARREGALADOS... SÓ CONSEGUIA OLHAR PARA ELES...

ELE... ELE... ELE...

ELE...

ESTÁ...

AQUI...

—Não! Se afasta de mim! Pra trás! – disse o rapaz desesperadamente, caindo no chão e se arrastando para trás.

Invaldarah...

—PRA TRÁS! – berrou.

O medo estava lhe devorando, tremia tanto quanto alguém despido no meio de uma nevasca. Sentia como se sua cabeça fosse explodir, como se seu coração estivesse na garganta. Gabriel não queria mais olhar naqueles olhos, não queria mais ouvir aquela voz gutural e horripilante.

Sombras... Trevas... A mais absoluta escuridão o envolvia, escondendo qualquer outra coisa, o afogando no mais profundo desespero. Aos poucos, sentiu como se seu corpo estivesse sendo puxado para cima... Sentiu uma pressão descomunal em sua mente, o incentivando a se entregar, a ceder. Gabriel, porém, buscou com todas as forças por algo em que pudesse se agarrar, alguma lembrança, qualquer coisa.

Leeta...

Não conseguia enxergar o rosto dela, porque a escuridão não lhe permitia. E quando se esforçou ao máximo, viu um rosto... Um rosto pútrido, sem olhos, com longos cabelos brancos...

Não! Não! Não! Por favor, isso não!

—Você me queria de volta... E eu voltei... – disse o cadáver com a mesma voz distorcida.

Invaldarah...

Gabriel ficou enlouquecido, puxando os próprios cabelos, se debatendo no chão e gritando sem parar, chorando sem parar. Ele não percebeu quando uma luz poderosa começou a pelejar contra as trevas, provocando sons de ventania e aves estridulando.

—Lumina! Darentia adalga, broenbah turuntia di vorande! – bradou uma imponente rainha Erilla, erguendo as mãos contra toda aquela escuridão – Lumina! Darentia adalga, lumina!

O corpo do rapaz levitou e seus olhos assumiram um tom púrpura. Ele girou até ficar de pé em pleno ar e encarou a rainha de Aurora com extrema raiva.

—Broenbah turuntia di vorande! – repetiu ela mais uma vez com ferocidade.

Houve um clarão no céu que viajou em direção ao sul. Então, o rapaz caiu imóvel no chão. Todos no palácio, até mesmo os guardas, já estavam presentes nos jardins. Sylie se apressou a cuidar dele, enquanto Yliel acolhia sua esposa que parecia profundamente cansada.

—Senhor Gabriel! Senhor Gabriel! – tentou Sylie com tapinhas no rosto dele, mas este não respondeu.


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