Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 2
II




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Tudo aconteceu muito rápido, e é por isso que eu tenho certeza que ninguém além de nós oito sobreviveu. Ou, talvez, só alguns gatos pingados que a essa altura já devem ter morrido. Foi rápido demais, de verdade. Nos filmes e séries sempre demora um tempo, as pessoas até conseguem fugir por alguns dias ou se esconder por umas semanas, mas na realidade foi simplesmente RÁPIDO.

Era de noite, umas oito horas. Todo mundo tinha ficado até mais tarde para fazer o balanço do mês e teve uma reunião com o merda do Junior, que era o chefe. Todo mundo odiava ele, e ironicamente ele foi o primeiro a morrer.

A gente estava no andar de cima, no escritório dele, e ele estava gritando e sendo escroto e exigindo demais para quem pagava só um salário-mínimo e achava que os funcionários eram escravos, como de costume. E então começou uma gritaria na rua, e a gente até pensou que era só um assalto ou acidente, mas foi intenso demais. Todo mundo correu para a única janela, e no começo a gente achou que fosse alguma brincadeira de muito mal gosto, tipo essas pegadinhas que são filmadas, mas não era.

Os zumbis, as mordidas, o sangue na rua, as pessoas gritando. Tinha uma multidão de zumbis, basicamente. Da janela não dava para ver muita coisa além da rua, porque o prédio em frente era muito alto, mas eu entendi o suficiente. Eles estavam vindo da zona sul, onde ficava a minha casa, e foi tipo esses filmes de enchentes só que ao invés de água eram mortos vivos. Em questão de segundos eles cercaram o prédio. Dava para ouvir os gritos, também. A sinfonia de gritos de uma cidade inteira assustada, sendo dizimada. A carne rasgando, o sangue escorrendo, os choros e os gritos e toda a confusão: nós assistimos de camarote, sem entender a dimensão de tudo aquilo.

Eu reconheci a velha fofoqueira da minha rua, a dona Marta, entre eles. A velha vivia trancada dentro de casa, não abria a porta nem pro carteiro, e na hora que eu vi ela eu já sabia.

Eu simplesmente sabia: onde quer que eles tivessem passado, não tinha sobrado ninguém.

No total foram alguns minutos e então a rua ficou em silêncio. Outra coisa que os filmes fazem errado: os zumbis não ficam gemendo, eles ficam em silêncio total, e acho que isso ajuda eles a pegarem mais pessoas porque elas simplesmente não percebem o quão perto eles estão. E eles são rápidos, também.

O Junior saiu correndo da loja quando a confusão começou, acho que ele pensou que fossem assaltar o carro dele, porque ele sempre foi muito burro e não entendia nada. E aí ele foi devorado antes de sair da calçada e chegar no carro, e a gente assistiu tudo pela janela apertada do segundo andar. Eu odiava ele, mas não queria que ele tivesse morrido assim.

Todo mundo ficou imóvel, perdido e sem acreditar.

Eles não entraram na loja, porque não tinha ninguém dentro. O Moisés foi o único esperto entre nós e trancou a porta que levava pro primeiro piso logo que o Junior saiu, então mesmo que eles tivessem entrado eles não teriam chegado até nós. Naquela época a gente ainda não sabia que eles eram tão ruins em subir escadas.

Enfim, agora sobrevivemos só nós oito: Maria e Carol, que ficavam no caixa, eu, que cuidava das vendas online, Moisés, Ana e José, que eram vendedores, Bruna e Tainá, que ficavam na contabilidade.

A gente passa os dias olhando um para a cara do outro, às vezes conversa, e passa fome e sede e privações juntos. Agora que já passou um tempo (eu não sei nem quanto tempo), normalmente fica cada um no seu quarto sofrendo à própria maneira. No começo todo mundo ficou em choque. E então todo mundo ficou deprimido. Hoje a gente só tenta sobreviver mesmo.

No primeiro dia eu tentei sair, mas os meninos me impediram. Eles chegaram a me segurar, prenderam os meus braços nas costas e amarraram meus pulsos com um cinto. Eles não queriam que eu virasse um zumbi. Então foram dias de choro e gritos, e então alguns dias sem reagir, algumas semanas sem falar uma única palavra. Eu fiquei catatônica por algum tempo. Mas me recuperei, tanto quanto possível. Não é como se eu tivesse outra alternativa além de aguentar.

Mas uma coisa eu vou dizer: os colchões daqui são muito confortáveis.

*

Uma noite, faz tanto calor e tem tantos mosquitos que eu tenho certeza que vou morrer. De ódio, ou de dengue ou de malária, eu não sei. Mas eu sei que vou morrer. Provavelmente de ódio.

Tem tantos que a gente decide acender uma fogueira na laje, para ver se a fumaça os afasta. Então a gente sobe e se joga no chão, ao redor do fogo. Normalmente a gente não gasta fósforos, ou carvão, a não ser que seja muito necessário.

Com o fogo, o ninho de travesseiros e lençóis e um monte de jovens reunidos, podíamos facilmente ser um grupo de amigos acampando no mundo pré-apocalipse. Apesar de que, é claro, se fossem outras circunstâncias a gente provavelmente nunca teria se reunido assim.

Então eu começo a me sentir deprimida, porque eu fico pensando em uma vez que eu e o Lucas acampamos no quintal de casa, não muito antes de tudo acontecer. Mas eu tenho feito um trabalho muito bom em não pensar nele nos últimos dias, então me obrigo a pensar em outra coisa. Eu me deito entre a Bruna e o José, e peço para alguém contar uma história. A Carol começa a falar e falar e falar, mas eu não consigo prestar atenção no que ela diz. Eu sinto o meu coração acelerar, e eu sinto os meus olhos encherem de lágrimas, mas eu engulo o choro e me obrigo a respirar e finjo que tá tudo bem.

Não demora muito e todo mundo dorme, a fumaça de fato afasta os mosquitos. Mas eu fico acordada, olhando pro céu sem estrelas e me revirando, inquieta. Quando eu me viro novamente pro José, ele me olha de olhos abertos, apesar de sonolentos. Ele me pergunta se eu não consigo dormir, e eu nego com a cabeça, sem querer me aprofundar no assunto.

O grande defeito do José é que ele quase sempre quer se aprofundar no assunto. Ele sempre quer debater e discutir e explicar e eu não tenho mais paciência para isso. É a porra do apocalipse, eu to exausta e não quero falar, nem pensar, nem discutir, eu quero malmente sobreviver. Mas dessa vez, milagrosamente, ou talvez porque ele está com sono, ele não me pergunta nada. Ele só me puxa mais para perto, me abraçando, e faz carinho na minha cabeça com a mão livre. Depois de um tempo, eu finalmente consigo dormir.

No dia seguinte, eu acordo sozinha com a discussão sobre quem deveria sair dessa vez porque a gente tá quase zerado de comida. O bom é que tem um shopping sem sobreviventes do outro lado da rua, o ruim é que tem zumbis dentro e fora dele.

Nas últimas vezes quem tem ido é o Moisés e a Bruna, mas ela disse que não vai dessa vez. Normalmente eu fico fugindo de sair, porque é uma bosta e porque eu tenho medo, mas a Carol fala que eu nunca saio e deixo os outros irem no meu lugar, então não vai ter como escapar. E a verdade é que ela tá certa, eu não saí do prédio nenhuma vez desde que tudo aconteceu.

Para chegar no shopping o que a gente faz é: um dia, quando não tinha nenhum zumbi na rua, a Tainá estacionou os carros dela, do Junior, do Moisés e da Bruna entre o prédio e o shopping, fechando a rua. Eles pulam do segundo andar do prédio pro carro e vão pulando pro próximo, até chegar no shopping, onde quebraram a vidraça para poder ir e vir. Os zumbis vêm e vão a hora que eles querem, não existe lógica, então se a rua estiver vazia tem que correr rápido antes que eles apareçam. Se eles aparecerem, é só ficar no ponto mais alto, que é o carro do Junior, até eles desistirem e irem embora.

O foda é que o supermercado fica do outro lado, então quem for precisa atravessar o andar inteiro para chegar lá. Aí eles pegam comida enlatada, o máximo que conseguem, e outras que não sejam difíceis de trazer, além de todo o tempero e sal que der. Aí volta pelo mesmo caminho e a gente pode ficar uns dias/semanas sem fazer compras.

A regra é ir sempre em dupla, para ter apoio e também porque se alguma coisa acontecer com um o outro pode voltar e avisar.

Na laje do prédio a gente montou uma churrasqueira improvisada com uns tijolos soltos, então dá para esquentar comida. Também tem uns baldes onde pegamos água da chuva quando chove.

Na teoria seria menos difícil ficar de vez no shopping ao invés de ir e voltar, mas o nosso prédio é o único completamente sem zumbis e completamente fechado, provavelmente em toda a cidade. O shopping e as outras lojas do quarteirão ficaram abertas porque ainda era cedo quando tudo aconteceu, e dá pra ver os zumbis entrarem e saírem delas, procurando carne. Então o prédio é a opção mais segura, já que ninguém entra ou sai por qualquer lugar além da janela. Isso é, vai ser a opção mais segura até eu surtar e ficar louca de vez.

Vai ser uma droga ir ao shopping, eu tenho certeza,mas não vai ter como escapar dessa vez.

*

Eu vou descalça para o escritório, que é como eu tenho andado já que me recuso a usar saltos no apocalipse. Bruna, José e Ana estão lá, me dando dicas e apoio. Não que haja muito apoio a ser dado, é claro. Ana vai mais para se despedir do namorado, mas ela também tenta se manter calma e diz que vai dar tudo certo. Eu só consigo pensar em como a minha calça costumava ser branca.

Uma coisa que eu odeio quase mais que os zumbis é ter que usar a mesma roupa sempre. Não tem onde nem como lavar porque a gente não vai desperdiçar água com isso, e eu vou ser sincera: aquela história de que se todo mundo tá fedendo então ninguém tá fedendo não existe. Nós oito fedemos, é isso.

Enfim, o meu companheiro vai ser o Moisés. O que é bom, porque ele é quem sempre vai, então tem menos chances de se distrair e nós dois sermos atacados por zumbis. A gente vai de dia, é claro, porque é impossível escapar dos zumbis de noite.

Ele me ajuda a pular da janela, e percebe como eu tô nervosa então me diz que não tem segredo: é só correr e ficar perto dele. Eu corro atrás dele por cima dos carros, deslizando um pouco no começo mas depois consigo me equilibrar, e quando a gente se aproxima da vidraça quebrada na parede ele me pede para esperar e pega um espelho para ver se tem zumbis por perto. Ele sobe primeiro, e então me ajuda a pular para dentro também.É a coisa mais estranha do mundo pós-apocalíptico voltar para um shopping vazio, silencioso e bagunçado. Eu me sinto em um filme desses pós-apocalípticos, que na verdade é o que a minha vida é agora.

A gente vai andando rápido e em silêncio, se escondendo atrás das coisas quando algum zumbi aparece, e quando chegamos no supermercado eu vejo que o cadeado que trancava a porta de enrolar está quebrado. A portinhola no meio está trancada, mas ele abre com uma chave que não sei como conseguiu.

Eu nunca entendi se eles de alguma forma expulsaram os zumbis que tinham dentro do supermercado ou se foi sorte, e nem como eles conseguiram entrar aqui da primeira vez. Quando tudo isso aconteceu eu ainda estava meio catatônica, e não prestava atenção em nada do que acontecia, ou me importava com o que eles faziam.

De qualquer jeito, eu só queria que tivesse roupa e sapatos lá dentro. A gente entra e tá bem escuro, já que não tinha janelas ou clarabóia. Mas dá para enxergar o suficiente para não cair, e o Moisés já sabe onde as coisas ficam. Eu seguro na mão dele e deixo ele me guiar. Se ele percebe como as minhas mãos tremem, não fala nada. A gente abre as mochilas e vai enchendo, e na hora de ir embora (a gente faz tudo super-rápido para voltar logo para segurança do prédio) eu pergunto se ele já tinha visto algum sapato ou roupa por lá, mas ele fala que não naquele supermercado, e que ainda não tinha pensando em ver as outras lojas porque era perigoso.

Eu fico decepcionada, porque realmente queria trocar de roupa. Já se passou tempo o suficiente pra eu ter certeza que mataria por uma roupa limpa, com cheiro de amaciante. Ele me diz que a gente pode procurar outro dia, mas precisa se planejar antes.

Na hora que ele abre a porta tem um zumbi bem na frente, parado, esperando a gente sair. Só que não é qualquer zumbi, é o meu ex-cunhado, de 13 anos. Ele ainda tem o fone de ouvidos vermelhos pendurados no pescoço apodrecido, os olhos vazados e todo o aspecto de corpo apodrecido de um morto vivo. Todos os detalhes gráficos nos quais eu sempre evito pensar. É claro que ele seria atacado num shopping, já que passava o tempo todo neles.

Eu fico em choque e não consigo me mexer, o Moisés precisa me empurrar e trancar a porta sozinho, rápido, antes que o Luiz (ou o que era o Luiz) ataque. A porta fecha com um barulho alto que ecoa pelo prédio.

Eu não tenho reação, eu não consigo me mexer e nem respirar e nem brigar com o Moisés porque ele tá brigando comigo. Aí ele percebe que eu estava na merda e acho que fica com pena por ser a primeira vez que eu saía do prédio e para de brigar, só me pede para ficar em silêncio e que a gente ia sair de lá depois, quando o zumbi fosse embora. Ele me puxa para entre as prateleiras, procurando uma garrafa de água e me pedindo para beber. Talvez ele pense que assim eu vou me acalmar, mas não adianta porque eu ainda não consigo respirar, e eu esqueci como se respira.

Então ele chama meu nome, tentando me acordar pra vida. Ele me diz pra tossir, e eu nao entendo no começo mas ele repete e eu tusso e tusso e tusso, e então é como se eu me lembrasse como se respira. Ele me diz que eu tô tendo um ataque de pânico. Eu deixo ele prender o meu cabelo e molhar o meu rosto, e quando consigo respirar de novo e o meu coração desacelera ele ainda está preocupado, e me pede desculpas por ter gritado.

E eu quero falar que tá tudo bem e que a culpa não foi dele, mas eu não consigo.

Eu nunca liguei muito pro Luiz e sempre achei ele meio chato, para ser sincera, mas eu começo a chorar porque começo a pensar que todo mundo que eu conheço virou um zumbi/morreu. Então eu não consigo evitar pensar nos meus pais, na Miranda e no meu irmão, e até no meu ex. Eu olho pro Moisés e penso que eu e ele também vamos morrer aqui.

 


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