O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 22
Raizu




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/810800/chapter/22

—Devem estar se perguntando o porquê de convocá-los às pressas. – disse Merlin sentado no trono de Calendria.

A guarda real calendrina estava presente, sem nenhuma exceção. No lugar da chefe Helena estava sua filha, Obara Taren, uma jovem tão bela quanto a mãe, de dezoito anos. Já o assento da casa Yeshi encontrava-se vazio.

—O que pode ter causado esse alvoroço, grande mago? – perguntou Walther de cenho franzido – Não quero ser desrespeitoso, mas sua aparência já foi melhor.

Merlin, em sua túnica cinza desbotada, tinha a barba e os cabelos ligeiramente bagunçados. Porém, seu olhar para Di Blanco não foi menos rigoroso e desconfiado.

—Tem certeza de que não faz ideia do porquê, Walther?

—Já vai começar a me acusar? – indignou-se o lorde – Do que é que estamos falando aqui? Não admito ser tratado como o vilão, quando tenho me empenhado tanto pelo nosso reino!

—Por favor, grande mago, diga de uma vez. – se interpôs Leonel impaciente – Abandonamos nossas obrigações para atender ao seu chamado.

Merlin se levantou do trono e desceu os degraus até ficar no mesmo nível dos demais, apoiando-se em seu cajado e encarando um por um dos nobres.

—O Grande Dia de Nymira é uma data sagrada em Aurora, no qual eles celebram o dia em que Nymira lhes presentou com a Floresta Lazúli. Entretanto, alguém achou por bem enviar um assassino até lá... Para matar a filha do rei Yliel Luyah, a princesa Leeta Luyah! – bradou extremamente irritado, batendo forte com o cajado no chão e provocando um barulho de trovão.

—O senhor está... – dizia o lorde Otto Ostrade.

—Silêncio! – rosnou o mago, ao passo em que o homem careca, de fala mansa e sorridente perdeu completamente o sorriso, não se atrevendo a questionar – O assassino falou em nome de Calendria e ainda tentou matar uma jovem calendrina! Que maldição! Minha visita por lá foi extremamente frustrante, mas eu ainda tinha esperança de que tudo se resolveria por vias pacíficas. Agora, graças ao miserável que arquitetou isso, Aurora declarou guerra contra Calendria e não tardarão a nos atacar! Quero saber quem foi! Quem mandou aquele pedaço de lixo caolho para Aurora?

—Grande mago, eu entendo perfeitamente bem a situação. Entendo que isso seja grave, mas nos chamar aqui para procurar culpados não mudará o fato de que, agora, estamos em guerra. O tempo é curto, precisamos nos preparar. – disse Leonel comedido.

—Isso é um absurdo! Por que insistem em dificultar as coisas? – vociferou Merlin, sem saber para quem olhar – Vocês pediram para que eu assumisse o posto de regente, foi o que fiz. Então alguém queira, por favor, explicar qual a razão de tornar minha estadia temporária naquele trono um verdadeiro tormento?

—O senhor tentou governar de maneira pacífica, mas não conseguiu. – replicou Leonel, sem elevar a voz – A Cidade Sombria está descontrolada, uma rebelião aconteceu em nosso reino e agora Aurora quer nos atacar. Infelizmente, grande mago, o senhor fracassou. Pelo menos nos conduza a vitória nesta guerra e tire a mancha do seu nome.

—A mancha no meu nome? – Merlin passou a encarar o lorde Reindhar fixamente – Se querem tanto assim guerrear contra os elfos, enquanto a Escuridão do Sul agride as defesas de Eastgreen e Moroeste, vão em frente! Lordes tolos!

—Veja como fala, grande mago! – protestou Walther ficando de pé – Nos trate com respeito!

—Se deem o respeito! – retrucou Merlin – Por que sempre a guerra? Seremos engolidos da mesma maneira que Valtara foi engolida! Zarathos se tornará um mundo de trevas incessantes, a Tormenta no sentido literal! Tudo por causa de arrogância, egoísmo e vaidade!

—Os elfos vão nos atacar de qualquer jeito. A coelhinha do Yliel está morta e nada mudará isso! – interviu Otto, reunindo coragem para ficar de pé – Devemos nos preparar, lidar com eles e depois nos preocuparmos com a Escuridão do Sul!

Merlin respirou fundo, se controlando ao máximo para não fazer nada contra Otto, mas as palavras do lorde claramente o encheram de raiva e repulsa. Foi então que Leonel finalmente se levantou, restando apenas Obara na cadeira; esta assistia a tudo inexpressível.

—O senhor derrotou o Rei Negro e apesar de estar mais velho, tenho certeza de que seria uma força decisiva nessa guerra. Sua experiência faria toda a diferença, grande mago. Se pudéssemos viver em um mundo pacífico, seria extraordinário, todavia as coisas não funcionam assim. Não percebe? Não foi sendo pacífico que o senhor nos livrou da tirania há vinte anos. – disse Leonel num tom de apelo.

—Eu não vou lutar contra os elfos, lorde Reindhar. – retrucou o mago em voz mais baixa, como se estivesse cansado – Escolham outro regente ou escolham um rei, uma rainha, tanto faz. Eu, Merlin, grande mago e conselheiro chefe do Conselho dos Magos de Calendria, renuncio ao trono.

—Isso seria traição! – protestou Walther irritado.

—E o que pretendem fazer? Vão me prender? – questionou Merlin perigosamente, deixando um sorriso sombrio se abrir por baixo da bigodeira.

Os militares colocaram as mãos nas empunhaduras das espadas.

—Pretende nos abandonar nesse momento crítico, Merlin? – perguntou Leonel inconformado – Pretende ir embora de Calendria?

—Exatamente. – respondeu sem pestanejar.

—Então, infelizmente, não temos escolha. Guardas! – ordenou Reindhar.

Os guardas desembainharam suas espadas e se aproximaram cautelosamente do mago, que até então permaneceu quieto e cabisbaixo. Mas de repente, ele girou seu cajado com extrema destreza e uma rajada forte de vento atingiu aqueles que estavam a sua frente. Então apontou para o teto e um grande círculo de luz azul surgiu. Sem perder tempo, lançou outra rajada de vento contra os soldados que avançavam por trás, os derrubando. Um grupo de lanceiros não tardou a chegar na sala do trono, tentando atingir o velho homem de todas as formas, principalmente em suas pernas, porém eram sempre empurrados para trás. E no teto, já haviam dois círculos, cada qual girando em uma direção, ao passo em que uma forma ia sendo desenhada no centro.

—Parem ele imediatamente! – ordenava Walther ao lado dos demais nobres, todos protegidos por três guardas reais que formavam uma parede a frente deles.

—Deixe de teimosia e se renda, Merlin! Não sairá vivo daqui. – advertiu Leonel.

O mago lançou uma rajada de fogo contra os nobres, mas os guardas reais ergueram seus escudos e bloquearam.

—Ele está louco! Acabem com isso! – esbravejou Otto.

O capitão Edd Turvin, grandalhão como um urso e sorridente como uma criança ansiosa para participar do seu jogo favorito, partiu para cima do mago, mas foi bloqueado pelo comandante Jonathas.

—Proteja os nobres.

—Ahn? – indignou-se – Mas comandante, isso não tem graça nenhuma!

—É uma ordem, capitão! – disse repleto de autoridade.

—Sim, senhor. – suspirou, se colocando a frente dos três guardas que protegiam os lordes.

—Aqui, use o meu escudo, senhor. – sugeriu um deles.

—Não preciso dessa merda. – retrucou Edd, visivelmente aborrecido.

O mago foi atingido de raspão no braço por uma lança, então retribuiu lançando um raio contra o responsável, que caiu no chão se contorcendo.

—Olhem só para vocês! Mal conseguem lidar com um velho como eu... – debochou ligeiramente ofegante – Como pensam em lutar contra Yliel e seu exército?

—Ele pode ser poderoso, mas números e recursos sempre falarão mais alto. – respondeu Walther soberbo.

Merlin gargalhou com o que escutara, então assumiu uma expressão séria e girando o cajado ao redor de si mesmo, um pouco acima da cabeça, atingiu todas as entradas para a sala do trono. Pedras começaram a desmoronar, algumas atingiram os soldados que chegavam apressados, até que por fim as passagens acabaram bloqueadas.

—Números e recursos não falaram mais alto quando Gabriel Eichen invadiu Calendria, Walther!

O comandante Jonathas começou a caminhar em direção ao mago, que tentou atingi-lo com rajadas de vento, raios e uma bola de fogo, porém o militar se esquivou de todos os ataques ou bloqueou com a lâmina da sua espada já empunhada. Por fim, Jonathas desferiu um corte rápido de cima para baixo, o qual foi contido por um escudo de aura poderoso que, a olho nu, soava como uma parede invisível, algo que simplesmente impedia a lâmina de prosseguir, mas gerava ruídos estranhos numa mistura de sons de ferro e ventania.

—Me pergunto se o senhor está tomando a decisão certa.

—Talvez seja a primeira vez em décadas que eu tomo a decisão certa, Sir Jonathas. – respondeu o mago sorridente.

Então o comandante moveu os lábios, mas sua voz não o acompanhou. Merlin semicerrou os olhos e bradou:

—Raizu! – e um raio, bem mais poderoso do que os anteriores, saiu dos círculos mágicos de luz azul, agora completos, cada um girando para um sentido e, no centro, era como se fosse possível enxergar o céu noturno e estrelado.

—Ele disse Raizu? – indagou Walther incrédulo.

O raio caiu entre Merlin e Jonathas, lançando o comandante para trás, porém de pé. Então, um grande dragão cujo corpo era feito de uma luz dourada, comprido como uma serpente, com patas desproporcionalmente pequenas para o seu tamanho, emergiu do círculo, rugindo e voando – embora não tivesse asas – por toda a sala do trono, se chocando contra os pilares e os danificando. Houveram gritos e certa correria, embora o capitão Turvin, o comandante Jonathas e lorde Reindhar não se deixassem intimidar. Walther ainda estava incrédulo com o que ouvira a tal ponto de apenas se abaixar quando a criatura passou, sem demonstrar medo, como se a distração falasse mais alto. Obara estava boquiaberta, claramente fascinada pela criatura.

As portas do castelo foram lançadas longe com as pedras que outrora lhes bloqueavam. Os militares do lado de fora, nas escadarias, foram arremessados para uma morte certa. No instante seguinte, o dragão voou para fora, carregando sobre si o mago Merlin e seu braço ensanguentado. Eles desapareceram em meio a noite nublada, deixando para trás uma Calendria ensandecida, guiada pelos nobres em direção a iminente batalha contra os elfos do reino de Aurora.

—Mas que merda! – praguejou Otto – Que incompetência é essa, comandante? Como pôde deixá-lo escapar?

—Sinto muito, milorde. – respondeu Jonathas abaixando a cabeça – Não há justificativa para a minha falha.

—Tudo bem, Sir. – disse Leonel segurando em seu ombro – Seu oponente era difícil. Olha o estrago que ele causou, esse desgraçado. Enfim, prepare seus homens, quero todos prontos na praça ao amanhecer. Devemos realizar um anúncio e os preparativos para a batalha que não tardará a chegar.

—Como quiser, senhor. Capitão Turvin, você ouviu.

—Alto e claro, senhor! – respondeu o grandalhão, outra vez entusiasmado.

Mais tarde, quando quase todos já haviam se retirado, Leonel avistou um Walther próximo as portas destruídas, completamente absorto em pensamentos e, estranhando, foi verificar.

—Qual o problema, Di Blanco? Já faz um tempo que você está assim.

Houve um instante de silêncio.

—Merlin... Pensei ter escutado ele pronunciar uma coisa... – respondeu em voz baixa, perdido em sua própria mente – Uma coisa que eu não escutava há muito tempo.

—Seja direto. – pediu o lorde impaciente.

—Eu estava presente quando o Rei Negro lutou contra Alabas no final dessas escadas. – contou, olhando para o local referido – Quando Alabas expandiu sua aura e convocou seu Aredio Tempesta, o regicida respondeu com outro ataque, o qual ele nomeou como... Raizu.

—E daí? Isso não quer dizer nada. Merlin é um exímio dominador de aura, um dos maiores magos da história, embora eu deteste admitir. Não seria difícil para ele aprender algo com os seus adversários e usar isso em benefício próprio.

—É... É, talvez seja isso. Você tem razão. – concordou Di Blanco, parecendo despertar de um longo sono – Agora poderia me explicar o porquê desse assassinato?

Leonel olhou para os lados e após confirmar que estavam sozinhos, encarou Walther.

—Do que está falando?

—Não era esse o nosso acordo! – murmurou irritado – Devia ter matado o garoto, não a princesa Luyah! Não teremos tempo de pedir ajuda aos anões e vai saber quando Helena chegará do Vale Verde. Estrategicamente, foi estupidez!

—Não foi você quem disse que números e recursos falam mais alto? – perguntou Leonel em tom de provocação – Nosso exército é composto por mais ou menos vinte mil homens. Temos as muralhas, temos magos, não tão competentes quanto Merlin, mas, ainda assim, podem fazer algo. Temos homens como Jonathas e Edd Turvin. Também teríamos Decarlo, se você não tivesse ferrado com ele.

—De nada adiantará se aquele maldito garoto voltar a ser quem era há vinte anos! – rosnou Walther, gesticulando com sua única mão – Se queria tomar uma decisão dessas, deveria ter me consultado!

—Eu não preciso consultar você para nada, Walther. Coloque-se em seu lugar, não sou um dos seus subordinados. – replicou Reindhar calmamente.

—Por que atacar a princesa? Qual o sentido disso, Leonel?

—Nenhum. Um dos meus homens cometeu um erro, isso é tudo. Afinal, não deve ser fácil agir próximo a gente como Yliel Luyah. Uma prova disso é que, segundo o que me contaram, o assassino que enviei voltou decapitado. Agora pare de desperdiçar meu tempo e vá descansar, amanhã será um dia longo e que começará bem cedo.

Após lançar um olhar claro de desaprovação, Walther voltou para o interior do castelo, passando por uma das saídas que o capitão Turvin havia desbloqueado apenas com as mãos nuas.

Quando o sol nasceu atrás das pesadas nuvens, conferindo uma manhã cinzenta, a maioria dos militares de Calendria estavam reunidos na praça, um lugar aberto, circular, com estátuas no centro e ruas em todas as direções que davam acesso a ela. Além das forças calendrinas, muitos cidadãos também se fizeram presentes, inclusive jornalistas com seus pergaminhos e suas penas, ansiosos pelo que iria acontecer.

Obara, Otto, Walther e Leonel se aproximaram de uma das estátuas, onde na placa se lia: Ederith I Valthor, Herói de Calendria. Entre estes, Leonel se precipitou com um passo adiante e após pedir calma com as mãos, o lugar ficou completamente silencioso.

—Cidadãos do nosso amado reino! Estamos acostumados a viver em paz há tantos anos que, diante do que estou para dizer, pode parecer algo impensável. Entretanto, o rei dos elfos de Aurora, Yliel Luyah, declarou guerra contra todos nós na data de ontem. – ele fez uma pausa, aguardando os burburinhos e as diversas reações dos presentes, então continuou – Para piorar, o até então regente, grande mago Merlin, renunciou ao trono por se recusar a entrar nessa guerra que nós não provocamos! Ele nos abandonou nesse momento difícil, porém peço que não o julguem, afinal, é o mesmo homem que derrotou o regicida. Tenho certeza que não foi por covardia... Talvez ele não tenha envelhecido tão bem e sua cabeça esteja perturbada. – zombou, provocando mais reações, muitas delas de risos – Não importa! Nós lutaremos essa guerra que não pedimos, porque foram eles que nos ameaçaram! Foram eles que abdicaram de viver em paz para planejar atacar um reino que não os atacou! E se os elfos de Aurora pensam que Calendria está enfraquecida a ponto de ceder a essa injustiça, nós faremos com que voltem horrorizados para a floresta de onde nunca deveriam ter saído! – o povo, eufórico, ovacionou e gritou. Os militares também, com o moral claramente elevado – Por Calendria!

—Por Calendria! – respondeu a multidão.

O lorde Reindhar virou a cabeça para encarar os demais nobres com um meio sorriso de satisfação. Otto retribuiu animado, Obara arqueou a sobrancelha e assentiu com a cabeça, enquanto Walther parecia não dar a mínima. Para este, Leonel se aproximou e lhe falou no ouvido:

—Anime-se... Com isso, o regicida estará na palma das suas... Desculpe, na palma da sua mão. – e se retirou.

Walther semicerrou os olhos e encarou o lorde pelas costas, como alguém que fica irritado e ameaçador após ser insultado.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Rei Negro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.