Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 1
I


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, muito obrigada pela leitura e seguem algumas considerações:

A história é narrada em tempo real, como se fosse um diário (apesar de não ser). Eu usei uma linguagem muito simples pra manter essa proximidade entre a protagonista e os leitores, então aqui ou ali tem algumas gírias, contrações, etc. Uma mistura de formal e informal, pra realmente ser como uma narração em tempo real.

Não existe uma linha temporal exata de datas, mas quando a história começa já faz um ano dos acontecimentos. Vocês também podem se basear no tempo em relação às enchentes que acontecem no decorrer da história, cada enchente significa que um ano se passou.

Acho que de início é só isso, aproveitem e boa leitura





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Com a chuva, acontece uma coisa que nunca tinha acontecido: o rio sobe, uma enchente que alaga as ruas e mergulha os zumbis até a cabeça. Não que eles se liguem, eles continuam o de sempre, só que bem mais lentos e submersos. É a primeira vez que isso acontece depois que tudo começou.

A água é suja e contaminada de zumbis, é claro, mas se não fosse por isso seria perfeito para dar um mergulho. O rio subiu tanto que quase alcança a janela do escritório, no segundo andar, e se eu inclinar metade do corpo perigosamente para fora eu consigo até tocar a ponta do meu dedão na água.

Eu fico só um pouquinho tentada a me jogar.

Um banho de rio seria um milagre, mesmo que o rio esteja cheio de zumbis. Eu posso me imaginar afundando, afundando, afundando... Nadando com os peixes ao meu redor, esquecendo de tudo. E quem sabe talvez ficando por lá. Mas a Ana briga com todos nós e proíbe de usar a água, porque a última coisa que a gente precisa é uma infecção ou doença, além da fome, desidratação e perigo constante.

Então por mais tentada que eu esteja, eu me comporto e me limito a sentar com as pernas para fora, quase tocando a água mas ainda não. Eu fecho os olhos e imagino uma mão cadavérica agarrando o meu tornozelo e me puxando para baixo, mas isso não acontece.

As lembranças vêm, como sempre: de férias na casa dos pais da Miranda, sentada com os pés suspensos no trapiche enquanto ela joga água em mim porque não quero me molhar. A música alta na caixa de som, as cervejas em nossas mãos ficando quente com sol. Como ela enchia a boca de água e então cuspia em mim, me provocando, enquanto Lucas ria e brincava na canoa amarrada no trapiche, fingindo ser um marinheiro.

Eu me inclino só um pouco, sem nem perceber, perdidas nas lembranças, e abro os olhos assustada quando sinto meus dedos tocarem na água. Eu me sento direito, bem a tempo de disfarçar quando José entra no escritório. Ele não percebe nada, e se senta ao meu lado. Ficamos os dois espremidos na janela, olhando para água que não se mexe. Há algum tempo nós decidimos quebrar a janela, e os meninos bateram e bateram e bateram até que ela caiu e ficou apenas um buraco na parede. Assim o ar circula melhor, mas machuca nossas pernas quando a gente senta.

Eu comento com José como aquilo é estranho, o nível da água subir tanto, e ele ri e me pergunta que parte da nossa vida não era estranha. Eu concordo, e a gente começa uma brincadeira de fingir que existe alguma coisa embaixo d'água. Ele diz que deve ter uma sereia, ou um boto pronto para me enfeitiçar. Eu sou mais pessimista e digo que um jacaré gigante, prestes a arrancar as nossas pernas. Ou uma cobra gigante que vai se enrolar no nosso corpo até nos asfixiar.

Ele insiste, e fala em um rei tritão benevolente, que vai nos oferecer abrigo no seu reino. Eu também insisto, e falo em uma mutação de um peixe elétrico zumbi. Mas ele está determinado a vencer a minha negatividade, e argumenta que a gente poderia usar o peixe para gerar eletricidade.

E é um argumento tão ridículo que eu gargalho alto, como não fazia há muito tempo. Alguns meses, pelo menos. Talvez um ano. Ele me olha sorrindo, surpreso em me ver feliz, o que é compreensível. Eu quase nunca fico feliz, não mais.

Então ele estraga tudo me falando que eu deveria sorrir mais vezes. Pelo que, exatamente, eu iria sorrir? Não é como se eu tivesse um motivo. Mas ele sempre tenta me incluir nas conversas, e é educado comigo mesmo quando eu tô sendo chata e negativa, e eu não quero magoar ele, então eu digo que vou me deitar um pouco ao invés de mandar ele pro inferno, que é o que eu tenho vontade de fazer.

E eu de fato vou para o quarto, mas fico olhando pro teto, pensando na água subindo subindo subindo subindo e afogando todos nós. Acho que eu preferia morrer afogada que por um zumbi. Se eu tivesse que escolher, é claro. O calor no quarto é demais, então eu subo para a laje. Normalmente todo mundo fica na laje pra evitar o calor, mas hoje só o Moisés e Bruna estão na laje, conversando enquanto olham para o horizonte.

Ele sorri com deboche quando eu me aproximo, e me diz que eu fico tão bonita quando sorrio, apesar de eu estar séria. Eu sei que ele ouviu a nossa conversa, o que não é um absurdo porque trancados no mesmo corredor, basicamente todo mundo ouve tudo. Eu empurro ele para chegar ao balde de água, mas a risada dele é tão contagiante que me faz sorrir mesmo que eu queira olhar feio para ele.

Então Moisés decide continuar a conversa que eu tinha com o José, mas a gente não precisa nem acertar os termos: eu falo de um híbrido de sereia zumbi, ele fala em um tubarão mutante de água doce. Eu digo uma água-viva gigante, ele diz um polvo venenoso e com 12 tentáculos. Eu digo uma vitória-régia carnívora, e ele não consegue pensar em nada, então eu digo que ganhei. Isso faz ele rir.

*

A água demora para baixar.

Quase três semanas, e ela ainda tá alta o suficiente para cobrir os pneus dos carros. Mas a comida tá quase acabando, então o Moisés e a Tainá avisam que vão fazer as compras. É sempre perigoso quando alguém sai, mas ao mesmo tempo não é uma novidade digna de alarde. Então eu tô deitada no meu quarto, fazendo nada, quando o Moisés se inclina para dentro, as mãos na porta.

Ele diz que vai sair, e pergunta se eu quero alguma coisa. Eu digo que quero um polvo venenoso para morrer logo, e ele balança a cabeça em negação, mas brinca que vai ver o que pode fazer. Ele não gosta quando eu falo sobre morrer, nenhum deles gosta. Mas pelo menos ele leva na brincadeira, e não briga comigo quando faço isso.

Eu me pergunto se a água não vai estragar o prédio. Não tenho noção de engenharia, mas me parece esquisito que ele possa ficar debaixo d'água por tantos dias e não derreter como se fosse de papel. Então eu imagino o prédio derretendo e todos nós caindo, como no filme com a casa de cera e os assassinos.

Pergunto pra ele, porque no mundo de antes ele estudava engenharia, e isso faz Moisés rir. Ele me diz que fazia engenharia de software, mas espera que o prédio não desabe, não. Então ele sai.

Eu espero alguns minutos, mas o prédio não derrete.

*

Se eu soubesse que era o fim eu não teria usado salto. Nem ido trabalhar, na verdade. Também não teria virado a noite anterior fazendo trabalhos da faculdade. Se eu soubesse que tudo ia acabar quando eu tinha vinte e dois anos recém completados, eu teria levado a vida de um jeito muito diferente.

Teria ficado em casa descansando e gastando todas as minhas economias com mordomias, saído com meus amigos, e assistido todos os filmes possíveis com o meu irmãozinho. Ele amava ir ao cinema.

É foda.

Eu acho que eu conseguiria lidar com a perda de todo mundo, mas quando eu penso que perdi ele, meu Deus, eu quero surtar.

E é mentira, é claro. Eu quero surtar com a perda de todo mundo. Quero explodir tudo o tempo inteiro, mas eu respiro fundo e me controlo porque eu assisti séries e filmes de zumbi o suficiente quando o mundo era normal para saber que ninguém sobrevive no apocalipse quando deixa os sentimentos tomarem conta.

O meu trabalho foi a merda do lugar mais improvável para sobreviver: o prédio feio e nem um pouco funcional de dois andares no centro da cidade e bem atrás de um shopping. Na verdade ele até tem sido bem funcional para os nossos propósitos, uma caixa de concreto sem janelas e com uma única porta de saída e entrada.

Eu fico tentando não enlouquecer. A porra do tempo todo. Podia ser pior, né? Ficar presa no prédio sem poder sair, sem comida de verdade, nem energia, nem ninguém que eu ame. Pelo menos aqui tem água e uma cama confortável.

Eu daria tudo para ver o meu irmão de novo, meu Deus

Eu trocaria tudo, o que quer que fosse preciso, só pra ver ele de novo. Nos primeiros dias eu disse que se o diabo quisesse fazer um acordo eu estava a todo ouvidos, mas é difícil propor um acordo à uma entidade quando você não acredita em nenhuma.

Às vezes eu consigo até sentir ele aqui comigo, o corpinho dele encolhido abraçado no meu nas noites frias. O cabelinho bagunçado, o rostinho inchado de sono, os dedinhos minúsculos... É nesses momentos que eu quero morrer mais do que tudo.

Quando o Lucas nasceu eu já tinha dezoito anos. Eu tinha certeza de que ganhar um irmão ia acabar comigo. E acabou, em parte. Ele chorava o tempo todo, dava um trabalho terrível, e meus pais se interessaram por ele ainda menos do que tinham se interessado por mim. Acho que eles sabiam que eu era idiota o suficiente pra criar ele sozinha, assim como tinha me criado sozinha, e só por isso levaram a gravidez adiante. Quando minha mãe me disse que estava grávida eu passei meses desejando que ela perdesse o bebê, por mais terrível que possa parecer. Quando ela não perdeu, eu decidi me mudar para a casa da Miranda. Estava com as malas prontas quando ela chegou do hospital com o bebê... E assim que eu vi ele eu decidi ficar.

Mas eu me apeguei nele muito mais rápido do que achei que iria, e depois me dediquei a tentar dar para ele tudo que eu não tive. Eu tinha dezoito anos de experiência do que não fazer como mãe, afinal. Eu dava toda a atenção, o tempo inteiro, e sempre ouvia o que quer que ele falasse. Eu fazia a comida que ele quisesse, assistia o mesmo filme dez vezes na semana porque ele ficava tão animado. Dava banho, alimentava, educava... Ele podia usar todas as minhas canetas, e ficava desenhando enquanto eu assistia videoaula ou fazia algum trabalho da faculdade. Chorava quando eu saia pra trabalhar, gostava de ficar abraçado comigo quando eu voltava.

A primeira palavra dele foi o meu nome. A primeira vez que ele andou, a primeira vez que falou, quando andou de bicicleta sem ajuda, quando começou a escola... Eu estava lá em todos os momentos. Eu troquei as fraldas e lavei as roupas de cama sujas, eu ensinei tudo, eu fiz tudo, todas malditas coisas que eu podia fazer eu fiz, sempre sabendo que não era o suficiente. Não era coincidência acharem sempre que ele era meu filho.

Eu amava demais aquele garoto.

Eu tenho certeza que ele está morto. Todos eles, na verdade. E eu até prefiro assim.

Mesmo que ele tivesse sobrevivido por algum milagre, tenho certeza que os meus pais não iam conseguir sobreviver no apocalipse zumbi. Eles sempre foram muito... eles. Presos demais no próprio mundo para verem até os próprios filhos, quem dirá o fim do mundo.

Eu não sinto falta deles. Eles foram terríveis e me fizeram sofrer, e eu não sinto falta deles. Quando falam sobre as suas famílias, eu fico calada, porque eu não tenho nada de bom para dizer. Quando contam histórias engraçadas ou fofas, situações familiares que fazem todos sorrirem, eu sorrio por educação mas me sinto vazia. Oca, como eu me senti em toda a minha vida familiar. Uma órfã com os pais vivos.

Mas existe o fato de que eu sinto falta deles sim, e eu chorei por eles, sim. Eram meus pais, mesmo que eles nunca tivessem agido como se fossem, mesmo que eu odiasse eles mais do que amava, mesmo que eu tivesse crescido sozinha como uma droga de Matilda que nunca teve poderes.

Enfim, em resumo: eu sinto falta de todos eles, mas eu quero morrer todas as vezes que eu penso no Lucas.

Outro dia eu estava conversando com a Bruna sobre o que a gente mais sentia falta. Eu nem pensei duas vezes em falar do meu irmão, e ela disse que sentia falta da namorada. Ela ficou um pouco surpresa, porque eu não costumo falar sobre a minha família, mas me conheceu o suficiente depois de todo esse tempo trancados juntos aqui pra não me forçar a falar mais. O José ouviu e disse que o que ele sentia mais falta era tomar banho de chuveiro, e a gente riu por um tempo, o que acabou elevando o espírito. Graças a deus temos um piadista entre nós, porque se dependesse de mim...

Eu preciso parar de pensar no Lucas. É isso, compartimentalizar meus sentimentos e parar de pensar nele. Será que funciona se eu fingir que ele nunca existiu?

Provavelmente não.


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