Fragmentos de um Despertar escrita por Eduardo Prado


Capítulo 2
Mais Um Dia




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Acordou. Fechou novamente os olhos. Virou para um lado. Não queria lidar com nada naquele novo dia. Lembrou-se daquela conversa com a sua projeção mental e uma pequeníssima pontinha de esperança surgiu em seu interior, inundando o seu peito e fazendo o seu coração bater com a ansiedade roçando em suas paredes externas. Ali estava tão confortável e protegido. Por que sair? Seria uma experiência fatigante e estressante. Gostaria de poder ser capaz de viver em sua mente e se nutrir a partir dela, porque é onde é livre.

Por mais complicado que fosse, nada tiraria a sua liberdade. Ali, em sua cabeça, poderia ser o que quisesse, ir aonde quisesse, ver o que quisesse, relembrar do que quisesse, ser o seu próprio limite. Isso, escolher até onde era permitido passar. Sua liberdade estava sob aquilo que a sua decisão escolheria limitar. No entanto, aquilo seria realmente a liberdade?

— Bom dia, flor do dia! – exclamou a sua partícula infinitesimal. – Sei exatamente como está sendo difícil para você estes segundos iniciais do seu dia. Sei como a sua cama é muito convidativa e confortável. Sei que as possibilidades de acontecer algo ruim são variadas, mas as de acontecer algo bom também o é.

— Sabe, não dá para te chamar de “partícula infinitesimal”, “partícula”, “projeção”, “projeção mental” todo o tempo – anunciou sem abrir os olhos e sair da posição. – Qual o seu nome?

— Somos a mesma pessoa...

— Vou te chamar de João.

Alguns minutos se passaram e o sono não retornou. Decidiu abrir os olhos. Amaldiçoou tudo. Não estava pronto para viver mais um dia, ver as mesmas pessoas, ou pessoas novas, lidar com novas e velhas circunstâncias. Pensou novamente em como seria perfeito morrer. Gostaria de partir de forma indolor, rápida e prática. Pensou nos comprimidos para dormir e em sua superdosagem. Mas seria eficiente? Quem sabe se misturar a superdosagem de outro medicamento controlado?

— Droga... – resmungou ao sentar-se na cama.

Sentiu tontura e fechou os olhos, mas não adiantou absolutamente nada. Seu corpo urrava de dores em todo seu comprimento. Queria chorar. Quão patética era aquela cena. Tão mundana! O que deveria fazer naquele dia desprezível de sua existência? Ser mais um, sem nenhuma habilidade específica ou única, uma figurinha repetida dentre bilhões de outras.

— É normal se sentir assim, lembre-se de ter paciência consigo mesmo – admoestou João. – Você está lidando com sentimentos intensos e um momento difícil, sendo totalmente humano.

— Sabe do que mais odeio que acordar? Pessoas positivas de manhã.

Sentou-se à mesa para o desjejum. Estava consigo mesmo mais uma vez. Encheu a sua xícara com café. Todo o enorme espaço da sala onde se encontrava o fazia se enxergar pequenino. O aroma do café quente o envolvia, comprimindo-o e escorregando-o em um funil de sensações como o silêncio ambiente, a ausência de pensamentos intrusivos, a sua existência pacífica e o mundo em sua volta comportando-se como o de costume.

Prazer. Seria a palavra correta para o que sentia? De tão efêmero, não podia ser. Ou talvez tenha confundido com o prazer carnal, uma vez que procurava o prazer interno, aquele qual satisfaz a sua existência e pacifica o coração. As atividades interiores ficaram controladas, calmas, o sorriso tímido nasce nos lábios e a respiração fica leve. Era a satisfação. Essa era a palavra. E quando foi a última vez da qual se sentiu assim? Talvez quando era uma criança, um ser humano mais livre, usando a fantasia.

Sua cabeça estava dolorida na parte de trás, acima da nuca. Sua exaustão emocional o fez decidir não responder suas perguntas, de qualquer espécie, porquanto limitaria tudo sem necessidade de limitar. Sabia onde queria estar, sem edificações e palavras, todavia, não sabia onde estava. Forças antagônicas travavam guerras dentro de si e seu peito pesava, um nó surgia próximo ao coração. Era excessivo. Quanto mais se sabia, mais era cobrado.

— Bom dia, filho – desejou a sua mãe.

— Bom dia – respondeu ao bebericar a xícara com café.

Sentiu que tudo o que sentiu anteriormente foi arrancado repentinamente de si, roubado. Como aquela mulher ousou a tirar dele o seu momento? Estava ronronando em um assento quente e macio, um garanhão à solta na natureza saudando a sua própria existência e beleza. Onde estava? Como retornaria ao mesmo ponto? Não podia mais.

— Tenho as minhas preocupações e afazeres como qualquer mortal a deambular sobre a terra seca em busca de garantir a sua própria subsistência – clamou a mulher com uma xícara na mão -, então preciso que faça algumas coisas para mim, pois você não ficará em casa sem fazer algo enquanto eu trabalho, seria uma blasfêmia.

— Claro, mãe.

Incômodo. Era uma bolinha sólida em um assento chamativo de sofá após um longo dia de trabalho. Entretanto, era a realidade. Como gostaria de ter o poder de transmutar a realidade e poder ser desamarrado de responsabilidades e colocar sua família em uma mesma situação. Incoerente e utópico. A realidade insistia em ser desanimadora e esmagadora.

— Você poderá usar a oportunidade de realizar essas tarefas como uma forma de se distanciar da área viciada em criar pensamentos intrusivos e focar no presente – expôs João.

— Ou não fazer nenhuma delas, porque nada realmente importa, afinal.

— Você é importante, mas não consegue enxergar isso ainda.

— Adoraria me ver no seu ponto de vista.

Compreendia o quão interessante poderia ser a atividade de lavar um banheiro. Ser o responsável por tirar a sujeira e deixar um lugar limpo era interessante, todavia, preferia ser pisoteado por cinquenta e três cavalos. Seus ombros estavam tensos e pesados e sua mente entorpecida por tanta atividade produzida em tanto pouco tempo, pois não estava recuperada de todo aquela imprudência.

Ansiava que aquele esforço o levasse para uma área de bem-estar, ou melhor de onde se encontrava. Descalço sobre o piso branco, molhado e frio criou uma conexão que o fez ser parte da casa, poderia sentir as paredes frias, suas cores, a energia da casa e o seu telhado como se fosse um ente vivo. Não era mais uma caixa da qual abrigava humanos e bactérias. Se permanecesse deitado naquele chão, estaria protegido e a salvo.

Como poderia ter desejado não ser quem era? Estava contente por sentir expandido, amplo e inteiro, alcançando limites fora de sua carcaça carnal. Divertia-se fazendo aquela atividade existencial, embora não fosse o suficiente para manter todos os monstros dentro do guarda-roupa. Sua respiração ficou sutilmente descompassada e seu coração acelerou como se estivesse levado um susto surpreendente. Seu coração estava na garganta, pulsando e sangrando. Sentia medo.

Lembrou-se de como estava submerso em sentimentos indescritíveis, problemas intermináveis e cansaço vitalício. Do que valeria sentir o bem-estar se sentiria desolado depois? Sua vivência seria uma montanha-russa da qual não teria um percurso definido. Relembrou de palavras não ditas e sentiu pormenorizado em sua própria insignificância. As diferenças com a sua família eram sufocantes de um modo do qual nunca parecia ter harmonia de novo, nunca haveria conforto ali. Onde estaria seguro?

Concluiu que estava sozinho. Sempre foi assim, não é? É só olhar atentamente e notar que sempre estava por si mesmo. O mundo tornara-se um lugar muito grande e inóspito. Estava sempre deslocado, sempre era o diferente. O que tinha de errado? Por que não era igual às outras pessoas? Gostava de pensar que era seu ponto forte e notório. Orgulhava-se dele, mas compreendeu que também era uma praga. Qual era o seu lugar? O que deveria fazer a seguir?

As oportunidades estavam ali em sua juventude, não foi isso que disseram a ele? Como poderia realizar qualquer coisa se estava uma bagunça? Como poderia se sustentar se não era capaz de lidar com suas questões internas? O tempo não para. Tinha medo de perder o seu potencial, porque sabia que a idade adulta seria mais exigente e, até ali, considerou que suas habilidades haviam deteriorado.

— Lembre-se de respirar – João manifestou. – Você não tem controle sobre as suas emoções. Deixe-as vir. Viva-as. Depois passarão. Infelizmente, momentos ruins virão e poderão ser duradouros, no entanto, encontrarão o seu fim, naturalmente. Assim como os momentos bons têm um início e um fim, os ruins também. Esse é o funcionamento da vida.

— É cansativo demais!

— Eu sei. É doloroso também. Sinto as mesmas coisas que você e sei como você sofre estando na condição que está. Não se limite a guardar essas emoções ou contê-las. Aproveite agora que está sozinho e as exprima do seu jeito.

Um grito foi ouvido. Estava carregado de dor e desespero. Depois veio o choro. As lágrimas estavam frias em contato com a pele quente e vermelha do rosto, porquanto havia uma enorme pressão sendo aplicada devido à força do choro. Uma grande bola formou-se em sua garganta e nutria-se enquanto havia mais choro. Em um dado momento, parecia que seria vomitada.

— Você está experimentando uma grande carga emocional. Quer tentar a técnica de respiração?

Inspirou. Expirou. Repetiu algumas vezes até se acalmar. Sentia-se aliviado e leve. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ardiam. Sua testa pulsava dolorosamente e mesmo apertando as têmporas não parou a dor. Deu continuidade a tarefa passada por sua mãe. Enxergou-se mínimo, um ponto no registro populacional na História.

— Fico satisfeito com a sua recuperação – saudou João. – Sentiu-se bem?

— Sim.

— E o grito?

— Foi muito bom. Só a dor de cabeça que está enchendo o saco.

— É natural.

— Eu sei.

— Eu sei.

Finalizou a limpeza no banheiro e guardou os utensílios usados. Estava cansado. Sentia somente a dor na cabeça e o restante do corpo estava dormente. Arrastou-se para uma cadeira e sentou-se lá. Sua mente estava exausta ainda, seu interior sem previsão de organização e o futuro aproximava-se a cada segundo.

— Não se esqueça de tomar um remédio para dor de cabeça – instruiu João.

— Adoraria que você tomasse conta de mim.

— É o que estou fazendo.

— Não, eu quis dizer tomar as rédeas, tornar-me um mero espectador. Não estou com saúde para viver.

— Você pode não ter notado, mas sua evolução foi impressionante. Você teve coragem de tentar novamente, de não desistir em face às dificuldades, de se expressar e encarar seus sentimentos e está tentando se recuperar.

— Espero que não piore.

— Caso aconteça, você deve ter em mente que é capaz de lidar com o que vier, pois você foi capaz de se renovar diversas vezes quando pensou que estava difícil, quando não viu uma saída. E eu estarei contigo.

— Também sou o único que pode fazer qualquer coisa para melhorar.

— Isso é verdade, porém não significa que não deva procurar ajuda de um profissional. Este sabe como lhe ajudar, uma vez que é um especialista.

A esperança estava dentro de seu peito, podia sentir. Era um brotinho ainda. O problema era que, embora cada experiência fosse diferente, havia um roteiro a ser seguido. Isto é, com a melhora, havia a piora, se ele subisse, poderia cair, obviamente, e quem sabe poderia ser dessa vez fatal. Afirmou veementemente que aquela crise foi a maior e a mais profunda da qual passou por sua vida. Tinha medo de se perder, de perder as possibilidades de ter uma vida digna e melhor, de piorar, de não estar pronto. O que deveria ser feito?  

Aquele dia não foi ruim como cogitara. Estava em pé até o seu findar. Foi corajoso e não desistiu de si mesmo. Foi bom ter essa autoconsciência, porque serviu de motivação para continuar o seu caminho, de querer vencer mais uma vez. Embora sentisse o seu coração palpitar em certos momentos durante o dia, sentisse uma tristeza profunda algumas vezes, foi capaz de viver e não somente existir.


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