Caçadores urbanos e o mistério do filho proibido escrita por Tynn, WSU


Capítulo 10
Capítulo 9 – Redenção




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As mãos frias do Boca-de-Ouro se fecharam rapidamente na garganta de Eduarda. Ele esboçou um sorriso, os dentes dourados cintilando na luz fraca do cômodo.

— Tu achava mesmo que podia me controlar, pirraia? – A voz dele era rouca e seca. – Pelo visto só tem gente abestalhada por aqui.

Apesar da ameaça, Eduarda não entrou em pânico, ela continuou encarando o Boca-de-Ouro com um olhar destemido. Demorou apenas alguns segundos para a criatura perceber que seus poderes não funcionavam mais contra a garota. Ele conseguia se materializar, acertá-la com um soco, mas não era capaz de sugar a energia vital de Eduarda. O olhar de triunfo do Boca-de-Ouro se transformou em uma expressão de espaton e dúvida.

— Que mulesta é essa que tu tá fazendo?

— E-eu não vou… Ficar com medo… – A garota falava com dificuldade. Boca-de-Ouro afrouxou a mão para que ela pudesse continuar. – Eu entendi o seu ponto fraco ontem à noite. E sei que você não pode usar seu poder em qualquer pessoa. Ela precisa estar fragilizada fisicamente e psicologicamente, como os bêbados que você ataca depois das noites de farras.

Antes que Boca-de-Ouro pudesse expressar qualquer reação, um grito enfurecido preencheu o porão secreto: Corpo Seco berrava impaciente, desferindo golpes no ar com seu facão. Foi apenas nesse momento que Boca-de-Ouro se deu conta que não estavam sós dentro do recinto, existia um inimigo em comum ali.

— Foi esse tabacudo que tu resolveu chamar para te ajudar? Que mulher donzela! – Corpo Seco berrou debochado. Só então os olhos dele se cruzaram com os do Boca-de-Ouro. – Então tu ainda tá do lado de cá...

— Suassuna... – Murmurou a criatura entre os dentes dourados. – Pelo visto tu teve uma vida mais desgraçada que a minha. Ficava se exibindo por aí com seu peitoral inchado enquanto tava vivo, agora tá mais magro do que vaca em tempo de seca.

Eduarda respirou aliviada quando seu algoz a libertou para falar com Corpo Seco. A cabeça dela girava, mas ela conseguiu organizar as ideias para entender a trama que se desdobrava em sua frente. Lembrou-se da história que Boca-de-Ouro contou sobre sua morte, de quando levou 3 tiros após o marido da sua amante pegar os dois em flagrante. E, claro, o nome desse marido era Suassuna, o Corpo Seco.

— E tu continua com esse chapéu afrescalhado como se fosse macho – Corpo Seco respondeu rispidamente. – Te matei uma vez, te mato de novo.

— Afrescalhado? Não era isso que tua mulher falava. – Boca-de-Ouro segurou a ponta do chapéu panamá branco e o girou sobre seu couro cabeludo, vitorioso. – Aposto que Maria de Fátima te deu dois pés na bunda e foi morar com um cabra melhor quando eu bati as botas.

Corpo Seco gargalhou sinistramente assim que escutou a última frase. Apesar disso, ele não sentia alegria ou felicidade, estava apenas debochando com o intuito de deixar seu rival ainda mais impaciente. Parou de súbito e encarou o Boca-de-Ouro.

— Depois que eu te mandei para o além com minha espingarda, descarreguei o resto da munição naquela rapariga.

Boca-de-Ouro avançou movido por fúria e ódio. Ele teve inúmeras namoradas quando era vivo; acabava o namoro com uma e já começava o namoro com outra mulher, ou com duas ou com três. O que importava era que sempre estava deixando alguma moça mais feliz e era daqueles que fazia tudo o que podia pela amada, mesmo que seu tudo fosse pouca coisa. Com Maria de Fátima, entretanto, era diferente. Ela contava os horrores que sofria nas mãos do marido, os momentos com o amante eram verdadeiros alívios para ela. O galanteador planejava um dia fugir com Maria, apesar de saber as dificuldades que teria para se esconder de alguém tão influente quanto Suassuna na época. Mas ele não queria em hipótese alguma deixar Maria de Fátima sofrer nas mãos do marido perverso. Todo esse sentimento guardado transbordou naquele momento, quando ele tentou atingir Corpo Seco com um soco. A entidade esquelética foi mais rápida e moveu o tronco para trás, se safando.

As investidas não pararam por aí. Boca-de-Ouro novamente tentou soca-lo, em vão. Depois avançou a mão para traqueia do Corpo Seco, que rebateu com um golpe lateral, girando a faca no peito do Boca-de-Ouro. O objeto transpassou a entidade fantasmagórica, que gritou ruidosamente e sumiu em uma fumaça negra.

Eduarda observou tudo perplexa, não sabia o que fazer para ajudar o seu novo aliado, que desaparecera depois do golpe de facão. Apesar de ser uma entidade sobrenatural, incapaz de morrer por um ataque como aquele, talvez a maldade embutida na ação do Corpo Seco o tivesse afastado dali. Eduarda não tinha tempo para ficar criando hipóteses e teorias sobre aquilo, conseguiu achar uma forma de usar seu conhecimento para pedir ajuda ao Boca-de-Ouro, mas seu trunfo tinha ido embora. Agora só restava ela, Corpo Seco e uma estante com inúmeras entidades malignas presas em frascos de vidro. Ela juntou os resquícios de esperança que tinha e correu pela lateral direita, na tentativa desesperada de driblar o oponente e passar pela porta. Corpo Seco morreu a mão ossuda em direção ao ombro da garota e a puxou com força, quase deslocando sua clavícula. Eduarda caiu no chão com o golpe.

— Deixa de ser frouxa, mulher! Não era tu que tava cheia de pantim para cima daquele pé-rapado? Cadê a coragem agora? – A monstruosidade lambeu a ponta da faca, aproximando-se de Eduarda. – Tô invocado, visse? Tu vai é sofrer na minha mão.

A menina observou a entidade ficar extremamente próxima a ela, era capaz até mesmo de sentir a respiração fraca daquele ser que não estava nem vivo nem morto. Eduarda olhou para os lados, a estante agora estava longe para que ela pudesse implorar ajuda para mais uma entidade. Encontrava-se encolhida contra a parede à espera do golpe fatal. Corpo Seco se movia com prazer para aquele momento. Só havia uma coisa que Eduarda poderia fazer. E assim o fez, fechando os olhos. Corpo Seco sorriu.

— Vou te cortar que nem açougueiro em dia de buchada.

A faca desceu em direção ao pescoço de Eduarda, que ainda mantinha uma postura defensiva contra a parede. Entretanto, Corpo Seco não foi capaz de terminar o movimento, era como se uma força invisível estivesse impedindo sua mão de continuar com o ataque. Ele reparou que os cabelos de Eduarda estavam levitando suavemente e um sorriso enfeitava seu rosto antes amedrontado. Ao abrir os olhos, o corpo da entidade foi arremessado para trás com um baque barulhento contra a parede. Os orbes de Eduarda estavam totalmente brancos. Ela levantou-se audaciosa e enxugou uma lágrima que manchava a bochecha direita.

— Você nunca mais vai encostar o dedo em nenhuma mulher – disse, erguendo o braço e fazendo Corpo Seco voar em direção a parede lateral.

A entidade gritou de desespero, a faca já havia caído desde o primeiro golpe. Por mais que ele quisesse lutar contra aquela força, cada movimento que tentava fazer era inútil. Ele sentia uma pressão no seu corpo que o impedia de reagir. Eduarda movimentou a mão para cima e a entidade bateu no teto com força, fazendo a lâmpada piscar três vezes antes de voltar ao normal. Com mais um movimento, Corpo Seco caiu ao chão e ficou deitado, como se estivesse sendo esmagado por um peso de uma tonelada nas costas.

— Os seus dias como Corpo Seco chegaram ao fim, Suassuna – Eduarda falou, se aproximando da entidade.

— Tu tá sendo controlada por aquele abestalhado sem dente! – A entidade gritou do solo, sem conseguir nem ao menos mover a cabeça para encarar Eduarda. – Tu pode até se safar dessa vez, mas meu meninão tá chegando, visse? E ele vai te mostrar quem é que manda! Ele vai ser o macho mais arretado de todos e vai te colocar no lugar que merece.

— Mas eu é que estou no controle agora – a garota disse por fim. – Adeus.

Eduarda ergueu os braços e Corpo Seco levitou, fixando seus olhos acinzentados no rosto da oponente. Ele cuspiu em direção a ela, mas Eduarda esboçou um sorriso e o cuspe voou em direção ao rosto da criatura, sujando sua testa. Aos poucos, a entidade começou a sentir uma pressão ainda maior contra todas as células do seu corpo, eles pareciam querer se expandir para longe. Eduarda ergueu os braços o máximo que conseguia e, como resposta, Corpo Seco explodiu em pó negro. Cada parte da sua estrutura física virou farelo que planou no ar, sutilmente, até descer ao chão pela força da gravidade. A garota fechou os olhos e seus cabelos castanhos voltaram a cair sobre os ombros. Ao abri-los, observou Boca-de-Ouro na sua frente com um sorriso de triunfo, um sorriso cheio de dentes dourados.

— Que bicha arretada tu é! – ele falou empolgado. – Acabasse com aquele fió de uma égua em dois tempos.

— Foi você que me ajudou… – Eduarda sentou-se no chão e encostou a cabeça na parede. Ela sentia-se fraca e esgotada, mas também satisfeita. Boca-de-Ouro passou algum tempo dando pisadas no chão para fazer as cinzas do rival serem espalhadas. – Obrigada.

— Oxente, deixe de frescura comigo. Tu que tem esse poder arretado aí dentro. Só dei um empurrãozinho. – Boca de Ouro, conhecido por Antônio Fonseca em vida, encarou os vidros das outras entidades na estante, depois olhou para Eduarda. – Eu que tenho que agradecer, visse?

— Por quê? – Antes mesmo da assombração responder, a garota já era capaz de entender a resposta.

Na sua frente, um homem alto de camisa abotoada e calças sociais brancas sorria, com os dentes ainda cheios de ouro, mas a pele era morena como chocolate, a barba arrumada e muito alinhada no seu rosto angular. Ele tirou o chapéu e mostrou os cabelos cuidadosamente penteados, fazendo uma reverência para Eduarda. Girou sobre os próprios calcanhares e puxou um cigarro do bolso da camisa, acendendo-o com um isqueiro dourado. Soltou uma baforada que desapareceu no ar. O que mais chamava a atenção, entretanto, eram seus olhos verdes, intensos e cheios de energia.

— Tu me libertasse, comadre! – Antônio rio de prazer por uns instantes. Eduarda não entendia o que estava acontecendo, mas riu junto com o rapaz renovado. Não era capaz de definir o que sentia, por isso ela deixou apenas aquela sensação de paz preencher seu coração e as lágrimas rolarem pelo rosto. – Tu é frouxa mesmo, né?

— Desculpa... – Ela falou sem jeito. – Eu não queria estragar o momento.

— Deixa de leseira. Eu mesmo tive uma vida ruim da peste. Às vezes era boa, é verdade, mas tinha dias que eu estava morgado… Não era só felicidade. Daí veio o tiro daquele miserável e eu fiquei com raiva. Ah, eu fiquei muito arretado! Queria descontar em todo mundo que eu pudesse. Eu sentia era inveja desse povo donzelo que ainda podia pegar mulher. A verdade é essa. – Antônio deu uma última tragada no cigarro e o jogou no chão, pisando com seu sapato de couro na ponta acessa. – Para onde eu vou, preciso desse bichinho mais não.

— Para onde você vai? Como assim?

— Oxê, tu tá mais perdida que cego em tiroteio!

Antônio Fonseca exibiu um sorriso sincero, encantador, e Eduarda vislumbrou uma lágrima cair de seus olhos, muito sútil. Ele acenou para a garota enquanto começava a flutuar, seu corpo emitindo uma intensa energia luminosa, e a cabeça girava como se procurasse por alguém.

— Eu tô escutando a voz de Maria de Fátima! Ela tá me chamando e não é pala minha não, visse? – O fantasma olhou para Eduarda e retirou o chapéu mais uma vez em agradecimento. – Bença, lembra do que tu fez hoje. Tu é arretada! Mas agora chegou minha hora.

Antônio Fonseca, o antigo Boca-de-Ouro, desapareceu como uma centelha de luz. Eduarda passou algum tempo parada, apenas sentindo as lágrimas caírem de seus olhos depois daquele momento tão intenso. Não sabia ao certo se deveria se sentir orgulhosa, feliz, preocupada ou pesarosa com tudo o que aconteceu. Era um misto de sentimentos que transbordava em seu coração. Ela olhou para os lados e viu o chão coberto por pó negro, as cinzas do Corpo Seco ainda estavam espalhadas pelo lugar. Ela encarou a estante com as entidades enfileiradas, teve um desejo súbito de derrubar tudo para tentar libertá-las, mas elas não eram com Boca-de-Ouro. Com certeza, iriam se aproveitar para fugir ou voltar a fazer maldades. A garota levantou-se lentamente, apoiando-se na parede para tal, e andou para fora daquele porão abafado, subindo as escadas em direção a luz do quarto de Vanessa.


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