Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 18
XVII — Me and my husband, we're sticking together




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“Então aposto tudo o que tenho nessa testa franzida

E, pelo menos nesta vida, estamos unidos

Eu e meu marido estamos unidos”

(Me and my Husband — Mitski)

 ★

Miami, Flórida — março de 1970

A primeira semana da licença-maternidade foi o paraíso para Valerie. Estava mesmo precisando de um descanso. Ficar deitada na cama, deixar os pés inchados em pé sem ninguém a censurando por isso, não ter que enfrentar o sol e preocupar-se com o motor do Pontiac… Era um sonho tornado realidade. Porém, conforme os dias foram passando, Valerie se lembrou porque detestava ficar muito tempo em casa sem uma ocupação decente.

Era um teste de fé. 

A mãe e a irmã negavam sua ajuda nas tarefas de casa. E, quando passou a morar com Frank, após o casamento, ele entrou no personagem do marido provedor. Victoria ia visitá-los uma vez na semana, quando não era Veronica quem ocupava o lugar dela. O que sobrava para Valerie era ficar sentada, deitada e bem comportada enquanto realizavam o serviço de casa. Frank ajudava, é claro, porém era o tipo de ajuda que limitava-se a lavar apenas suas cuecas. Todo o restante – a casa, a louça, a roupa, as compras – ficava encarregado para as mulheres. Mas, ei, as cuecas já eram mais do que muitos maridos fariam, não?

Valerie Ortiz e Valerie Bowman eram opostos extremos. E ela estava começando a odiar aquilo. Tinha jurado para Veronica que as coisas não mudariam – e lá estava ela, uma outra pessoa e sua filha que sequer havia chegado ao mundo.

A única parte boa de ficar sozinha o dia inteiro era poder ficar a sós com Clara. Se a perguntassem, Valerie não saberia explicar, porém sua convicção de que o bebê que esperava era uma menina era tão forte que ela havia descartado qualquer nome alternativo ou hipóteses. Clarissa Ortiz era sua maior certeza. A cada vez que acariciava sua barriga, Valerie a sentia ali. Às vezes eram os chutes, às vezes os soluços, poucas vezes a agitação de quem comeu uma barra inteira de chocolate. 

Clara era sua vida. Antes da gravidez, Valerie pensava que eram as mães que davam a luz aos filhos. E era o contrário. Antes de Clara, Valerie não fazia ideia do que era a luz. Carregar alguém consigo era uma prova de que a luz aguardava timidamente a hora perfeita para brilhar. Valerie mal via a hora de segurar a filha nos braços, contar a ela suas histórias e escutar tudo que ela tinha para lhe ensinar. 

Quando Frank não estava, podia contar à Clara como o pai dela era. Ainda que a gravidez lhe trouxesse um senso bruto de realidade, Valerie não podia deixar de fantasiar. Clara era sua grande fonte de amor e dor, bem quando Valerie pensou que fossem duas coisas distintas. 

Estar sozinha também permitia que ela chorasse quantas vezes fosse necessário. O que, sendo honesta, não era algo esporádico. Valerie amava sentir que a filha estava bem abrigada em si, mas havia dias em que sentia uma urgência inexplicável de trancar-se no banheiro e chorar compulsivamente. Era um rompante de dor e luto, seguido de conformidade e segurança. Clara sempre reagia às tristezas da mãe: ficava quieta durante o choro, mas quando acabava sempre vinham os chutes delicados.

Valerie detestava ter aqueles picos de sensibilidade perto de Frank, porque ele variava entre excessivamente preocupado e excessivamente indiferente. Talvez, a única pessoa que era capaz de compreender a montanha-russa emocional de Valerie fosse a mãe dela. Não importava o dia e nem a hora, sempre que Valerie precisava de um colo desprevenido, Victoria estava lá. Parecia que ela adivinhava. 

Era bom estar sozinha – e era maravilhoso estar com Clara –, mas Valerie simultaneamente odiava sentir—se sozinha. Não merecia todo aquele carinho que a mãe e a irmã davam, porém em nome de Clara ela o aceitava. 

Num daqueles dias, no sexto mês de gestação, Valerie deitou-se com Frank na cama, assistindo a um programa qualquer na televisão. A sala de estar também era o quarto, uma vez que a casa em Little Havana era modesta. Eles se viravam com a cozinha, o quarto-sala e o banheiro, apesar de que ela já tinha perdido a conta de quantas vezes Frank já havia pedido desculpas por não poder dá-la coisa melhor. Ainda não, ele dizia. Quando eu for um advogado reconhecido. 

Aquele era um tipo de nova tradição involuntária – nas sextas-feiras, eles dividiam uma bacia de pipoca, e Valerie apoiava-a na barriga enorme. Ela fingia assistir à televisão e Frank fingia não ter tido um dia estressante. Ambos respeitavam o silêncio um do outro, por mais que Valerie implorasse silenciosamente para que ele falasse alguma coisa. Qualquer coisa. Estava tão acostumada com a casa barulhenta, e agora só presenciava barulho quando recebia a visita da família. E olhe lá. Parecia ter um consenso de pouco barulho, também. Como se Clara já tivesse nascido. 

Frank costumava ser mais comunicativo. No entanto, quando descobriu a gravidez, ele mostrou um outro lado de si. O de advogado sério. Tudo entre eles tornou-se muito calculado: fazer amor era um ato programado, um tanto mecânico, mesclado às contas de casa e ao emprego que estava cada vez mais morno. Com exceção das decepções amorosas, o trabalho na Corte, a ascendência latina e as raras fagulhas de amor à música que acenavam timidamente, Valerie notou tarde demais que não compartilhava tantos gostos com Frank quanto pensava.

Ela tentou amá-lo de todas as formas. Como um amante, como um amigo. Com a chegada da rotina, Valerie conformava-se com o fato de que o que sentia por Frank era a mais pura e simples afeição da gratidão. E, passada a empolgação das primeiras noites de paixão, Frank já não parecia tão interessado nela, tampouco. Ela não o culpava; a gravidez certamente não estava incluída nos planos dos recém-casados. Valerie imaginava que deveria ser mesmo um tanto decepcionante. Frank já não fazia tantos esforços para conquistá-la, afinal… Já estavam casados, o ato sexual já era garantido. Não era para isso que o casamento servia? Ter alguém para aliviar-se quando necessário?

Valerie se questionava se era uma pessoa ruim por ficar aliviada com o interesse escasso do marido por ela. Porque, quando deitava-se com Frank para dormir, não era com ele que sonhava. Em todos os seus sonhos, era Alex que preenchia seu subconsciente com memórias. Alex era o protagonista de todos, e ela deleitava-se com o som de sua voz envolvendo-a numa névoa lavanda. 

My Valleri.

Daria tudo para escutá-lo uma última vez. 

Jamais seria a mesma coisa. Frank jamais a abraçava depois de fazerem amor. Quando dormiam, ele dormia de costas viradas para ela. No início da gravidez, Valerie também dormia de lado, agora tudo que lhe restava era encarar o teto e a visão da grande muralha que era a barriga. E, quando Frank dormia, roncava feito uma locomotiva. 

Em seus sonhos, Valerie escutava o homem que amava respirar fundo, dar seus grunhidos ocasionais e seu coração bater descompassado contra o peito. Em seus sonhos, Valerie escutava-o dizendo que também a amava, num sussurrar que ribombava nos ouvidos mais alto do que os trovões do lado de fora. Em seus sonhos, ele continuava esperando-a sair do trabalho às sextas-feiras. Em seus sonhos, ele não se importava de abraçá-la com uma barriga gigantesca atrapalhando.

Todas as noites, Valerie esquecia-se propositalmente dos perigos de viver nos sonhos. Todas as manhãs, a realidade a nocauteava. 

— Frankie? — ela chamou, na tentativa de desviar um pouco a falsa atenção dele à televisão. — Estive pensando numa coisa. 

— Hum? 

— Como vai ser quando eu voltar a trabalhar? Você acha que conseguimos deixar a neném numa creche? — Valerie mudou a rota dos próprios pensamentos assim que as palavras saíram de sua boca. — Ou você acha que a mamãe vai querer ser a babá dela em tempo integral? Porque eu não me importo, ela parece estar mais ansiosa para a chegada da Clara do que eu! 

Frank franziu a testa. 

— Eu não… 

— Também imagino a Ronnie andando por aí com o carrinho de bebê. Vamos ter que lembrá-la do protetor solar, porque… Tudo bem que a Clara vai ser um bebê da Flórida, mas a gente não quer que ela tenha logo um problema de insolação, não é? 

— Valerie. Você não vai voltar a trabalhar depois que a Clara nascer. 

Valerie piscou, momentaneamente confusa com as palavras dele. Foram tão certeiras, tão convictas, que desestabilizaram as dela. O que é que ela estava falando, mesmo?

— Como assim não vou voltar a trabalhar, Frank? 

— Claro que não vai — ele olhou para ela como se tivesse dito que queria comer tijolos. — Por que é que você voltaria a trabalhar? 

— Ué, porque eu gosto de trabalhar. Depois que eu me acostumar com a Clara, a vida vai voltar ao que era antes. Você como advogado, eu como estenotipista, a única diferença é que nós não vamos para lugares diferentes na volta para casa… 

Frank gargalhou, retirando a bacia de pipoca da barriga dela. Valerie fingiu não notar a cautela excessiva com que ele fez isso, como se estivesse com medo de estourá-la com seu toque. Algo naquilo a fez querer chorar. 

— Eu vou ganhar bem o suficiente para não precisar trabalhar mais, Valerie. 

— Espera aí um pouco — Valerie ergueu as mãos em defensiva, olhando para ele. — Eu nunca disse que queria deixar de trabalhar quando a Clara nascesse! 

— Bom, você não disse, mas… Não é todo mundo que tem essa oportunidade. Deveria ficar feliz. Agradecida por podermos fazer isso. Por que você está se exaltando assim? 

— Eu não estou me exaltando, Frank, só estou conversando… Aliás, só estou te fazendo uma pergunta. Quem está nervoso aqui é você. 

Frank respirou fundo, enfiando um monte de pipocas na boca. Após mastigá-las penosamente, ele desviou o olhar do dela. 

— Desculpe. Eu só… Quer dizer, eu… Só estou pensando no bem da Clara. E no seu também, Valerie. 

— Tudo bem, isso é legal da sua parte, mas eu não vejo como voltar a trabalhar poderia me colocar em risco ou a Clara.

— Não é colocar em risco — ele explicou, usando o seu tom de advogado. Valerie detestava quando Frank fazia aquilo. Sempre sentia como se ele estivesse explicando as coisas porque achava que ela era meio burra ou como se tivesse cinco anos e não soubesse como o básico da vida funcionava. — É só que as chances da Clara crescer melhor com você estando dedicada integralmente a ela são maiores. Ela vai crescer com a mãe dela ao lado dela o tempo todo, não com uma mãe ausente. 

Valerie sentiu os músculos da têmpora pulsarem.

— Não com uma mãe ausente — ela repetiu, na tentativa de processar o que ele havia dito. — E você, por trabalhar fora, não corre nenhum risco de ser um pai ausente?

— Não, querida, porque essa é a ordem natural das coisas. 

Valerie riu baixo, acariciando a própria barriga. Clara pareceu entender que era hora de ficar quieta e não atrapalhar a discussão. Afinal de contas, era ela o conflito de interesse. Valerie notou com certo pesar que aquela era a primeira briga que ela e Frank tinham em três meses de casamento. 

— Entendi. Então, seguindo o seu pensamento, eu fico em casa e cuido exclusivamente da Clara. O que quer dizer que você vai trabalhar fora e cuidar do restante da casa, não é? 

— Como assim? 

— É isso o que você está dizendo. Que não quer que eu trabalhe mais para eu poder me dedicar à Clara — Valerie ajeitou-se na cama, sentindo as costas arderem. Quando não eram os pés ou os seios, era o estômago ou as costas. Tudo doía, ultimamente. — Consequentemente, isso quer dizer que eu não vou precisar cuidar da casa. Eu interpreto isso como algum tipo de iniciativa da sua parte. 

Frank virou-se para ela na cama, tão confuso quanto ela há poucos momentos. Com as sobrancelhas unidas daquela forma, Valerie podia ver as inúmeras linhas de expressão que ondulavam a testa dele. 

— Isso são tarefas domésticas — ele protestou como se fosse óbvio o que queria dizer. E era, porém era Valerie quem não queria acreditar no que estava ouvindo. — Cuidar da Clara também envolve as tarefas domésticas.

— Entendi. Então, de estenotipista, eu passei para dona de casa. A esposa perfeita, que cuida da casa e dos filhos com um sorriso no rosto, como naquelas propagandas de margarina.

— Meu bem, não seja injusta… Você pode pegar o ritmo depois… Não acha que está agindo como aquelas mulheres que querem se provar melhor do que os homens? 

Valerie suspirou. Baixando a voz para um murmúrio, ela replicou:

— Talvez elas estejam certas.

— Valerie — Frank a censurou, usando novamente o tom de falsa complacência. Ela teve de se segurar nas beiradas da cama para não sair dali. — Acho que está passando muito tempo com a sua irmã. Ela enche sua cabeça de caraminholas de tantas revistas de fofoca que lê. Eu gostei de você pela sua inteligência, meu amor.

Ela engoliu em seco, optando por espairecer um pouco. Valerie usou o inchaço como desculpa silenciosa para circular pelo quarto-sala, e ela sentia os olhos de Frank cravados em suas costas. Valerie apoiou as mãos na coluna, tentando endireitá-la, por mais que a barriga puxasse-a para frente todas as vezes. Aquilo não estava certo. 

Frank não costumava dizer coisas daquele gênero. Deveria ser o estresse de ter um bebê prestes a chegar. Valerie também estava estressada, todos sempre corriam o risco de dizer coisas dignas de arrependimento depois. Por isso mesmo, sem olhá-lo nos olhos, Valerie murmurou com o pouco de força que lhe restava:

— Olha, Franco, é melhor pararmos por aqui. Acho que você teve um dia ruim e está descontando em mim. Você não costuma agir dessa forma e não quero que isso vire um costume. Se quer que eu fique em casa, tudo bem. Mas não fale comigo como se eu não fosse mentalmente capaz de tomar decisões razoáveis. Eu gostei de você pela sua compaixão, meu amor. Lembre-se de que ela existe.

Frank respirou fundo, e Valerie ouviu o farfalhar dos lençóis quando ele sentou-se na beirada da cama, próximo a ela. Ele não se moveu mais, já Clara escolheu aquela hora para chutar-lhe uma única vez, de maneira delicada. Valerie repousou a mão onde ela havia chutado, e outro veio logo em seguida. Ela seria capaz de chorar com um gesto tão singelo como aquele. Sua pequena fagulha de amor e luz continuava ali, por ela.

— Clara está dando um oi — ela sussurrou, olhando para ele por cima do ombro. — Você quer sentir? 

Pela visão periférica, ela viu que Frank negou com um meneio de cabeça. Aquiescendo, Valerie sustentou o próprio peso do ventre, fechando os olhos para aproveitar a sensação. Enquanto fazia isso, Frank encostou a cabeça em suas coxas. 

— Sinto muito… Isso não vai se repetir. Eu prometo. 

— Não, você… Você tem uma parcela de razão — Valerie abandonou o ventre por um instante, apenas para massagear as têmporas, que ainda pulsavam. — Eu… Eu deveria estar mais agradecida. Muitas mulheres não têm a oportunidade de ficar em casa durante uma gravidez. 

Ele balançou a cabeça e soltou um som pelas narinas. Valerie interpretou aquilo como um "eu disse, não disse?". No entanto, não valia a pena ficar discutindo por algo que não mudaria. Valerie tinha sorte de ter Frank ao seu lado. Ela poderia ter perdido o emprego, porém havia a promessa de que retornaria ao se acostumar com Clara. Talvez ela até gostasse de ficar com os pais no Tribunal. 

— Não foi o que você disse que me chateou — ela concluiu, acariciando os cabelos ondulados dele. Eram macios, e faziam cócegas em suas coxas. Em qualquer outra ocasião, Valerie estaria sorrindo. — Foi como você disse… 

— Eu sei, eu sou um idiota… Acha que pode me perdoar? 

Valerie assentiu com a cabeça, por mais que ela já estivesse flutuando para bem longe dali. Como gostaria de um abraço da mãe naquele momento. Veronica zombaria dela, dizendo que entregava suas lutas muito fácil, mas a mãe… A mãe era dócil. Sua presença era um acalento.

— Me desculpe — Frank beijou sua coxa com cuidado. Sondando o terreno. Quando sentiu a perna dela arrepiar-se, tomou a liberdade de distribuir mais beijos ali. — Vou pedir quantas vezes for necessário. Não quero perder você, Valerie… Você já é uma boa esposa. A melhor de todas.

Ela sorriu com a melancolia já hospedada no coração. Frank era uma boa pessoa. Boas pessoas cometem erros, às vezes. Valerie não conseguia dizer não àquela voz dócil e envolvente. Sentando de volta à cama, ela permitiu que ela afastasse a bacia de pipoca do caminho.


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