Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 17
XVI — All I need's a promise I can keep to myself




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/810659/chapter/17

“Parece que você tem uma escolha a ser feita

O casco é branco e seu para romper

De qualquer jeito, ainda é

Tudo que eu preciso é de uma promessa para manter comigo mesma”

(Two Against Three — Daisy Jones & The Six)

 ★

Miami, Flórida — novembro de 1969

— Eu não sei se eu concordo com o que você está fazendo, Val. 

Veronica lavava a louça do jantar de Ação de Graças, enquanto Valerie secava e guardava. Geralmente, ela deixava a louça escorrer sozinha para depois apenas guardar, porém precisava movimentar-se um pouco. Do contrário, ficaria louca. Ultimamente, o ócio era um veneno que matava-a em doses homeopáticas. O repouso era uma boa recomendação, mas apenas em casos avançados, não para uma gravidez de poucas semanas, como era o caso de Valerie. A mãe e a irmã pareceram entrar num consenso de não deixá-la fazer nada, então ela tinha de fazer toda uma barganha para realizar as atividades domésticas que lhe eram habituais. O máximo que ela conseguiu foi enxugar a louça. Ou seja, de todas as tarefas, Valerie ainda ficou com uma que era, ao menos em tese, inútil. 

— Eu também não concordo. Secar a louça deixa o pano encharcado sem motivos. 

— Não é disso que estou falando. Estou falando daquela outra coisa.

— Que outra coisa? 

Veronica suspirou, e Valerie teve dúvidas se era pela vasilha suja de maionese ou pela fala da irmã. Valerie estreitou os olhos para a vasilha, se perguntando como uma coisa tão gostosa de comer podia ser tão nojenta de lavar. Pensando bem, ela não iria reclamar por enxugar a louça. Era bastante agradável. 

— Você. Se casando. É estranho. 

— Ah. Isso. 

Valerie encarou a própria mão, onde agora uma aliança decorava o dedo anelar. Era delicada, sem nenhuma inscrição, frisos ou pedrarias, porém com um objeto tão simples o seu futuro a curto prazo estava decidido. Frank tinha passado a Ação de Graças com as garotas Bowman – o primeiro feriado com um homem em muito tempo desde que John tinha ido ao Vietnã –, e aproveitado a ocasião para apresentar-se formalmente e… Pedir a mão dela. Victoria e Veronica ficaram boquiabertas por um minuto.

Nem Valerie esperava por aquela… Surpresa. Quer dizer, eles estavam dormindo juntos há um mês e pouco? O tempo era suficiente para configurar um namoro? Um noivado

Fosse como fosse, Valerie sentia-se aliviada e grata na mesma medida. Aquilo não a surpreendia de uma maneira negativa – não, Frank era tradicionalista. Só havia lhe pedido em casamento porque eles tinham dormido juntos por vezes consideráveis. Frank queria passar uma boa impressão para a família, e de que modo melhor do que um casamento antes que uma provável gravidez desponte?

Frank, Frank… Ele era um doce, segundo a mãe. Valerie concordava. Um doce, até demais. Como uma barrinha de alcaçuz em tamanho família. 

— Ele sabe que você está grávida? — Veronica foi cirúrgica, colocando a vasilha no escorredor. O excesso de água escorreu pelo mármore da pia. — Ou você vai esconder isso dele até o final? 

Valerie respirou fundo. 

— Que diferença isso faria, Ronnie? Ele gosta de mim, quer se casar comigo. Isso não é bom o suficiente pra você? 

— Você vai enganá-lo para criar um filho que não é dele. Ele não me parece bom o suficiente para você. 

Como é que é

Veronica deixou o próximo item na pia, com as mãos cheias de sabão. E então, fuzilou a irmã com o olhar. Valerie jamais a tinha visto tão irritada. 

— A mamãe disse que poderíamos ajudá-la a criar o bebê sozinha! Você não precisava… Seduzir um cara aleatório só pra esse bebê não crescer sem um pai. Isso é muito sujo, Valerie. É muito baixo. É com isso que eu não concordo. 

A mais velha retribuiu o olhar, com o coração ameaçando sair pela boca. Poderia vomitar o próprio coração, uma vez que ele não servia para mais nada. Veronica enxergava a própria irmã como uma manipuladora. Todo o trabalho que teve para colar os pedacinhos quebrados ameaçaram despedaçar-se de novo. 

— Ronnie, eu não estou seduzindo ninguém… 

— Está! Está, sim! — ela ergueu a voz, roubando o pano de prato das mãos dela para poder limpar o sabão das mãos. — Ninguém, em sã consciência, ficaria com uma mulher grávida de outro cara. Ele está apaixonado por você, e você está se aproveitando disso! 

Valerie abaixou a cabeça, envergonhada. 

— Papai se casou com a mamãe mesmo quando eu já era nascida. 

— Você disse certo. Você já era nascida, Valerie. Ela não escondeu você do mundo. Não mentiu sobre a sua paternidade. 

— Não estou o seduzindo — Valerie insistiu, a voz saindo num tom mínimo. — Eu gosto dele, Ronnie. Ele é um bom amigo. 

Veronica riu com ironia. Cada palavra foi pronunciada como um golpe:

— Nossa, que belo requisito para um esposo. Tenho certeza que você deu pro Alex porque ele era um ótimo amigo. Qualquer homem desesperado por sexo é bom pra você, Valerie. Você não tem nenhum critério. E eu que pensava que era o romance era o que importava.  

Foi a gota d’água. Valerie avizinhou-se a ela, encarando-a de baixo para cima. Veronica desmanchou a pose na hora, e seus lábios tremeram diante da proximidade da irmã.

— D-desculpe, e-eu não quis… 

— Por que está me dizendo essas coisas? — Valerie sussurrou, sentindo os olhos lacrimejarem. — O que foi que eu fiz pra você, Veronica…?

— Nada! Eu… Me desculpe… 

E então, Veronica praticamente desabou nos braços da irmã. Apesar de enfrentar um turbilhão de sentimentos que a afogaram com aquelas palavras, Valerie a abraçou com cuidado. Veronica tremeu-se toda, e os soluços vieram sem aviso. 

— O que aconteceu? — Valerie afagou os cabelos dela, aterrorizada com o estado dela. Veronica era toda luz do sol e energia, e Valerie devia confessar que preferia quando ela estava agindo com maldade do que chorando. Ela merecia escutar aquelas coisas. — Ei. Ei, o que foi?

— E-eu não quero que você me deixe também… Eu preciso de você também… 

Valerie prendeu o fôlego. Então era sobre isso? 

— As coisas não vão mudar entre nós, pirralha… 

— Vão, vão sim — Veronica desvencilhou-se do abraço, desviando o olhar. Os olhos azuis já estavam inchados, e a voz era fanhosa e embargada pelo choro. — Um bebê muda tudo. Um casamento muda tudo. Você vai se mudar e vai esquecer que eu existo… Vai se esquecer até do Alex, Valerie. Você mudou tanto nesses últimos meses que eu… Eu não… 

Valerie respirou fundo, olhando-a com um carinho renovado. Ela a amava tanto que a dor chegava a perfurar o peito. A única razão para ele não estar oco era o amor que transbordava por sua mãe e sua irmã. Por seu pai também, ainda que nos últimos tempos o amor pelo pai fosse uma espécie de amor fantasmagórico. Ele continuava ali, apesar de ausente. A mãe e a irmã estavam ao alcance, eram palpáveis. E ela suspeitava que a irmã compartilhava do sentimento, por mais que jamais fosse admitir em voz alta. Era uma criaturinha orgulhosa. 

— Ronnie… Ah, meu bem, eu jamais vou amar menos você porque estou esperando por mais alguém. O amor que sinto por você nunca vai diminuir ou acabar, ou ser substituído — Valerie aproveitou a proximidade para voltar a tomá-la nos braços, dessa vez segurando o rosto dela com delicadeza para poder olhá-la nos olhos. — Pelo contrário, quanto mais o tempo passa, mais eu amo você. O amor não acaba, ele… Se molda, se adapta. Eu mudei, você mudou. A mamãe mudou. Mas você passou a desgostar de mim por isso? Ou dela?

Veronica negou com a cabeça, concentrada nas palavras dela.

— Não, não é? — Valerie sorriu com gentileza. — Quanto mais a gente ama, mais amor a gente ganha e tem para distribuir… Não é uma competição…

— Mesmo assim, você não o ama — Veronica reiterou, dessa vez num tom lamentoso. — Não como o Alex. 

— Não. Não como o Alex. Porém, tenho certeza de que parte de mim pode amá-lo de outras maneiras. Assim como amo você de um outro modo, e o bebê também. Eu… Também tenho medo de magoá-lo, Ronnie. Mas me esforçarei ao máximo para não o fazer.

Uma lágrima rolou pelos dedos de Valerie, fazendo com que ela tivesse que limpar o choro do rosto da irmã caçula. O nariz de Veronica fez um barulho engraçado quando ela tentou respirar, interditada pela água. 

— Não sei porque eu disse aquelas coisas… Sinto muito mesmo, Val… 

— Está tudo bem, você estava guardando muita coisa no seu coração — Valerie beijou-a na testa, ouvindo-a suspirar. — Todo mundo corre o risco de magoar as pessoas. É o mal do ser humano. 

— Eu preferia ser um gato… As pessoas adoram os gatos mesmo eles sendo claramente uns folgados… 

Valerie riu da piada dela, o que fez Ronnie abrir um sorriso tímido. Era a garantia dela de que não estava brava, apesar da chateação. Uma promessa silenciosa de que ficaria tudo bem. Porém, convivendo com a irmã há tanto tempo, ela tinha consciência de que o silêncio era uma paz momentânea. Com Veronica, mediações sempre eram necessárias.

— Eu prometo que, onde quer que eu esteja… Com quem quer que eu esteja… Eu vou sempre amar você. Sempre estarei com você. Você sempre vai poder contar comigo, porque eu sou sua irmã… E porque você é minha melhor amiga. Eu jamais vou abandonar você, a menos que me peça para desaparecer da sua vida.

— Quanto drama… — Ronnie zombou de brincadeira, voltando a abraçá-la. — E eu prometo que jamais vou repetir o que eu disse. Me desculpe, mesmo.

— Se me pedir desculpas mais uma vez, eu não vou desculpar… 

Veronica riu baixinho, adequando-se a ela. Valerie, por sua vez, ainda sentia aquela pontada no coração. Por mais que pedisse desculpas, aquelas palavras ficariam de molho em seu subconsciente por mais algum tempo.

Porque, ainda que detestasse admitir para si mesma, Veronica tinha razão em certos aspectos. Valerie estava se aproveitando da situação. Mas Frank gostava dela ao ponto de pedi-la em casamento, ela tinha motivos para dizer não? 

Poderia usar seu próprio argumento para praticar. O amor se estende. Se molda, se adapta… Ela poderia usar o amor que já sentia para estendê-lo para Frank. Do mesmo modo que ele estenderia o amor que dizia sentir por ela para o bebê.

Será que Alex gostaria de ser pai algum dia? Será que tomaria algum filho em seus braços? Será que seu bebê teria cabelos loiros, como os dele? Será que teria o humor do pai ou a seriedade que ela via acometê-lo como uma sombra?

Mais perguntas que enterraria junto com seu segredo.

Valerie era uma pessoa terrível. Era justo que tivesse sido deixada para trás.

Ainda assim, ela tinha retornado ao hotel e ligado para todos os nomes na lista telefônica antes de tomar sua decisão. Segundo o que a recepcionista lhe dissera, no período mencionado por Valerie, nunca houve nenhum hóspede registrado como Alexander Weber. E nenhum com a aparência comprovada na fotografia – acredite em mim, madame, eu me lembraria se algum projeto de monstro de Frankenstein tivesse aparecido por aqui. Com todo o respeito. Que costume horrível as pessoas tinham de dizer algo terrivelmente desrespeitoso e depois se esconderem atrás de um chavão. 

Fosse como fosse, Alex havia cumprido sua promessa e sumido do mapa. Sem telefones, sem contatos. 

E então, Frank. 

— Ainda não sei se eu gosto do Frank — Veronica sussurrou, despertando-a do torpor. Conversavam entre sussurros, por mais que a mãe estivesse no jardim e bem distante das duas. — Mas não sei se estou comparando ele com o Scarface ou só… Fazendo um julgamento prévio. Sei lá, ele parece perfeito demais. Parece que está tentando demais

— Você ainda não o conhece direito, é normal. Você gostava do Alex, então? — Valerie riu fraco, torcendo os cachos na mão. — Pensei que achasse ele suspeito… 

— Bem… É, mas o meu conceito mudou depois que ele… 

Ela se interrompeu, piscando algumas vezes. Valerie observou-a com atenção.

— Depois que ele o que? 

— Comprou sorvete pra mim — Veronica sorriu de escanteio, voltando a se concentrar na louça. O alvo da vez foi o refratário da macarronada. Ainda pior do que a maionese. — Não que eu seja facilmente comprada com sorvete.

— Imagine. 

Veronica fungou e limpou o nariz na manga da blusa. O inverno já batia à porta e, por mais que não nevasse na Flórida, as temperaturas caíam consideravelmente. Era o bastante para buscar no armário as blusas meia manga. Valerie se pegava perguntando de quando em quando qual era a sensação de sentar-se em frente a uma lareira no dia de Natal, tomar chocolate quente e fazer tricô. Todas as tradições dos filmes que não faziam sentido para ela. Quem sabe, no futuro, se decidisse viajar.

— Eu… Preciso te contar uma coisa — Veronica começou, de repente. — Mas a mamãe não pode saber. Não é do tipo “ah, isso aqui eu vou passar vergonha com a mamãe”. É do tipo “isso aqui a mamãe mataria a pessoa se soubesse”.

— Hum. E o que te garante que eu não mataria a pessoa, se soubesse?

— Você está grávida, não pode fazer movimentos bruscos. 

— Ah, pronto. Lá vem isso, de novo. 

Veronica riu baixinho, mas sua expressão logo anuviou-se. Foi então que Valerie começou a se preocupar. Veronica Bowman estava uma bolha de estresse num dia que deveria ser minimamente feliz. Aquilo só podia significar uma grande desgraça a caminho.

— Jason Goodwin quis transar comigo. 

Valerie engasgou com a própria saliva. Veronica ainda olhava para o refratário, porém o pensamento ia longe. Ela não esperava que a irmã fosse escolher um momento como aquele para fazer uma revelação comprometedora. Mas havia momento certo para se dizer algo naquele tom?

— Certo… Por que você não termina esse refratário e aí a gente vai para o quarto conversar sobre isso? 

Veronica anuiu, colocando-o no escorredor com cuidado. Valerie deixou o pano de prato por cima sobre ele, como se fosse uma mortalha. Em seguida, deu o braço para a irmã e conduziu-a até o quarto. Seu pequeno pacote de tristeza e estresse.

A mais velha sentou-se, convidando a irmã a deitar-se em seu colo. Ao espalhar o cabelo pela cama, pareciam um halo flamejante. Valerie não resistiu à vontade de acariciá-los, macios feito seda. Desde o primeiro encontro com Frank, vinha sondando a ideia de alisar os cabelos. Seria bem mais cômodo, afinal.

— Vamos começar do começo — Valerie sugeriu, e a irmã concordou com um meneio de cabeça. — Quando foi que isso aconteceu?

— Passei o verão com você e com a Laurel, basicamente. E ele ficava por ali, às vezes sozinho, às vezes com os amigos… Jason tinha acabado o colegial e estava se preparando para ir para a universidade no próximo período letivo. A casa estava sempre de pernas para o ar, porque ele ficava “organizando” os próprios pertences — ela fez as aspas com a mão, junto a um revirar de olhos. — E a Laurel e a mãe dela nunca sabiam o que fazer com as coisas jogadas na casa inteira. 

— Parece alguém que eu conheço… 

— Eu bagunço só a minha parte do quarto, não a casa inteira. Agorinha há pouco eu estava lavando a louça.

Valerie riu baixinho, mas fez um gesto com a mão para que ela continuasse. 

— Enfim. Você sabe que a Laurel é do tipo que provoca. A alegria da vida dela é se insinuar para qualquer criatura vivente. O irmão dela é tipo… Ela, só que homem. Quando eu comecei a aparecer por lá, ele me provocava. Só que… Você me conhece, eu nunca deixo muito barato. Se você brincar comigo, eu vou brincar de volta. 

Bravura Indômita?

— Pode ser, pode ser — Veronica sorriu, uma pontinha de orgulho despontando no canto dos lábios. — O problema é que Jason Goodwin e seu cérebro de ervilha interpretaram isso como se eu estivesse dando em cima dele. Porque ele não me conhece direito, é claro que ele iria interpretar como um flerte… O problema também foi que ele escolheu a ocasião mais propícia para dar em cima de mim. Na semana anterior à partida dele para a universidade. 

Valerie assentiu, desfazendo alguns nós nos fios do cabelo dela. Se passasse a escova naquela posição, era bem provável que os nós aumentassem. 

— Ele… Me convidou para ir até o quarto dele — Veronica abaixou o tom da voz, e Valerie teve de achegar-se mais para baixo para poder ouvi-la. — Laurel e a mãe tinham ido ao supermercado, eu estava por ali porque Laurel disse que eu poderia ir a qualquer hora. Que eu era de casa. Eu não fiquei ofendida com o convite, para ser sincera, eu… Fiquei até lisonjeada. Foi só na hora que senti que não estava pronta para isso, ainda. Nós demos uns amassos, mas eu comecei a ficar desconfortável quando ele começou a tentar tirar minha roupa. 

Veronica estremeceu com a lembrança. Valerie, por sua vez, rosnou.

— E-eu disse que não queria, mas… E-ele disse que eu queria sim, só estava me fazendo de difícil. Se não quisesse, não teria provocado o verão inteiro.

O sangue de Valerie ferveu. Com aquela declaração, conseguiu compreender porque Veronica tinha escolhido aquele dia para contá-la. Se Jason Goodwin estivesse por perto quando isso acontecesse, Valerie deixaria tudo para trás para ir até a casa dele e dar-lhe uma surra que fosse incapaz de esquecer. Não que isso fizesse o seu perfil. Mas talvez ele estivesse em casa, era Ação de Graças… 

— Não, não. Eu sei exatamente o que você está pensando, Valerie, e a resposta é não.

— Eu não disse nada… 

— Mas está pensando! Nada de agressão. Eu estou bem. 

Valerie deu-se por vencida. Ronnie, melhor do que ninguém, sabia fazer justiça com as próprias mãos.

— Bem… E o que aconteceu depois? 

— Chutei as bolas dele e saí andando. Voltei para casa. Estou com medo de ele ser incapaz de procriar agora, mas… Se parar para pensar, quanto menos Jasons Goodwins existirem no mundo, melhor. Eu fiz um favor para a humanidade. É capaz que, com tantas mutações genéticas, o cérebro de ervilha dele diminua para o tamanho de um grão de mostarda.

— Ah, Ronnie… — Valerie gargalhou um tanto para dentro, rindo por acidente. — Como eu levo você a sério assim?

— É bem simples: você para de tentar, porque sabe que não vai conseguir!

Elas enfim conseguiram voltar a rir. Veronica esticou as pernas, remexendo os dedos dos pés tranquilamente. 

— Contei pra Laurel o que tinha acontecido, e ela ficou do lado do irmão. Disse que eu era mesmo muito metida, e que a culpa era minha de ele ter interpretado errado a situação — Ronnie deu de ombros, um movimento que limitou-a a apenas sacudir o corpo de maneira desajeitada por estar deitada. — Mandei os dois irem à merda.

— Teria me decepcionado se não fizesse isso. 

Veronica voltou o olhar para cima – para o rosto da irmã – e sorriu. 

— Uau… Valerie Bowman sendo conivente com um xingamento? É mesmo o fim do mundo.

— O mundo está mesmo de cabeça para baixo… Chega uma hora que a gente tem que se adequar, Ronrom.

Veronica gargalhou, revirando-se na cama. Com um cuidado que Valerie jamais a tinha visto usar, ela encostou o ouvido na barriga dela. Como se estivesse inspecionando o bebê. Valerie achou graça da situação, mas permaneceu em silêncio. 

— Você já consegue sentir ele mexendo? Eu não tô sentindo nada.

— Não… Ainda é muito cedo. Minha barriga começou a aparecer só agora… Parece só que eu comi demais e estou com gases — Valerie sorriu. — Mamãe disse que o bebê só começa a chutar no mês que vem. 

— Ah. E você acha que é menino ou menina? 

— Menina. 

Ela sequer titubeou para dar o palpite. Sempre que pensava no bebê, tendia a flexionar o substantivo masculino por costume gramatical, porém sua intuição gritava que ela gerava uma menina. O pensamento era reconfortante. Valerie cresceu numa casa cheia de mulheres, ter mais uma por perto seria divertido.

Como John reagiria à chegada de outro homem na família? Será que gostaria de Frank? O pai não era do tipo que era afeiçoado a advogados – sempre dizia que eles eram manipuladores e pouco confiáveis, por mais que estivessem despidos dos ternos –, mas Frank era diferente. Era simpático. Sim, o pai logo aprenderia a amá-lo também. Valerie conseguia imaginar os dois emprestando livros um ao outro. Frank quase não lia ficção, mas John Bowman era um homem apaixonado pela literatura. Era fácil apaixonar-se pelo modo como ele discursava sobre sua tábua de salvação. 

Que saudade. 

— É? Algum nome que passa pela sua cabeça?  

— Eu gosto de Clarissa. Podemos apelidar de Clary. 

— Ou Clara! — Veronica animou-se. — Clara Bowman! 

— Ortiz — Valerie corrigiu com uma pontada no coração. — Clarissa Ortiz, Ronrom. 

— No meu coração, ela é uma Clarissa Bowman. Porque ela vai ser mais uma das garotas Bowman. A gente pode chamar ela secretamente assim, o Frank não vai descobrir se você não contar. 

Valerie riu baixinho, permitindo que ela saísse de seu colo. E foi com alívio, porque as pernas já começavam a doer com o peso dela. Como seria ter de carregar o próprio peso e o de uma criança no mesmo corpo? 

— Tá bom. Eu aceito o seu argumento. 

— Se bem que, já que você fala tão bem do seu Frank, eu acho que ele iria rir da piada. Ele logo vai entender o que é ser uma minoria na família Bowman. Vamos tentar não maltratá-lo tanto. Como ele vai reagir é outra história.

— Nós abraçamos as minorias, e não as discriminamos mais ainda — Valerie fez uma careta de brincadeira. — Se você quiser ser desse tipo, saiba que não tem o meu apoio. 

— Pensei que você fosse me amar para o resto da vida! 

— E vou. Mas amar não significa concordar com tudo que o outro faz. Principalmente se for algo tão grave quanto tratar uma pessoa como inferior. 

Veronica curvou os lábios para cima, num esboço de sorriso maníaco. 

— Bem, então aqui a gente tem uma divergência. Tenho duas personalidades ativas. Uma delas é terrivelmente petulante, e a outra tem a autoestima de uma minhoca. Mas as duas tratam os homens como inferiores. Porque, adivinhe só: eles são mesmo!

Valerie sorriu de volta para ela, olhando a mãe pela janela do quarto. Tão tranquila daquela forma, mal parecia que ela também travava uma luta interna. Valerie escutou a voz dela falhar na oração de agradecimento à comida quando mencionou John. Já fazia dois anos que não viam o pai, e alguns meses desde que receberam alguma correspondência garantindo-as de que estava em segurança.

Tinha tantas coisas que gostaria de dividir com o pai… Os livros que esteve lendo durante aquele tempo, as músicas novas – será que ele tinha escutado falar dos álbuns novos dos Beatles? Será que, se aquele fosse o caso, ele saberia adivinhar qual era a favorita dela?

Como ela poderia definir seu primeiro amor para ele, uma vez que tinha surgido e desaparecido feito as nuvens de chuva no verão? Como poderia dizer ao pai que, mesmo com a ausência, sempre que pensava em Alex uma onda de paixão levitava-a e a trazia de volta ao chão em seguida, sem qualquer delicadeza? Como é que Valerie diria a ele que tinha cometido todas as escolhas erradas possíveis?

— Eu aceito Clara Ortiz — Veronica cedeu, encarando-a com as duas mãos na cintura. — Fica sonoramente mais bonito.

— Você tem razão. 

— Claro que tenho. A tia que vai estragar a criança sou eu. Tenho razão em tudo sobre isso.

Valerie riu baixinho. Então, sem muita cerimônia, Veronica suspirou e sentou-se sobre as próprias pernas e abaixou a cabeça.

— Obrigada por me ouvir… 

— Obrigada por me contar — Valerie segurou-a contra seu peito. — Eu amo muito você, Ronrom… 

— É… Eu também… 

A voz dela ainda estava fanhosa, e o nariz continuava a fungar. Valerie permaneceu ali, confortando-a, quando na realidade adoraria estar no lugar da irmã. O pensamento egoísta preencheu seus pulmões. Roubou seu ar e transformou o pulmão numa estufa alimentada pelas gotículas de sangue das veias. O coração ainda batia, mas apenas para lembrar-lhe de que não era por mérito próprio. Agora, haveria mais alguém para depender de Valerie.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Mesmo relações de irmandade como as de Valerie e Veronica podem ficar abaladas por algumas decisões... precipitadas?
Um beijo, e até o próximo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nebulosa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.