Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 12
XI — No, I could never give you peace




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“Nosso amadurecimento chegou e se foi

De repente, neste verão, está claro

Eu nunca tive a coragem de minhas convicções

Enquanto o perigo estiver próximo

Está logo na esquina, querida

Porque ele vive em mim

Não, eu nunca poderia te dar paz”

(peace — Taylor Swift)

 ★

O caminho para Fort Lauderdale adquiriu familiaridade para Valerie. Por mais que não fosse ela a dirigir, daquela vez, tudo parecia funcionar no piloto automático. Alex dirigia na ida, ela ficava encarregada de escolher as fitas que iriam tocar na viagem. Na volta, Valerie era quem assumia o volante, enquanto Alex ocupava-se de ler seu manuscrito, fazer uma anotação aqui e ali – “ainda bem que estou usando um lápis, olha só esse risco” e “quer um gole de água?” eram suas quebras de silêncio mais frequentes – e, sem que percebesse, por vezes Alex cantava em murmúrios as músicas favoritas de Valerie enquanto marcava as palavras em alemão. Valerie perguntava-se como ele conseguia concentrar-se em tantas coisas simultaneamente. Se fosse com ela, já teria desistido e ficado quieta durante toda a viagem. 

Rindo sozinha, ela o olhou de perfil. Alex sempre ficava de cara fechada quando guiava o carro. Entretanto, após algumas ocorrências, Valerie tinha se acostumado com a carranca. Ele estava apenas concentrado, não bravo. Valerie também pegava se perguntando com que cara ela ficava ao dirigir. Provavelmente, com uma expressão de pânico. Ainda se lembrava de John dizendo para ela que o carro era apenas uma máquina, ela não precisava se tremer tanto assim. É uma máquina e eu sou apenas um homem, minha querida. 

Valerie suspirou. Sentia tantas saudades do pai que o coração se retorcia dentro do peito. 

— Está tudo bem? — Alex indagou, olhando-a de escanteio. — Você ficou muito quieta de repente… 

— Eu costumo falar tanto assim durante a viagem? 

Ele sorriu, e Valerie não resistiu a sorrir de volta. Seu coração estava em casa.

— Você fala, mas não é nenhum incômodo. Eu prefiro você falando o caminho inteiro do que ficar ouvindo a propaganda no rádio. 

Ela deu de ombros, tremendo parecer muito boba. Como poderia colocar em palavras algo que ela sequer tinha certeza? Algo que ela mesma admitia que não tinha nenhum embasamento lógico? 

— O que te incomoda, Valley? 

Alex jamais a julgaria ou diria que ela estava pensando como uma boba. Porém, entre fazer papel de boba e escutar alguém o chamando assim havia uma bela distância. Tratava-se da gentileza dele, não necessariamente da sinceridade. 

— Nada, eu só… Eu nem sei o que dizer… 

— Acha que consegue identificar pelo menos algo que desencadeou esses pensamentos?

Valerie negou com a cabeça, apoiando os dois pés no estofado do banco.

— Está tudo bem se não quiser falar… — num tom de voz mais manso, Alex sussurrou. — Mas devia tentar, pra ver o que acontece… 

— Eu só… Acho que falo demais… Parece que passei a minha vida inteira falando — num murmúrio, ela se encolheu no banco, passando os braços ao redor dos joelhos. — Achei que, de alguma forma, isso iria fazer com que eu sempre dissesse a coisa certa, mas… Eu falo, falo, falo e de repente tudo parece tão… gigantesco e pior do que estava no começo. É perigoso falar… Não só para a pessoa que está falando, mas para quem está escutando. 

Ela respirou fundo, sentindo a garganta embargar. Como podia estragar um dia maravilhoso com a velocidade de uma locomotiva?

— Eu sei que é difícil conviver comigo a longo prazo… Porque sou alguém que sente demais, pensa demais, que tem muito a dizer mesmo já tendo dito uma pilha enorme. É muito para alguém segurar, eu não… Acho que é mais fácil aceitar que as coisas estão dando errado, guardar para si e esperar passar ao invés de obrigar outra pessoa a ouvir e lidar com isso tudo também… Quanto mais eu tento explicar como me sinto, pior fica… 

Então, Alex moveu a mão que repousava no câmbio de marcha para segurar a dela. Valerie sustentou o olhar em seu rosto, tentando ler atrás das linhas de expressão e por trás de suas marcas. Será que ele também entendia a gravidade do silêncio?

O que era aquilo que a assombrava tanto? Era possível pensar que as lembranças de John Bowman a levaram até ali, uma vez mais? Algum sinal, indicando-a de que era um mau presságio? Ou era algo simples, como o medo de perdê-lo?

Ele tinha um olhar tão terno. Valerie perdeu a conta de quantas vezes havia deitado a cabeça em seu colo após uma semana estressante, e sentiu-se relaxada com apenas o seu mero toque. O pânico de não conseguir retribuir da forma como ele merecia a pegava vez ou outra, porém Valerie tinha consciência de que não era isso, desta vez.

A incerteza era o que mais a consumia. 

E lá estava ela divagando outra vez.

— Não precisa de explicações — ele quebrou o silêncio, enviando-lhe arrepios por toda a espinha. — Só diga a primeira coisa que vem à coisa, como fez agora… Ninguém vai culpá-la por não querer falar, mas eu jamais iria ficar incomodado em ouvi-la, Valerie. Tudo que você tem a dizer vale a pena, ainda que seja confuso e incongruente. Vale a pena porque vem de você… 

Valerie sentiu as lágrimas fugindo do canto dos olhos sem sua permissão. Inabalado, Alex apenas enxugou-as com os polegares. Se pudesse, Valerie conservaria aquele momento num canto especial de sua memória, protegido dos desgastes e imprevistos do tempo.

— Sabe, eu estou te devendo uma dança lenta — Alex comentou como quem não quer nada. — Acho que naquele dia a gente só dançou coisa de jovem.

— Coisa de jovem… — ela abafou a risada apoiando o queixo nos joelhos. — Nós somos jovens! Mas é verdade, você me deve mesmo. Conheço uma dos Beatles incrível. 

Alex resmungou de brincadeira, mas meneou a cabeça positivamente. Diferente dela, Alex parecia estar completamente em paz. Era no mínimo estranho, uma vez que ele costumava estar mais vigilante do que ela. 

Valerie tentou afastar os pensamentos nocivos da cabeça, substituindo-os pela esperança de uma dança. Como se lesse o que se passava em seu subconsciente, Alex indagou:

— De que tipo de dança estamos falando? Uma valsa?

— Não sei… Nunca dancei uma valsa… 

Nunca? Nem no baile da primavera?

— Eu não fui no baile da primavera — ela riu baixo, tentando não se abalar pela lembrança ruim. — Digamos que eu era um patinho feio.

Alex franziu a testa.

— Não consigo imaginar você sendo considerada feia por alguém. 

— É que eu usava aparelho — ela explicou, abaixando os pés. A necessidade de estar em constante movimento tinha dado as caras. — Me chamavam de “freio de burro”. Dificilmente um garoto chamaria uma menina como eu para dançar. Ficaria feio nas fotos. E para a própria reputação do cara.

— Nossa, isso é horrível — ele ofegou. — Puxa, eu… Sinto muito por isso… Nem imagino como deve ter sido… 

Valerie abriu um sorriso tranquilo. 

— Tudo bem. As pessoas são cruéis assim mesmo. Pelo menos, agora eu tenho a mordida perfeita e os meus dentes não estão mais encavalados. Aquela faixa me dava dores de cabeça. Puxava muito, sabe? Prendia os meus cachos e tudo.

— Será que tem algum conserto para isso aqui? — Alex arreganhou os dentes e indicou seus caninos. Por um minuto. Depois, ele voltou a fechar a expressão. — Eles me incomodam a vida inteira.

Valerie ficou boquiaberta. Alex, por sua vez, limitou-se a rir de seu choque. 

— É verdade… Bom, acontece, não?

— M-mas eles são o seu charme! Eu acho o seu sorriso tão lindo! Por que você não gosta?

— Pareço um cachorro — ele replicou sem hesitar. — As pessoas sempre ficam encarando. 

Valerie engoliu em seco. Ela achava que tinha passado maus bocados na escola, porém imaginava como deveria ser o triplo pior para ele. Vindo de um lugar simples, perder os pais tão cedo, conviver com cicatrizes fundas e aparentes… Valerie não se surpreendia que Alex tivesse tanta insegurança sobre a própria aparência, ainda que não houvesse nada de errado com ela. 

Esperando que ele estacionasse o carro, Valerie pôs-se a respirar fundo e a verificar se todos os membros ainda funcionavam. Era uma pessoa que facilmente carregava a dor do outro, não podia evitar. Quando ele puxou o freio de mão, Valerie apoiou as mãos em suas bochechas. Alex fitou-a com curiosidade, porém ela conseguia enxergar parte de sua dor nas pupilas dilatadas.

— Você é tão, tão lindo — a voz dela saiu num sopro. Alex ficou momentaneamente confuso com o brilho nos olhos dela, porém prestou atenção ao que ela dizia. — Queria que pudesse ver pelos meus olhos… Queria que pudesse acreditar em mim… Parte o meu coração escutar você dizendo isso…

Fort Lauderdale poderia ser uma cidade comercial, com direito a aviões passando há dezenas de milhas acima de suas cabeças, vendedores ambulantes nas praias e nas ruas, mas tudo que se ouvia naquele carro velho eram as respirações dos dois e os batimentos cardíacos contra o peito. Valerie prendeu o fôlego, aflita. Se o seu pressentimento estivesse certo, não podia estragar tudo, não agora que tinha chegado tão longe… 

— O que eu fiz para merecer tudo isso…? — ele murmurou, encostando a testa à dela. A pele era cálida, convidativa. Valerie sentiu-se febril. Delirante. Aquele homem a tirava dos eixos, de tantas maneiras possíveis… Valerie permitiu que ele beijasse as mãos delas, ainda repousadas suas bochechas, e fechou os olhos. Se os mantivesse abertos, era bem provável que as lágrimas escorressem. — Eu nunca fiz nada de bom, eu… Sou a pior pessoa que você poderia querer por perto, não entendo porquê… 

Sua voz morreu aos poucos. Valerie permaneceu imóvel, tremendo quebrar aquela aura. Sentia as nuvens começarem a escurecer, os trovões aproximarem-se aos poucos. Ela teria voado perto demais do sol? Suas asas iriam derreter? Valerie tinha ouvido dizer que cair de uma alta distância na água era como cair em concreto. 

— Não entendo porque você ainda não me mandou embora… 

— Por que eu faria isso? — Valerie sussurrou, consternada. — Se dependesse de mim, você ficaria aqui para sempre… 

Alex ergueu os olhos muito azuis para ela. Valerie arrastou os polegares pelas bochechas dele, carinhosamente. Aproveitando a tolerância do estacionamento, Valerie distribuiu beijinhos por todo o rosto dele, obtendo um sorriso vacilante como resposta.

Naquele momento, ela quase o disse. Contudo, havia uma razão para às vezes orações eficazes serem feitas em silêncio. 

Silenciosamente, Valerie pediu a qualquer força superior que fizesse com que ele acreditasse no que ela dizia. Se Alex, que era a doçura e gentileza em pessoa, acreditava que não merecia o amor, Valerie havia falhado na única missão que lhe fora imposta pelo amor. O amor deveria fazer o outro sentir-se seguro… 

Ela também não merecia ser amada. Se parasse para pensar, não tinha feito nada que merecesse amor. 

— Você vai embora, não vai? — Valerie não desviou o olhar dele. Alex mal se moveu, com exceção dos olhos, que corriam nas órbitas a todos os instantes. — Me disse que era um viajante, e eu… Sempre fiquei esperando algo do tipo… Estamos apenas acumulando memórias boas, Alex…? 

Alex aquiesceu de maneira quase imperceptível. Novamente, Valerie pegou-se pensando nas ondas. Por mais aterrorizantes e belas que fossem, ninguém questionava as ondas, elas simplesmente eram— e talvez seu coração fosse assim. Valerie amava da mesma forma que as ondas. Assim como elas traziam objetos perdidos para a areia, também levavam outros para longe.

— Está tudo bem — ela forçou um sorriso, beijando a testa dele com todo o cuidado. — Eu… Acho que deveríamos aproveitar o final de semana e… O amanhã fica para amanhã. Não é? E… 

— Valerie — Alex interrompeu-a com um sorriso tão forçado quanto o dela. — Obrigado. 

— Pelo que…?

Por ser patética? 

— Você é um dos seres mais incríveis que tive a honra de conhecer e… Eu agradeço por me permitir fazer parte da sua vida, ainda que apenas por um pouco. Acha que pode me perdoar por ir embora? Um dia? 

— Nesse mesmo instante. E todos os dias após. 

Alex assentiu, respirando fundo. Então, Valerie estendeu a mão para ele, como redenção. Arquitetando um tom bem humorado, Valerie brincou:

— Ainda me deve uma dança e um pôr do sol, Alexander Weber. Não pense que vai fugir disso! 

— Eu jamais fugiria de você, Valerie. 

— Eu sei… Sei disso. 

Só que, às vezes, fugir significava um grande ato de coragem, e não um de covardia.


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Notas finais do capítulo

vou dormir chorando hoje KKKKKKKKKKK
não me matem, viu? Prometo que melhora, alguma hora, não sei quando mas melhora



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