Desarmonia: Os 4 deuses da Harmonia Livro 1 escrita por Alice P Shadow


Capítulo 11
Capítulo 10




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Opala nunca odiou tanto uma manhã como aquela. Toda aquela felicidade, sentimento de pertencimento e alegria por estar ali, simplesmente foi embora. Não pelo brasão no céu. Não pela sensação esmagadora que ficou em seu coração a noite toda. Mas porque o Seletor estava insuportável. 

Quando ele entrou pelos portões do castelo, Opala correu até ele. Ainda estava acordada, assustada e principalmente: preocupada com o príncipe. Ele havia ficado na presença do símbolo assustador, provavelmente sentindo todas aquelas coisas ruins que os guardas a explicaram que eram causadas por magia.

— Como você está? – Correu para andar ao seu lado. A manhã estava fria, os finos raios de sol ainda começando a banhar a paisagem. – Majestade?

Ele parou de andar e a olhou por longos segundos. Opala não entendeu. A expressão dele estava séria. Seu maxilar travado e a postura um tanto quanto arrogante. Ele… a olhava com desprezo?

— Deveria estar em seus aposentos. Não saia sem permissão.

— Disseram que temos liberdade para andar pelo castelo.

— Não quero ver você causando problemas, Ecclair. – Ele bufou. – Saia da minha frente e vá dormir.

E então, ele desviou dela e saiu corredores adentro. Ela ficou parada, chocada, sem entender aquela reação. O que tinha acontecido com o cara legal que a levou junto de Lynn na noite anterior para a festa? “Isso tem algo a ver com o brasão”.

O problema é que não melhorou. No café da manhã, ela e Lynn discutiram com ele. O príncipe as ignorava, ou então, quando falava algo, era ríspido e evasivo. Ele fazia de tudo pra demonstrar o quando desagradava da presença delas.

— Se me dão licença, preciso fazer algo de útil e parar de perder tempo com mundanas como vocês. – Kouris resmungou e se levantou de forma agressiva. Saiu da sala de refeições poucos segundos depois, deixando Opala e Lynn a sós.

— Isso é efeito daquele negócio no céu?

— Bom, eu e você não nos tornamos duas babacas da noite pro dia. – Lynn rebateu, brava, enquanto bebia seu suco de laranja. – Acho que ele só é um imbecil mesmo.

— Ele não estava assim ontem.

— Talvez hoje seja o normal dele. Ontem ele parecia legal demais. Se esforçava demais. – A garota colocou um dos cachos atrás da orelha e bufou. Encarava seu prato agora quase vazio. – Queria socar aquele rosto dele e aumentar aquela cicatriz.

— Se eu soubesse lutar, te ajudava nessa.

Lynn tamborilou os dedos na mesa e se levantou.

— Vem, vamos socar umas coisas.

— Mas, o Seletor pediu pra gente não sair sem a permissão dele.

— Não vamos sair. Ele disse pra permanecer no castelo. O campo de treinamento fica no castelo, só que na parte externa. Ele não especificou que não podia lá.

— Na verdade, eu tenho quase certeza que ele…

— Opala, vem logo.

E ela foi meio a contragosto. Aquilo era provocar o Seletor, e, definitivamente, desencadear uma versão dele pior do que a que já estava, não era a intenção da garota. Mas, também não havia muito o que fazer. Queria explorar o castelo.

— Como sabe o caminho?

— Eu vim ontem. Quando você tava tomando banho.

— Achei que estivesse no seu quarto.

— Ah, eu mal entrei nele. Só quando fui me arrumar pra sairmos de noite. 

— Você… parece ter se adaptado bem aqui. – Opala comentou. Se sentia feliz por isso. Não era a única a se sentir bem lá.

— Não, não me adaptei. – Fiori abriu o portão grande de madeira e as duas começaram a andar em cima de uma areia bem clarinha. – Mas eu tenho algumas coisas pra fazer aqui e não posso perder tempo.

— Acho que nunca perguntei… por que queria participar da Troca, Lynn?

— Falamos lá dentro.

Elas andaram mais alguns minutos pela areia. Passaram por homens e mulheres treinando, se aquecendo e correndo para começar o dia. A maioria treinava em grupos, mas se via muitas duplas também. Alguns as cumprimentavam. O sol da manhã estava agora iluminando todo o espaço, e um calor gostoso aquecia o corpo das garotas. 

Depois de um pouco de caminhada, chegaram numa área coberta. As paredes da construção eram de pedra e a porta de madeira e ferro, reforçada com aço. Elas entraram e podiam ouvir o som de espadas e armas se chocando. Guardas de patente mais elevada treinavam ali e se especializavam. O interior era dividido em pequenas áreas de treinamento, cada uma com uma parede repleta de armas. Também tinha banheiro com ducha, um pequeno espaço com comida e mesinhas e um escritório para reuniões.

— Eu tenho algumas coisas pra resolver. – Lynn sussurrou enquanto passavam por algumas pessoas. A decoração do local era de tons metálicos puxados para o prata e preto. A luz das janelas deixava o ambiente bem iluminado. – De família. Fui treinada desde pequena pra vir pra cá.

— Por quê?

— Minha prima. Ela é bem mais velha que eu, acho que uns dez anos. Quando eu tinha oito, ela se inscreveu e foi escolhida. Ela não era do nosso vilarejo, sabe? Adorava outro deus. E um deus que realmente segue as regras, não o imbecil do nosso.

— Outro mago, no caso.

— Isso. – Fiori concordou. Ainda não havia se acostumado com o fato de deuses não existirem. – Mas ela morreu. Ao menos, foi isso o que foi comunicado a nossa família. Meus pais não acreditaram e nem meus tios. Eles queriam que eu fosse escolhida e resgatasse ela.

— Mas não sabe se ela está viva. – Opala tentava acompanhar o raciocínio. – E nem em qual dos quatro Regnum.

— Exato. Foi um tiro no escuro da minha família. Mas eles me prepararam pra tudo. Me ensinaram a lutar se fosse necessário. Me ensinaram etiqueta, se fosse preciso ser diplomata. Queriam que eu estivesse preparada pra qualquer situação.

— E como planeja começar essa busca?

— Sendo sincera, eu não faço ideia. Eu tinha esperanças de pedir pro nosso deus patrono. Mago. Enfim, eu queria pedir pra ele. Ia esperar termos mais intimidade pra isso, só que se/ ele realmente for a pessoa do café da manhã, acho que terei que me virar sozinha. – Lynn entrou em uma das pequenas arenas de treinamento e pegou uma espada confortável o bastante para sua mão. – Vem, treina comigo.

— Não íamos socar alguma coisa? – Ecclair caminhou até a parede com as armas, os dedos percorrendo entre o cabo das adagas. No final, pegou uma espada assim como Lynn. – Isso vai ser catastrófico.

— Eu pego leve com você, não se preocupe.

Opala empunhou a espada de forma insegura e desajeitada, enquanto Lynn era o exemplo da perfeita postura e determinação. Na pequena arena, Fiori andava de maneira confiante em volta da ruiva, a avaliando.

— Sabe, por mais que não saiba lutar, sua postura podia estar melhor.

Ela bateu com a espada, ainda na bainha, nas costas de Opala, a obrigando a se ajeitar e a segurar no cabo da espada com mais força. Na verdade, com força até demais. Sem um aviso prévio, a cacheada avançou com golpes rápidos, cada movimento um eco da disciplina rígida que moldou sua habilidade ao longo dos anos. Do outro lado, estava Opala tentando acompanhar de forma inexperiente. 

Era uma luta injusta e desigual. Apesar disso, Ecclair começou a captar alguns padrões – relativamente poucos, mas já era algo. Seus desvios começaram a ter mais confiança, e ela até mesmo chegou a bloquear um ataque. Lynn sorriu quando isso aconteceu. Um sorriso orgulhoso, em sinal silencioso de aprovação.

Golpes intensos cortam o ar enquanto Fiori guia a luta com destreza. Entre os movimentos, palavras ásperas de instrução ecoam.

— Você precisa se concentrar! Vamos, conseguiu me bloquear uma vez. – Seu tom era de ordem. Opala resmungou. A diferença de habilidade era marcante demais.

— Eu não sou boa nisso.

— Não significa que não pode aprender. – Lynn a derrubou no chão, a espada embainhada apontada para o pescoço da colega e o pé pousando suavemente na sua barriga, sem a prender de verdade. – Estaria morta num conflito de verdade.

— Eu não entraria num conflito de verdade, só pra começar. – Opala respirava ofegante. Seu rosto estava vermelho pela atividade intensa e podia sentir o coração na boca. – Mas foi uma boa luta, né?

— Não. – Lynn riu e afastou a espada, estendendo o braço, que Opala segurou no mesmo instante e o usou de impulso para se levantar. – Mas ainda vou fazer você ao menos conseguir se defender. Se realmente tiver uma guerra como escutamos dos guardas na madrugada, aqui não será seguro.

— Lynn, se tiver uma guerra, eu sou a primeira a morrer. 

— E isso não é motivo pra se orgulhar.

Opala respirou fundo. Não era uma guerreira e não queria ser uma. Admirava Lynn por ter aquela determinação toda, mas, não era algo que se interessava. “O ponto é que talvez eu não tenha escolha”. No final, sabia que teria que aprender uma coisa ou outra. No Astral, havia sido praticamente inútil contra o monstro.

— Desculpa, acho que peguei pesado com você. – Lynn suspirou e limpou uma gota de suor que escorria da sua testa. Ao menos Opala tinha a feito suar um pouco. – Você não precisa aprender de um dia pro outro. Vamos com calma, sim? E nem precisa ser comigo. Tenho certeza que aqui tem instrutores melhores.

— Definitivamente prefiro com você. Se não for te atrapalhar, claro.

— Não vai. – Um sorriso estampou o rosto da cacheada. – Só não pode ser na hora da minha aula, claro.

— Você vai ter aulas?

— Uhum, todo dia pela tarde. Com os novatos da guarda. Acho que estou um nível acima, mas, não me conhecem ainda. De toda forma, estou feliz por terem me aceitado. Disseram que são poucos do Mundo Abaixo que escolhem a guarda. – As duas guardaram as espadas de onde as tiraram – Aliás, não esbarrei com nenhuma garota dos últimos anos até agora.

— É verdade.

As duas se olharam por alguns segundos. Tinham uma nova missão para aquela manhã.

 

─━━━━━━⊱✿⊰━━━━━━─

Não foi difícil achar, depois de se informarem, onde as dez outras garotas de Bonavida ficavam. Opala e Lynn seguiram pelo mesmo caminho de seus quartos e só então repararam nas outras portas do mesmo corredor. Provavelmente cada dupla dos últimos cinco anos estavam ali. Bem no final daquele caminho, tinha uma porta de madeira escura com detalhes em ouro. Ecclair girou a maçaneta e arregalou os olhos com a imensidão daquela sala.

Uma parte do teto, na área mais central, era feita inteiramente de vidro e arredondado, como uma cúpula. Isso permitia que a iluminação natural invadisse cada canto da sala. De noite seria possível observar as estrelas. O salão comunal das escolhidas na Troca era tão imenso, que tinha pequenas áreas separadas. Ao centro, havia um desnível para um espaço com sofás, um tapete perfeitamente adornado com padrões geométricos, poltronas, e uma mesinha que flutuava. Abaixo dela, era possível ver uma chama que aquecia o ambiente, sem queimar nenhum móvel.

Opala desceu dois degraus do desnível e se sentou em um dos sofás, maravilhada. Uma das paredes tinha quadros. No canto, um cavalete e um armário de tintas esperava por sua dona. Provavelmente alguma das garotas pintava; Em outro espaço, tinha um piano, com partituras jogadas e algumas no lixo. Era possível identificar uma área para leitura, próxima à janela mais afastada que dava para uma varanda. Quando mais ela observava, mais itens encontrava. 

— Isso tá horrível. – Ouviram vozes mais afastadas, e duas garotas apareceram contornando o caminho de uma parede, rindo, enquanto seguravam bandejas com biscoitos queimados. – Nunca mais, eu repito, nunca mais vamos tentar fazer isso de novo.

— Vai, não é tão péssimo assim. – A de cabelo castanho tentou se defender e mordeu um dos biscoitos. Ela precisou segurar a careta. – Dá pra engolir. Vamos, os biscoitos estão bonitinhos. Eles só… tiveram um encontro íntimo com o forno.

A sala comunical era maior ainda, Opala concluiu, afinal, tinha até uma cozinha em algum lugar.

— Podemos falar que são gourmet. Se falarem que ficou ruim, é só dizer que apenas um paladar refinado saberia apreciar uma obra prima como essa. – A outra garota ponderou enquanto tirava um dos aventais coloridos. – E posso afirmar que o meu não é refinado. Esse negócio está desastroso de ruim.

As duas riram, e, somente quando já estavam passando pelo piano que notaram a presença de Opala e Lynn. Os olhos da mais alta, com o cabelo castanho ondulado e pele bronzeada, brilharam quando viu Lynn.

— Meu Deus, você foi escolhida mesmo! – Ela correu até Fiori e a abraçou forte. Lynn pareceu meio desconfortável com o abraço e deu um sorriso meio torto, correspondendo ao abraço não tão forte quanto a outra.

— Calíope. Quanto tempo… 

Depois disso, Calíope começou a tagarelar com Lynn, que olhava pra Opala pedindo socorro. Ela, por sua vez, riu e se levantou, caminhando até a outra garota que continuava próxima ao piano, tímida com a presença de mais pessoas. 

— Olá. – O sorriso de Ecclair era confortável, e seu olhar passava confiança. – Meu nome é Opala Ecclair. Sou de Bonavida também.

— E-eu… – Ela limpou a garganta, endireitando a postura. – Desculpe, não sou muito boa falando com pessoas novas. – Sua voz mal saía da boca. Era diferente do tom alto que usava com Calíope. – Sou Helena. Acho que eu me lembro de você. É a filha da Evelyn, não é?

— Eu mesma. – Opala não se lembrava da garota. O cabelo era preto, liso e curtinho, e ela era quase do tamanho de Calíope, só um pouco mais baixa. – Desculpe, acho que não me lembro de você.

— Nunca nos falamos. – Se apressou em dizer, os olhos focando nos bolinhos em cima do piano. Ela começou a mexer neles, tirando um pouco das bordas queimadas. Prestar a atenção em algo e não olhar para Opala a ajudava a falar. – Mas eu te vi algumas vezes.

— Bom, muito prazer em te conhecer então. Eu… fico feliz de ter gente conhecida por aqui. Mesmo que não sejamos exatamente conhecidas.

— Vai se enturmar rápido. – Garantiu. – Se eu consegui, você consegue. O que… – Ela parou de falar por um segundo. Ponderava se deveria puxar assunto. – O que achou daqui até agora?

— Caótico, na verdade. Tudo parece bem num segundo, e, no outro, parece que o mundo vira de ponta cabeça.

— O brasão… Dá pra ver ele da janela. Você estava lá quando apareceu, não é? – Opala assentiu, respirando fundo. – Me disseram que foi assustador.

— Era como se todos os meus medos me inundassem de um segundo para o outro. – A voz da garota ficou mais baixa, as memórias tentando ficar em ordem para rever os acontecimentos da noite passada. – Eu estava radiante. Em seguida, meus olhos estavam fechados em dor. Os abri aterrorizada. Não sabia o que fazer e tentei implorar por ajuda, mas minha voz não saía. Meu pulso acelerou. E eu senti… Eu senti como se tudo fosse dar errado. Como se a morte iminente viesse me buscar. E aquilo me sufocou, como se apertasse meu pescoço.

— Era magia?

— Os guardas disseram que sim quando ficamos estabilizadas. Lynn e eu passamos duas horas na enfermaria. Precisaram nos medicar com alguns calmantes. Os que estavam com a gente tomaram doses menores do remédio. Provavelmente eram treinados para essa situação.

— E Mark? 

— O Seletor? – Ecclair respirou fundo. – Mudou de um dia para o outro. Ele parecia… encantador. Idiota da minha parte pensar isso. Virei a noite preocupada dele não voltar e o babaca me tratou como merda. Lynn também.

— Já? – Helena começou a empilhar os bolinhos. Não se preocupava se caíssem já que não iria comê-los mesmo. – Mark sempre tenta se aproximar das quem ele escolhe. Tenta fazer uma amizade. Não consegue, e passa a nos ignorar como se fôssemos perda de tempo. Como se não suportasse olhar pra gente.

— Bom, dessa vez ele nem esperou pra tentar ser nosso amigo. Estou tentando pensar positivo e imaginar que é por conta da ameaça da guerra.

— Boa sorte com o pensamento positivo então.


─━━━━━━⊱✿⊰━━━━━━─

 

Quando o relógio marcou próximo da hora do almoço, Opala foi para o jardim completamente sem fome. Ainda estava cheia do café da manhã reforçado e provavelmente só comeria de novo no meio da tarde. Sendo assim, aproveitou que não precisaria aguentar a presença de Mark à mesa e se dirigiu até o banco acolchoado que ficava de frente para uma fonte. E ela ficou ali em silêncio, apenas observando a água e sentindo o sol aquecer sua pele. 

Por um segundo, ela se permitiu fechar os olhos e respirar. Mas, assim como quando tentou dormir durante aquela madrugada, o sentimento de desespero retornou para a assombrar. Rapidamente, seus olhos se abriram e tentou controlar o ritmo acelerado da respiração. Ainda tinha flashes das gotas vermelhas saindo do escudo como gotas de sangue. Era como se sentisse na própria boca o gosto de ferro. Como se o sangue fosse o seu.

Ela deslizou a mão sobre a marca da rosa em seu braço. Por algum motivo, aquilo a acalmava. Poderia ser o símbolo que a condenava ali, mas, era um lembrete que sacrifícios foram feitos. Sua mãe por ela. Ela por sua mãe. De alguma forma, aquela quase-tatuagem a fazia se sentir próxima de quem amava mais que tudo nesse mundo.

— Vai se queimar nesse sol.

Devagar, ela viu Mark saindo do banco do outro lado e caminhando lentamente, contornando a fonte com elegância. Suas tranças estavam soltas e ele tinha leves olheiras em baixo dos olhos. Vestia uma roupa preta com detalhes verde metálico que moldava seu corpo de uma forma quase que indecente. Se Opala não estivesse tão brava, teria ficado sem ar. Ou talvez ela tenha ficado mesmo assim. Era injuto um homem ser tão bonito assim. 

— A personalidade mudou de novo?

— Estou apenas te dando um aviso. Não quero você incomodando a enfermagem por descuido idiota. – Seu tom era grosseiro enquanto ajeitava uma das suas correntes que adornava o pescoço. – Seu nariz já está vermelho e nem ficou muito tempo aqui.

Opala revirou os olhos. A tentativa de Mark a insultar como forma de disfarçar a preocupação era o que mais a irritava. Se fosse pra a ofender, ao menos queria que fosse sincero. Aquilo era vergonhoso. E patético.

— Você é realmente insuportável. – Ela decidiu entrar no jogo e um brilho diferente percorreu pelos olhos verde-esmeralda do Seletor, o que a fez sorrir. – Que foi, achou que só você poderia destilar insulto por aí?

— Sou um príncipe.

— Não o meu. Sabe, eu servia um deus. Não um mago. 

— Você poderia ser presa por falar uma coisa dessas, sabia? Te digo que temos selas que te faria implorar por misericórdia.

— Alteza, – Ela começou, um sorriso cínico no rosto que nem mesmo sabia que era capaz de dar. – se não percebeu ainda, teoricamente eu já estou presa. Me mudar de uma prisão pra outra não vai me fazer implorar por ajuda. Porque eu sei que não posso ser ajudada. E eu aceito isso. Irei conviver com essa fato até o dia do meu último suspiro e eu não vou reclamar. Foi uma escolha minha. Responsabilidade minha. E eu arco com as minhas decisões.

Opala sentiu o olhar dele sobre si. Era demorado. Como se enxergasse além dela. Podia não saber o que se passava na cabeça dele, mas sabia que era algo pessoal, que se relacionava com ele mesmo. Ele respirou fundo e olhou para o céu. Fechou os olhos por longos segundos e depois voltou a focar o olhar no dela. 

— Você e Fiori virão comigo para uma reunião. Não quero que falem. Apenas escutem. 

— Minha agenda do dia está livre mesmo.

Ela deu de ombros e seguiu o príncipe para dentro do castelo. Encontraram Lynn almoçando sozinha, com a cara fechada – claramente devido a conversa com Calíope que sugou qualquer habilidade social da garota – e se dirigiram para o andar de cima, até uma sala com uma porta de madeira vermelha.

Opala se sentou em uma das poltronas, enquanto Fiori permaneceu em pé, encostada na parede. O Seletor, ou melhor, Mark, andou até uma mesa de centro e puxou uma folha de árvore, seca e marrom, de dentro de uma gaveta. Ao colocar a folha no centro do móvel, ela se expandiu até formar um mapa que cobria toda a superfície. A garota esticou um pouco o pescoço para ver mais detalhes. Havia quatro porções de terra separadas pelo mar. Reparou primeiro no símbolo de uma árvore a Oeste, que ela identificou sendo de Kouris, porque havia estandartes pelo castelo todo com aquela árvore; ao Norte, havia uma bússola sendo abraçada por uma águia, com as penas da sua cauda se alastrando para os lados como faixas de cetim ao vento. Também percebeu no Sul um escudo em forma oval com as pontas superior e inferior afiadas. Dentro, tinha uma flor de lótus sendo atravessada por trás por uma lança com inscrições que ela não sabia ler. Ao redor, pequenas vinhas e cachos de uva envolviam a borda repleta de arabescos. Por fim, ao Leste, ela viu o brasão que ainda estava estampado no céu de Kouris. O escudo de Reyes-Regnum.

A imagem a deu calafrios.

— É uma reunião para falarmos da ameaça de guerra. – Fiori interrompeu os pensamentos de Opala. Também havia avaliado o mapa. – Por que nós duas estamos aqui?

— Quero que escutem. Aprendam. Terão que fazer algo enquanto permanecem nesse castelo. – O Seletor respondeu sem tirar os olhos do mapa. Sua mão deslizava suavemente pela superfície do próprio reino. – Fiori assumirá um lugar na guarda pelo que ouvi nos corredores. Ainda como novata, mas já é algo. Como Escolhida na Troca desse ano, você tem serviços a serem prestados nos próximos dois ciclos solares. Se tiver uma guerra, entrará conosco. E quero que esteja a frente quando ficar pronta. Por isso, preciso que fique pronta.

Lynn tirou uma mecha de cabelo da frente do rosto e olhou para Mark com seriedade. Opala não saberia dizer o que ela havia pensado daquilo.

— E eu?

— Ainda vou achar uma utilidade pra você, Opala. – Foi tudo que ele comentou, o que a fez revirar os olhos.

De toda maneira, também não sabia como poderia ser útil num momento como aquele. Tocar piano para ele dormir provavelmente não ajudaria muito numa possível situação de guerra.

— Com quem será essa reunião?

— O nome dele é Axel. Um ladrão aqui do reino. Tenho monitorado de perto os movimentos dele desde o ano passado quando ele roubou um visitante importante de Bragi-Regnum numa celebração numa mansão próxima do castelo e saiu impune.

— E não o prendeu?

— Não. Eu não gostava do cara que ele roubou. Mas as habilidades dele me chamaram atenção. Ele se infiltrou na cara de todos como um violinista. A atenção de todos estava nele a noite toda, e mesmo assim, ele roubou. Era como magia, mas sem magia. – Ele estalou a língua, admirado ao se lembrar daquela noite. – E esse tipo de habilidade é o que precisamos pra roubar uma coisa de Orion. Fora que ele foi preso esses dias e escapou em menos de uma semana. Ninguém nunca havia escapado daqui.

— Desculpe, acho que me perdi. – Opala tossiu – Vai deixar o cara do brasão mais puto ainda?

— Estou protegendo meu amigo de morrer. Vocês mortais não entenderiam.

— Ele acha que a gente não tem amigos.

— E vocês têm, Fiori? – O olhar de Mark era como uma chama. – Do tipo que se sacrificariam sem pensar duas vezes? Que confiariam sua vida mesmo que significasse perder tudo?

O silêncio das duas era a resposta.

— Nós quatro temos uma ligação impossível de ser comprrendida por vocês do Mundo Abaixo. Agora somos três. E eu não quero esse número sendo reduzido mais ainda. – Ele parecia cansado. Como se falar aquelas palavras mutilassem seu coração. – Vou colocar juízo na cabeça dele. E pra isso, preciso que o ladrão roube o Coração da espada de Orion. Se ele ficar sem ela, posso barganhar. Ele não vai atacar meu reino sem o Coração. Só se ele for maluco. E aí posso negociar uma conversa em troca do item ou… morrer tentando.

— Isso é burrice.

— Insano.

— Calem a boca. – Sua voz agora tinha raiva. Ele não via outra saída. Era o seu plano. Para Mark, era a única forma de salvar Orion ou dar um fim a sua própria vida miserável de forma digna. Pelo seu amigo e pelo seu reino. 

Mas Opala não sabia disso. Então o achava tolo, burro e estúpido. 

— Não achem que tenho sangue de barata. Quero proteger Orion, sim. Mas também quero que ele pague pelo que fez meu reino sentir ontem. Só não acho que a aniquilação dele seja a resposta correta.

— Ele nos chama aqui para calar a boca. – Lynn resmungou. – Tudo bem, se mate então nesse plano, Majestade.

A porta se abriu. Um homem jovem entrou acorrentado junto de uma guarda. Ele tinha o cabelo castanho, ondulado e com o começo do que pareciam ser cachos mal cuidados. Ele vestia uma roupa simples, fornecida pelo castelo. Mas toda sua aparência quase inocente e doce era quebrada por seus olhos. Ferozes. Ele observava cada canto da sala. Cada uma das pessoas ali como se pudesse memorizar até mesmo o ritmo da respiração de cada um. Enquanto Opala se sentia claramente intimidada, Mark pareceu o ignorar e ainda olhava puto para Lynn.

— Cale. A. Porra. Da. Boca. Ou saia da merda dessa sala. – Ela não moveu um centímetro do seu pé, mas ergueu a sobrancelha e levantou o queixo, como se o desafiasse. – Axel, bem-vindo.

— Não me sinto muito bem recebido com as correntes e tudo mais, mas agradeço a tentativa. Você é um doce, eu diria.

O deboche na voz do ladrão fez Opala ser obrigada a segurar um sorriso. Seu olhar foi direto para Lynn, mas ela não tirava os olhos de Mark. Ecclair se perguntou em quantas formas de matar o príncipe a guerreira pensava nesse momento.

— Vamos direto ao ponto. – Ele ignorou o comentário. – Como sabe, pelo incidente de ontem, Reyes-Regnum está nos ameaçando. Sendo assim, eu montei um plano que-

— É burro, idiota, e vai matar todos nós. – Fiori comentou, sem nem desviar o olhar quando Mark a fulminou. – Apenas sou sincera, Majestade.

E nos minutos seguintes, Opala teve que aguentar uma discussão interminável entre o príncipe e sua colega de quarto. Ela apenas afundou na poltrona e implorou aos deuses que aquilo acabasse.

Mas aí se lembrou de que eles não existiam. E que seu problema era justamente quem ela um dia ela achou ser um.


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