Antes Que Fosse escrita por Lotte e Ysayo


Capítulo 2
Capítulo 01




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Tirar a tinta da pele e do cabelo não era uma atividade difícil, mas demandou algum tempo para que Chevrin não deixasse que nenhuma mancha ficasse esquecida. Ao estar limpo, só precisou se arrumar com roupas menos informais e descer as escadas de casa com alguma pressa. No primeiro andar, não passou sem dar explicações rápidas sobre não almoçar com a família – porque obviamente a sobrinha não havia saído em silêncio –, mas sua aparente pressa fez com que os parentes não o prendessem por muito mais tempo do que o necessário.

Do lado de fora, Benjamin aparatou para o destino mais próximo e seguro: o Square Barye, um parque municipal perto da Pont de Sully que atravessava o Rio Sena. De lá, andou por quase cinco minutos até parar na Quai de la Tournelle, exatamente em frente ao restaurante indicado na carta de Demetria. Primeiro ele olhou as horas no relógio – estava estranhamente atrasado –, depois procurou ao redor por qualquer pessoa que parecesse minimamente familiar, mas não achou.

"Onde ela está? Mais atrasada que eu, talvez?", o francês se perguntava em pensamento.

Esperar se tornou a única opção, então Chevrin o fez até que começou a parecer que Demetria havia encontrado outra companhia e esquecido de avisar ou então ido embora antes que chegasse. Era isso ou quando ela escreveu "estarei no La Tour d'Argent", queria dizer, literalmente dentro do La Tour d'Argent. Meio cético, Chevrin resolveu entrar no restaurante e, para sua surpresa, não foi muito difícil identificar uma loira se enrolando entre francês e inglês logo na recepção. Mesmo que involuntariamente, Benjamin começou a entender a situação antes mesmo de se aproximar.

━ Reservación? Ah, reserva! No, no reservación ━ Demetria falava com um sorriso, o forte sotaque americano impossibilitando a compreensão das palavras, não que estas tivessem sido corretamente pronunciadas.

━ Só disponibilizamos mesa mediante reserva... ━ A recepcionista ergueu uma sobrancelha e continuou na língua nativa, fazendo Howard piscar pelo menos duas vezes.

━ Desolé, fala anglés? ━ Demetria deu outro sorriso amarelo.

━ Sem reserva, sem mesa, senhora. ━ A mulher respondeu, dessa vez em inglês, para animação imediata de Demetria.

━ Obrigada! ━ E então, a loira voltou a si. ━ Não, espera! Só consigo mesa com reserva? Mas... Tem um monte de mesa vazia ali ━ Demetria apontou para algumas mesas no salão, possíveis de serem vistas de onde estavam ━, aposto que você consegue uma pra mim.

━ Sem reserva, sem mesa, senhora ━ repetiu a recepcionista, exatamente como da última vez, propositalmente.

━ Tudo bem, se é assim.... Eu posso reservar agora ━ a loira, já impaciente, retirou o celular da bolsa.

Antes que pudesse sequer desbloquear o aparelho, Demetria sentiu o peso do toque de alguém em seu ombro. Torceu que fosse o gerente pra resolver o problema, mas percebeu ao se virar que o rosto era muito conhecido pra ser mais um funcionário do restaurante. Apesar dos poucos pelos faciais, dos quais não estava lembrada, estarem lutando para nublar a lembrança que tinha de Benjamin Chevrin, Demetria não demorou para reconhecê-lo. Agora que prestava atenção, ele parecia a mesma pessoa que havia visto pela última vez há mais de três anos, não fosse a evidente redução na diferença de altura entre eles. Não só aquilo, mas a distância entre os dois também diminuíra, pois o francês se aproximara, mais do que era socialmente aceitável, pelo menos para americanos praticamente britânicos por naturalização.

Benjamin não sabia se Demetria estava aliviada ou não em reconhecê-lo, mas se ela o achava familiar, a recíproca não era verdadeira. Não que ela tivesse se transformado em outra pessoa, mas algo estava diferente, embora a fundação fosse a mesma. Bom, ela havia crescido, então era natural não parecer uma adolescente sem rumo na vida, ainda que, naquele momento, a falta de rumo fosse exatamente o que definia a estrangeira. Pensando por aquele lado, era tão óbvio que aquilo aconteceria... E era tão óbvio que Howard não iria simplesmente embora. Benjamin se perguntava como alguém podia funcionar daquele jeito. Tropeçando, improvisando, vivendo como se não houvesse consequência.

O rapaz se aproximou um pouco mais; àquela altura não queria ter saído do conforto de casa à toa, então ponderou sobre o quão disposto a ajudá-la estava.

━ Desculpe por todo esse inconveniente ━ Benjamin falou em sua língua materna, os olhos fixando na atendente. ━ Acabamos de nos casar e realmente esperamos almoçar aqui hoje. Meu irmão deveria ter feito as reservas, mas acho que ele estava tão animado com o casamento quanto nós. Poderia nos ajudar?

━ Tenho certeza que ela disse que não tem reserva.

━ Não foi o que ela quis dizer. Ela não fala francês, você sabe... Americanos. Mas o que você faz quando seu coração fala mais alto, certo? ━ A francesa abriu a boca, pronta para falar que eles deveriam sair, mas por sorte o rapaz sabia o que ela diria antes e a interrompeu no ato. ━ Por favor... Não há nada que possa fazer? Tenho certeza que deve ter uma desistência hoje. Podemos falar com o Sr. Terrail, se necessário, somos bons amigos.

Demetria já havia passado quatro dias inteiros em Paris assistindo à franceses conversarem entre si para ter certeza que a partir daquele momento não reconheceria sequer uma palavra que os dois trocassem à sua frente, por mais que tentasse. E olha que ela tentou, nem que pra decifrar a conversa pelo tom de voz, mas a língua por si só já soava passivo agressiva, então acabou aceitando que aquela não deveria ser uma discussão. Mesmo quando a recepcionista demonstrou um misto de preocupação e incredulidade com o que Benjamin dissera.

━ Ele não está no restaurante, eu sei. Mas podemos atrapalhar seu descanso em Nice, acho que ele não se importaria.

Ben sorriu, a primeira vez que fez aquilo desde que começou a falar com a funcionária. Deveria ter feito antes porque surtiu algum efeito: a recepcionista baixou os olhos para o computador, apertou algumas teclas e pareceu engolir certa raiva ao voltar a falar.

━ Acho que temos uma desistência. Por favor, leve-os até a mesa quatro ━ então apontou para outro funcionário uniformizado e fez sinal para que o seguissem.

━ Merci ━ Benjamin agradeceu antes de abaixar a mão do ombro para as costas de Demetria na intenção de guiá-la de forma convincente pelo salão. ━ Vamos, ma chérie ━ incentivou Demetria, em tom suficientemente alto para que a funcionária escutasse.

Um sorriso nada discreto brotou nos lábios da americana enquanto ela seguia o garçom acompanhada de Chevrin, agora com os ombros livres do peso do braço do francês que a acompanhava, e deixou que somente o bruxo agradecesse, pois ela mesma não era grata à nada.

━ Não vou pagar dez por cento do serviço ━ murmurou baixinho para Benjamin, ignorando a estranheza do toque às suas costas.

━ Quinze por cento, americana ━ Benjamin corrigiu.

Conforme se afastavam, o ambiente mudava. O salão aumentou de tamanho assim que cruzaram o lobby de espera do restaurante. As mesas vazias que Demetria havia visto da recepção de fato eram as últimas, pois as demais que apareceram assim que entraram estavam completamente ocupadas. O lugar era impecável, mas ela já imaginava; Lauren havia falado daquele restaurante antes mesmo de terem pisado na França. Cada mesa, talher, vaso e detalhe de decoração justificavam a dificuldade de conseguir uma reserva e ainda que Benjamin tivesse mentido mais do que mentira em todo seu último ano, mal conseguia acreditar que aquilo havia realmente dado certo. O garçom sinalizou na direção de uma das mesas próximas à janela e a loira se dirigiu à uma cadeira, sendo acompanhada pelo funcionário que a puxou antes que ela pudesse tocar o móvel, deixando o assento de fácil acesso para que sentasse.

━ Merci ━ Howard respondeu com o sotaque evidente de uma estrangeira, enquanto erguia as sobrancelhas pra Chevrin em divertimento, quase não esperando o garçom se afastar para falar. ━ Acho que eu posso me acostumar com isso.

Para manter parte da farsa, Benjamin não ousou falar até que o homem que os guiou à mesa estivesse distante o suficiente.

━ Com certeza é a Howard mais loira. Nunca teria te achado se insistisse naquela mentira do bonita ━ disse ele com um sorriso claro de implicância; depois de fazê-lo mentir tanto, era o mínimo que Demetria podia aguentar em troca.

O sotaque francês nas palavras em inglês de Benjamin trouxe uma sensação nostálgica à mais nova dos Howard, no conteúdo impertinente principalmente.

━ Como dizem, a beleza está nos olhos de quem vê ━ a americana revirou os olhos, mesmo que sorrindo. ━ E você é míope pra beleza, Chevrin.

━ Sorte sua, então, que te acho só loira.

━ Isso só comprova o que eu falei ━ "e também o fato de você namorar minha irmã" , Demetria completou em pensamento.

Benjamin sorriu, um sorriso que se dissipou rápido demais, quase tão rápido quanto o pensamento correu na mente da americana.

━ Achei melhor colocar mais loira pra você não achar que era a Aria, mesmo. Não queria partir seu coração ━ Demetria fez beicinho, numa pejorativa expressão de pena.

O nome da ex-namorada surgiu à mesa e dessa vez o rapaz entortou os lábios num sorriso que não era exatamente isso.

━ Muito obrigado por sua consideração ━ comentou, tentando deixar seu tom de voz o mais descontraído possível.

Felizmente o assunto não foi estendido. Benjamin chegou a explicar seus motivos para achar que não almoçariam no restaurante, mas era evidente que este sempre havia sido o plano de Demetria, por mais mal planejado que fosse.

━  Sabe, quando me disse que estaria no La Tour d'Argent, achei que estava se referindo ao lado de fora, não que estivesse brigando do lado de dentro.

━ Se eu te disse que ia esperar no restaurante, era no restaurante mesmo ━ A garota apertou as sobrancelhas. ━ E eu não estava brigando. Foi apenas uma pequena confusão.

Era claro que Demetria causava confusão em absolutamente todo lugar que passava quando mais nova, mas não significava que ela o fazia hoje em dia. Na verdade, hoje em dia ela não começava a confusão... Só terminava.

━ Tem feito isso desde que chegou na França? Dizem que é um ótimo método para a deportação.

━ Eu estava prestes a ser deportada quando você chegou ━ mirou com os olhos apertados a recepcionista que atendia um trio de terno. ━ Eu sairia daqui direto pro Consulado, mas aquela ali sairia daqui pra um hospital.

Benjamin teria se divertido um pouco mais naquele assunto, não fosse pelo garçom chegando com os cadernos de menu, que entregou quase que simultaneamente à ambos. Demetria percebeu, assim que abriu o cardápio, que era melhor o garçom só ter servido qualquer coisa pra ela, porque nem água ela conseguiria encontrar na lista. Já o francês baixou os olhos para as opções, tentando ignorar os preços na moeda trouxa que tentavam ser discretos, mas falhavam miseravelmente. Foi a ruga surgir no meio das sobrancelhas de Demetria que Benjamin falou, novamente em inglês, o tom de sua voz quase divertido.

━ Precisa de ajuda com o francês, meu amor? ━ Benjamin perguntou ao erguer os olhos para Howard do outro lado da mesa.

Demorou uma fração de segundo para ela realmente absorver as palavras dele e quando o fez, arregalou os olhos que ergueu até o rosto de Benjamin.

━ Como é que é? ━ Foi a única coisa que falou, por mais que quisesse entrar em detalhes como com quem diabos ele achava que estava falando.

━ Precisa de ajuda com o menu? ━ Ele repetiu, evidenciando o que quis dizer sobre ajuda.

Os lábios do francês estavam apertados para evitar rir ou soltar alguma palavra inadequada. Demetria parecia mesmo um desastre em seguir planos, tanto que quase estragou o disfarce de recém-casados feito por Benjamin quando pareceu prestes a nocauteá-lo por cima da mesa por causa de uma expressão inocente. A americana não pareceu ter processado bem as palavras meu amor e isso fez Benjamin perceber que ela não havia entendido nada sobre como, de repente, conseguiram uma mesa vaga num dos restaurantes mais importantes e históricos do país.

━ O menu em francês... Certo ━ e ela folheou as poucas páginas absolutamente para nada além de dar a Benjamin um momento de diversão enquanto a assistia trabalhar em vão na tentativa de decifrar cada palavra do menu. ━ Eu aceito a sugestão do Chef ━ a americana fechou o cardápio e sorriu para o trouxa em pé ao lado da mesa. ━ Desde que não seja o mais caro!

Demetria deu uma risadinha amarela que não foi correspondida pelo garçom antes de devolver o cardápio. Assim que ela optou por seu prato, Benjamin fez o próprio pedido, o que incluía cogumelos e o peixe do dia, mas a conversa com o garçom demorou um pouco mais quando decidiram discutir sobre a bebida - apenas entre eles, já que Demetria não conseguiu acompanhar o diálogo em francês. Benjamin preferia vinho, mas precisou concordar que a ocasião pedia outra coisa. Fingindo não notar que o garçom se afastou sem anotar os pedidos, a loira tornou sua atenção para Benjamin. Este, por sua vez, não precisava ser um gênio pra saber que no instante em que o funcionário se afastasse, Demetria procuraria respostas para suas perguntas.

━ Eu não sei exatamente o tipo de relação que você acha que a gente tinha, mas definitivamente não éramos próximos o suficiente pra você me chamar de meu amor  ━ Howard balançou a cabeça, os lábios e olhos apertados mirando Chevrin. ━ Então, o que é que tá rolando?

━ Todos adoram uma história de amor, não é? E ninguém parece querer ser responsável por estragar uma lua de mel ━ o rapaz deu de ombros.

Era uma explicação resumida e sem grandes detalhes, mas o suficiente para entregar as respostas que a americana queria.

━ Quer dizer que tudo o que eu precisava pra conseguir uma mesa era um marido francês ━ Demetria compreendeu naquele momento não só o que ele havia feito para convencer a atendente, mas também o estranho abraço que recebera ainda na recepção. ━ Isso é incrivelmente machista. E xenofóbico.

━ Bom, é mesmo um pouco machista e xenofóbico, mas ser americana não ajuda. Imagino que seja uma surpresa pra você saber que alguém, em algum lugar do mundo, não é louco por um... Como dizem? Ah, Yankee. ━ Benjamin não estava certo se o termo era ofensivo ou não, mas depois do que havia acontecido, duvidava que tal detalhe fosse acrescentar ou aliviar a indignação de Demetria quanto à forma de tratamento.

━ Vou lembrar disso antes de planejar a próxima viagem ━ a loira quase engasgou numa risada. ━ Bom, resolveu... Não vamos nos apegar aos detalhes ━ as sobrancelhas se ergueram no rosto de Demetria. ━ E não é como se eu fosse começar uma terceira guerra bruxa numa mesa no La Tour d'Argent por excesso de patriotismo.

━ Não são vocês que adoram Paris por ser a cidade do amor e todas essas coisas? Deveria estar feliz em pelo menos estar aqui com um marido francês ━ sua voz era pura ironia; obviamente não pensava daquela forma, mas saber que a garota compartilhava sua opinião só tornava o comentário melhor.

━ Se manca, Chevrin! A última coisa que eu quero é um marido ━ as costas de Demetria bateram na parte de trás da cadeira; nem percebera quando se inclinara sobre a mesa. ━ Francês ou não.

Era impossível não se divertir. Demetria tinha algo natural e isso fazia com que as brincadeiras, quase farpas, também fossem espontâneas entre eles. É claro que, a princípio, Benjamin não esperava que fosse assim e, de certa forma, até se sentia apreensivo quanto ao modo como a garota reagiria, mas ela parecia tão à vontade que ele ainda sentia o clima dos velhos tempos. Talvez fosse o intuito do convite, afinal de contas. Não se viam há anos e no geral um rompimento com uma pessoa não significava romper com todos os outros, mesmo quando estes outros eram presenças casuais de um lado e parte da família de outro. Quando a bebida chegou, eles brincaram sem discrição. Àquela altura, quanto mais estranhos fossem, mais longe todos ficariam para dar privacidade.

━ Awn, você pediu champagne, querido? ━ A loira perguntou num tom de voz debochado, alto o suficiente para fazê-lo entender que estava retomando a encenação – por mais péssima atriz que fosse.

━ Estar com você é algo a se celebrar, querida. ━ Benjamin respondeu no mesmo tom; era tão bom ator quanto ela.

O garçom encheu as duas taças, Demetria a erguendo no segundo seguinte e sendo seguida por Chevrin.

━ Ao nosso casamento! ━ O som do tilintar das taças ao se encontrarem foi causado por Demetria.

O garçom havia se afastado e Benjamin estava tomando o primeiro gole da bebida, ignorando o olhar que receberam de mesas vizinhas.

━ E que Aria não esteja aqui pra ouvir isso ou terminaríamos os dois num hospital ━ a americana bebeu de sua taça, engolindo junto o pensamento de que era muito cedo para levantar o principal motivo pelo qual havia considerado Benjamin como companhia naquela tarde. ━ Aliás, falando na dita cuja... Ela tem te procurado?

A princípio Benjamin não entendeu sobre o que Demetria falava e até pensou em perguntar se aquilo era alguma brincadeira, mas não precisou de mais do que um estreitar dos olhos e dois segundos de atenção extra através das írises claras da garota para entender que algo muito errado estava pairando na relação entre as duas irmãs, distanciando-as tanto que chegava a ser inacreditável a crença da loira sobre ele ainda estar em um relacionamento.

━ Hm, bem... Aria e eu não estamos mais juntos, Demi. Achei que soubesse ━ Benjamin disse depois de ensaiar mentalmente algumas formas de dar a notícia.

━ Ah, merda.  


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