Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 16
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Passa muito tempo.

Passa tempo demais.

Existe muita coisa pra fazer, pra saber, pra redescobrir. Existem quatro anos da vida do Lucas que eu perdi, quatro anos de historias para a Miranda me colocar a par. Existem os momentos em que nenhum de nós diz nada, e a gente fica simplesmente na presença uns dos outros, eu ainda incrédula que eles estão vivos, eles ainda sem acreditar que eu ainda existo. 

E existe, é claro, o tempo de trabalhar na fazenda e conhecer as outras pessoas e plantar e colher e pescar e fazer a comida. Os anos no prédio foram basicamente o tédio e o medo e a paralização, porque não tinha para onde ir ou o que fazer, e eu acho que minha mente vai explodir com a quantidade de coisas novas e pessoas novas e a nova rotina tão movimentada.

Mas é bom. 

Poderia ser melhor. Seria melhor se ele... 

Poderia ser melhor.

Eu acordo cedo, depois de dormir a noite interia abraçada com eles, e saio do chalê onde meus irmãos moram. A fazenda onde os sobreviventes moram era um resort, com vários pequenos chalês espalhados ao redor da lagoa. Um pouco afastado fica o bangalô da cozinha e o deque, que foi por onde eu e as meninas chegamos com o Rafael. É tudo muito verde e muito azul, muito ensolarado e muito diferente. É estranho no começo. É a coisa mais estranha do mundo caminhar ao redor do lago, subir nas arvores para apanhar frutas, simplesmente existir fora do prédio, sentir os meus pés na terra e no mato, sentir o cheiro do verde e ver tanta cor. Mas eu faço um esforço.

No nosso chalê tem dois beliches, uma tv inutilizável e um banheiro. Tem um espelho no quarto e outro no banheiro, mas eu evito olhar muito pra mim mesma, porque a verdade é que eu não me reconheço no espelho. A Miranda cobre os dois com fronhas de travesseiro quando percebe como eu encaro o meu reflexo, e eu agradeço. Acho que as pessoas tem um pouco de medo de mim e das meninas, da nossa aparencia desnutrida e triste e cansada e traumatizada, e acho que a gente tem um pouco de medo, também.

A Maria e a Carol ficam no nosso chalê. É esquisito e desconfortável, estranho de um jeito que eu não achei que seria. Como se fosse um sonho esquisito onde todas as pessoas mais aleatórias possíveis acabaram misturadas, em um lugar que eu não conhecia. As pessoas são curiosas, então elas se aproximam aos poucos no decorrer dos dias porque querem saber tudo que nós vimos, o que aconteceu, como diabos a gente fez pra sobreviver. Quantos nós éramos, quem ficou pra trás, se existia mais alguém. Eu não quero falar sobre isso, sobre a Tainá e sobre a Ana e como elas morreram, sobre o José e a Bruna e como eles ficaram para trás, e só de pensar em ouvir o nome do Moisés eu quero chorar. Então deixo isso por conta delas. 

Eu não vou fingir, eu não vou tentar esquecer como fiz no prédio, porque isso não me fez bem. Mas eu vou me controlar e guardar as minhas emoções pra quando o Moisés chegar, porque eu preciso acreditar que ele vai chegar. Não ter esperanças no prédio acabou comigo, então eu me obrigo a ter esperanças agora. A presença da minha família me faz ter esperança, também.

Eu me ocupo com o Lucas e a Miranda e me adaptando à nova vida. A gente não se esgruda, trigêmeos siameses desde que eu cheguei. Algumas noites a gente até dorme espremidos um contra o outro, rindo e falando baixinho e contando histórias. É pra eles que eu consigo falar sobre os dias e as idas ao mercado e como o céu era bonito. Os banhos de chuva e as fogueiras, que eram tão raras. Ele parece tão mais velho e tão mais maduro, me olhando concentrado e com preocupação. O menino doce que eu conheci também transformado pelo apocalipse, mas em uma versão madura e empática, que eu imagino que ele teria sido no mundo real só quando fosse muito mais velho. Eu amaria ele independente da pessoa que ele tivesse se tornado, porque é isso que as mães fazem, mas não posso negar que é um alívio amar ele quando ele se tornou uma pessoa boa, inteligente e educada. Eu preciso me lembrar o tempo todo que ele não é um adulto, mas também não é o garotinho que eu deixei. Eu abraço tanto ele todos os dias que acho que ele vai ficar com vergonha, como às crianças mais velhas costumavam ficar, mas ele me abraça de volta e nunca, nunca se solta antes de mim.

É pra Miranda, que é mais velha e sempre soube de tudo, mesmo quando nenhuma de nós duas tinha maturidade pra lidar com a vida, que eu conto sobre os zumbis, o Luís e a Ana, sobre como nós assistimos a Tainá morrer e como a fome era ridícula e me deixava tonta, como a sujeira e a falta de janelas me fazia sufocar. É pra ela que eu falo sobre o Moisés, também. É no colo dela que eu choro, e é com ela que eu falo tanto até a minha garganta secar, tudo que eu deixei guardado por quatro anos.

E eu ouço o que ela tem a dizer também. Eu escuto as dores dela e seco as lágrimas dela e deixo ela falar sobre tudo. Sobre como foi difícil se adaptar, sobre como foi difícil chegar ali, sobre como foi o inferno na terra fugir do apocalipse logo que ele aconteceu, escapando dos zumbis na rua com o Lucas a tiracolo, sem saber se ia conseguir mas incapaz de deixar ele para trás. Ela não fala tudo. Eu sei que não, porque eu também não falo. Eu confio na Miranda com a minha vida, mas tem coisas que eu não consigo dizer. Eu não consigo falar sobre como  sangue das pessoas devoradas era vermelho ou sobre o som do corpo da Ana caindo no concreto, que eu ainda consigo escutar.

Eu só sei agradecer a qualquer divindade que exista por ela estar viva, por ter encontrado ela de novo, por tudo que ela fez pelo Lucas quando eu não existia.

Ela até me faz rir, debochando de mim por ter encontrado um namorado no meio do apocalipse. E me deixa envergonhada quando me pergunta os detalhes sórditos desse romance. Ela me faz gargalhar e eu só consigo pensar que nada mudou, apesar de tudo ter mudado. Quando ela me diz que ele vai chegar, que os sobreviventes vão atrás deles e, que se não quiserem ir, então eu e ela vamos e isso é uma certeza, eu acredito.

Eu vou aguentar até o Moisés chegar. Com eles do meu lado eu consigo aguentar. Eu só preciso que ele chegue. E se ele não chegar eu só preciso ir atrás dele. Rafael me promete que vai comigo, e ele sabe o caminho, então eu fico mais tranquila. Além disso, a comida aqui é tão absurdamente melhor e os exercícios são diários, então eu e as meninas viramos outras pessoas: fortes, bronzeadas, saudáveis.

Eu to distraida um dia, molhando os pés na água e pensando nos três que ficaram para trás quando o Lucas se senta do meu lado, colocando os pés na lagoa, e deita com a cabeça no meu colo.

Eu sinto uma paz tremenda toda vez que ele se aproxima, ele limpa o meu humor. Eu disse pra Miranda, outro dia, que nenhum dos cristais dela teria o efeito que ele tem em mim. Ela ficou feliz quando eu devolvi o quartzo rosa que me acompanhou no prédio, e agora ele fica na mesinha de cabeceira do quarto, junto com um ramo de manjericão que ela substitui toda semana, pra limpar o ambiente.

Ele me pergunta como é estar apaixonada, e é o meu irmãozinho que trocava as palavras e não sabia falar "bicicleta" me fazendo perguntas complexas que me fazem constatar, mais uma vez, como o tempo passou. Ele tem oito anos agora, o cabelo mais comprido que nunca, e usa uma roupa surrada muito maior do que ele. É a criança mais bonita do mundo.

Eu respondo que é bom. Que me deu esperança pra continuar vivendo no prédio. Ele me pergunta se eu sinto saudades do meu namorado, e eu digo que sim, muita. Ele diz que sente saudades dos nossos pais, que sentiu saudades de mim. Então me pergunta se eu acho que o Moisés vai gostar dele, e eu beijo a cabeça dele quando respondo que é claro que sim. Que ele vai até trazer um sorvete pra ele. Lucas ri, e a gente fica ali mais um pouco antes que a gente precise ir pra plantação pegar frutas pro café da manhã.

Eu quero tanto que o Moisés volte e conheça ele de verdade. Que ele venha pra nadar comigo no rio, comer as maçãs, tangerina, mamões e até abacate, e que ele ria e converse com os outros, conquistando todo mundo como sempre conquistou porque ninguém conseguia não gostar dele. Quero que a Miranda e o Lucas gostem dele. Quero que a gente saia pra pescar e ele me conte todas as história que eu já decorei enquanto a gente espera os peixes. Eu abraço Lucas apertado e me agarro nessa esperança. Ele vai chegar, e a gente vai fazer todas essas coisas.

*
As pessoas na fazenda não acham que tem outros sobreviventes. Várias pessoas chegaram no começo, mas antes de nós três chegarmos ninguém aparecia há mais de dois anos. Eles faziam grupos para procurar nas fazendas e casas próximas, mas pararam depois de um grupo não voltar e ser encontrado semanas depois, transformados em zumbis.

As pessoas na fazenda não são uma grande família feliz, mas são muito mais animados e conformados do que a gente era no prédio. Talvez porque fiquem muito ao ar livre, comam bem e tenha a companhia de mais pessoas. Nós finais de tarde eles fazem uma fogueira e ficam conversando, comendo o que sobrou do almoço. A Carol e a Maria se entrosam logo, elas chamam a atenção de todos porque a gente sobreviveu na pior das condições.
Elas saem do nosso chalé e nunca falam sobre os três que ficaram, então eu fico com raiva.

A Miranda me diz pra ignorar elas, que se elas quiserem falar comigo elas vão falar quando se sentirem prontas. Mas quando eu falo pra elas o nosso plano de voltar para o prédio e elas me olham, impassíveis, como se não adiantasse de nada e eu fosse a pessoa mais estúpida do mundo, eu só fico com mais raiva. Eu sei que elas tem medo de voltar. Quem não teria? Mas eles estavam lá sozinhos, vivendo sabe deus como, e é nossa obrigação ajudar eles a terem a mesma vida estupidamente confortável que todo mundo ali tá vivendo.

Quando a gente volta pro nosso chalé, eu chateada e os dois tomando as minhas dores, eu fico triste. Porque eles foram tão estúpidos, tão estúpidos. O Moisés me prometeu que não ia sair do meu lado, que ia ficar comigo até o fim, e então ele ficou pra trás. Miranda me abraça até eu dormir, me dizendo que vai ficar tudo bem, mas eu não consigo acreditar. Não naquela noite, não consigo acreditar. De manhã, ela e o Rafael me prometem que a gente vai sair nos próximos dias, porque já passou tempo suficiente e ele já terminou de reformar a canoa maior, onde vai caber todo mundo. O Lucas chora porque quer ir junto, mas eu digo pra ele que de jeito nenhum, e ele vai dormir emburrado.

Eu preferia morrer e levar todo mundo comigo antes de imaginar ele em perigo de novo.

*

A gente sai de madrugada, todos se despediram da gente na noite anterior, alguns esperançosos por mim e outros claramente sem acreditar. Alguns me olham com pena, também.

O Lucas chora muito, me pede pra não ir, mas eu preciso ir. E eu nunca deixaria ele ir comigo. Ele ainda está chorando quando acena pra gente do trapiche, e eu me odeio por deixar ele de novo, mas pelo menos eu sei que ele tá longe do perigo.

Minhas mãos tremem, eu estou nervosa, ansiosa, morrendo de medo, com frio. Rafael e a Miranda também estão com medo, e eu agradeço pelo vigésima vez por eles irem comigo. Pela vigésima vez, eles reviram os olhos e me dizem pra parar de besteira.

Nos três conseguimos chegar muito mais rápido do que na ida para a fazenda, porque os três conseguem remar com muito mais força e habilidade que na primeira vez. Nós chegamos quando o sol está nascendo e afastamos a canoa o suficiente para que a água não leve. Não tem zumbis por perto, pelo menos ainda não, mas nós três ainda olhamos nervosamente para os lados.

A gente corre pelo caminho, se escondendo dentro de carros vazios sempre que vemos alguma coisa. Meu coração vai sair pela boca, não só por causa da adrenalina mas porque não paro de pensar em Moisés. E se eu tiver voltado e ele ter morrido? Ter virado um zumbi? Não esteja mais aqui, tenha saído pra me procurar?

O Rafael diz que eu preciso respirar e me acalmar, ou ele vai dar meia volta e levar a gente embora. A Miranda resmunga mas concorda, e quando a gente sai do carro somos muito mais objetivos, focados em chegar logo.

A rua do prédio quase me faz parar, atônita, mas Rafael me puxa pelo braço e me obriga a continar a andar. Miranda é a primeira a subir no carro, e eu penso em todas as vezes que desejei que ela estivesse ali no predio comigo. Ela sobe pela janela como se tivesse passado a vida toda fazendo isso, e então me puxa pra cima enquanto Rafael observa a retaguarda.

O escritório continua exatamente igual, uma paisagem que eu nunca mais vou esquecer, não importa quanto tempo eu viva. Tudo está silencioso demais, vazio demais, e eu me sinto tão ansiosa que quero morrer. Tenho medo do que vou encontrar.

A Miranda não tem, porque ela grita e bate palmas como se estivesse na porta da casa de uma vizinha, e Rafael ri. A risada deles me tranquiliza um pouco, mas a falta de resposta aumenta o nervosismo. Eu quero chorar, porque nesse prédio vazio em uma cidade fantasmo o único motivo pra nenhum dos três nos responderem é eles estarem mortos. 

Mas então, logo quando eu acho que a ida até ali foi inútil, os meninos aparecem no corredor. Magros, pálidos, cansados, mas vivos. O José me olha confuso, como se eu fosse um fantasma, e eu posso ouvir a voz da Bruna no quarto, perguntando alguma coisa. Mas o meu fico é no Moisés e em como ele sorri quando me vê, como se eu fosse uma miragem. Eu nunca fiquei tão feliz em olhar pra ele. 

Quando a gente se abraça, nenhum dos dois fala nada. Eu não presto atenção na conversa dos outros, nas palavras confusas do José ou no tom tranquilizador na voz da Miranda, porque eu sei que vai ficar tudo bem. Na minha mente eu posso ver, em algumas semanas, ele e o Lucas jogando futebol na fazenda.  

Eu digo no ouvido dele que, se ele ficar para trás dessa vez, eu mesma vou jogar ele para os zumbis. Ele responde que nunca mais vai ficar longe de mim.

*

Na fazenda, todo mundo fica curioso quando eles chegam. Não tão curiosos quanto ficaram quando a gente chegou, porque o impacto foi maior, mas curiosos o suficiente. A Maria e a Carol choram, e a minha raiva delas passa porque eles estão bem e elas só estavam com medo. Medo de voltar, medo de escontrar eles mortos, medo de tudo dar errado. 

Não cabe todo mundo no nosso chalé, mas a gente se aperta um pouco pra poder ficar de olho nos três por alguns dias. A Bruna ainda manca um pouco quando anda, mas a gente consegue improvisar uma begala pra ela possa se movimentar melhor pela fazenda. A Miranda fica de olho nos meninos quando eu preciso sair, nós duas revezando. O Lucas também ajuda, um pouco ciumento do Moisés no começo, mas não demora muito pro Moisés conquistar ele também, como sempre conquistou todo mundo: com suas histórias mirabolantes, as piadas bobas, o bom humor e a confiança que só ele tinha, a segurança que só ele passava. É a imagem do Lucas rindo de algo que ele falou que faz com que eu me apaixone de novo por ele, pela milésima vez.

Eu durmo com ele todas as noites, com medo que ele desapareça. A Miranda me provoca no começo, dizendo que eu troquei ela, mas ela não se importa realmente. Ela fica mais do que feliz por mim. 

De manhã, bem cedo, eu estou na porta do chalé e nenhum deles me viu. 

A Bruna estava na cozinha com as meninas, e o Lucas ficou correndo perto do lago enquanto voltei pro chalé pra levar o café da manhã dos três: uma maçã para cada um e uma garrafa de água de coco.

Moisés está sentando no beliche de baixo, José dormindo no de cima, e a Miranda está de pé perto da janela, olhando para o José com os braços cruzados e uma expressão distraída e um pouco sonhadora.  Moisés ri, provocando ela. Ele pergunta se ela quer a benção dele pra casar com o José, e Miranda fica tão envergonhada que é uma coisa inédita. Ela belisca o braço do meu namorado, mandando ele calar a boca, e ele meio grita meio ri enquanto esfrega a pele já vermelha. Um som alto, uma risada que eu não escutava a algum tempo. 

A vida foi uma merda por muito tempo, mas não mais. Eu estou viva, a Miranda, o Lucas, e até a maioria dos oito do prédio sobreviveram. E muitas pessoas que eu tô só começando a conhecer aqui na fazenda. As coisas poderiam ter sido muito piores do que foram, o que não é exatamente um alento, mas é um alento.

Eu tenho a minha família, eu tenhos os meus amigos, e eu não tenho como ter certeza que vai ficar tudo bem pra sempre, mas eu tenho certeza que o pior ficou para trás.

A minha irmã faz o meu namorado rir, e isso me faz rir também quando eu entro no quarto, me sentando ao lado dele. Ele me beija, e vai ficar tudo bem. 


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Notas finais do capítulo

Depois de pedidos por um final feliz

Como eu falei nas considerações finais a ideia era deixar em aberto o final, então vamos considerar esse aqui como não-canon, ta bom? Assim cada um pode imaginar o que quiser, mas quem quiser imaginar um final feliz vai ter essa ajudinha.





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