Sangue, Fogo e Estrelas escrita por Dafne Guedes


Capítulo 5
O Juramento do Cavaleiro




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O ano de 180 d.C. foi um dos períodos mais solitários pelos quais a princesa Targaryen havia passado em sua vida. Crescera acompanhada de perto de irmão gêmeo, e de senhoras nobres que iam e vinham conforme seus pais ganhavam e perdiam posições na corte do Rei Aerys, e que sempre tentavam ganhar sua amizade, pois naquela época era acreditado que ela um dia seria rainha.

                A neve havia caído sobre Porto Real na manhã que Rhaegar fora embora com a princesa Elia, dois Guardas Reais e uma pequena comitiva, e não parara de cair desde então.

                Lorde Tywin, talvez ainda na esperança de agradar à princesa à sua causa, mandara que Mina Tyrell, a noiva de Paxter Redwyne, fosse trazida à corte para fazer companhia à princesa. A senhora Mina tinha adoráveis olhos castanhos, e era filha da Rainha dos Espinhos, o que não ajudou Aelora a confiar nela, mas tinha uma boa voz para canções, e não distribuía risinhos para os guardas como uma tola. Além dela, é claro, o rei oferecera a própria filha, Cersei, para fazer companhia à princesa. Nela, Aelora confiava ainda menos, e raramente fazia contribuições à conversa entre as meninas.

                O assunto preferido de Cersei era o seu irmão, Jaime Lannister, que fora nomeado recentemente escudeiro de Lorde Crakehall e estava no castelo enquanto a Coroa lutava contra a denominada Irmandade da Mata do Rei, um grupo de criminosos que, operando da Mata do Rei, vinha ganhando notoriedade por sequestrar nobres que por ali passavam, roubando seus pertences e, caso conseguisse colocar as mãos em uma donzela, roubando também sua castidade. Dessa forma, o Rei Aerys foi obrigado a mandar um destacamento de soldados liderados pelo próprio Gerold Hightower para lutar contra eles, embora, sendo os foras da lei protegidos pelo próprio povo da Mata, era difícil se quer encontra-los para dar batalha.

                As notícias de Pedra Dragão chegavam com frequência, escritas do punho ou de Ashara Dayne, para surpresa de Aelora, ou do próprio irmão. Não fazia nem um mês completo que eles haviam partido de Porto Real quando chegou a notícia de que a Princesa Elia estava grávida do primeiro filho. Aelora escrevera uma alegre carta de volta, e fora ao septo, onde rezava todas as semanas pela saúde de seu sobrinho.

                Por isso tristes foram as notícias quando, com apenas sete meses e meio de gravidez, a princesa Elia entrara em trabalho de parto, depois de ter passado os últimos três meses da gravidez sem poder sair da cama devido a sangramentos. A surpresa fora geral na Fortaleza Vermelha quando chegaram as notícias de que ambas, mãe e filha, haviam sobrevivido, embora Elia estivesse fraca demais se quer para sair de sua cama.

                Aelora mudara suas preces de semanais para diárias, e passara a incluir o nome da esposa do irmão em suas rezas, sempre com uma vela acesa para a Mãe, pela Princesa Elia, e uma para a donzela, pela sua jovem sobrinha, que recebera o nome de Rhaenys.

                Ao contrário do que pensara Lorde Tywin, o Rei Aerys não pareceu passar a pensar no casamento de sua filha donzela. Aos vinte e um anos, Aelora ainda era mais jovem que a princesa Elia quando se casara com Rhaegar, mas haviam donzelas mais jovens que já estavam noivas. A princesa não se importou nem um pouco; pelo que sabia, o pai poderia esquecer dela. Talvez, como Arthur, ela pudesse dedicar a sua vida a algum tipo de juramento. Outras princesas Targaryen já haviam dedicado suas vidas à fé antes dela, uma vez que a ciência dos meistres estava além dos poderes de uma mulher.

                Porém, quando chegou a carta de seu irmão dizendo que a pequena Rhaenys já estava forte o suficiente para viajar, e eles viriam para Porto Real muito em breve, Aelora deixou de lado suas ambições religiosas e se dedicou a organizar todo o castelo para que estivesse apto a receber a pequena princesa, e seu real pai.

                Symon Stauton, que havia assumido como Mestre das Leis com a morte de Steffon Baratheon, pareceu surpreso que Aelora estivesse tão engajada em receber seu irmão.

—Não me parece que o próprio Rei esteja assim tão animado em ter o Príncipe na corte. –Ousou dizer a ela. –Disse que talvez a viagem acabe matando a Princesa Dornesa e sua filha.

                Aelora sentiu o rosto ficar cada vez mais quente.

—Cuidado, Lorde Stauton, ou alguém pode pensar que é um desejo pessoal seu. –Ela disse severamente. –Lembrarei de repassar o seu comentário para os ouvidos do Príncipe Herdeiro.

                Depois disso, o Mestre das Leis deixou de dirigir a ela qualquer palavra além do estritamente necessário, que era menos que pouco.

                No dia em que o Príncipe Herdeiro chegou à cidade com sua jovem filha, parecia que cada plebeu em Porto Real havia se reunido nos Portões da Cidade para recebe-lo. Aelora teria se juntado a eles se o seu pai não houvesse proibido estritamente que ela saísse da Fortaleza de Maegor. Sobrou a ela se reunir da Arcada das Donzelas, onde ficava seu quarto, e se pendurar nas janelas tentando conseguir vista da chegada de seu irmão. Junto dela, estavam suas damas de companhia; Alyssa com um olhar distante de quem contempla possibilidades, Mina alegremente cheirando a rosas e Cersei Lannister com um vestido de decote baixo que fazia seus peitos empinados parecerem dois sóis nascendo pelo corpete do vestido.

                Quando ela viu o cortejo se aproximando da Fortaleza Vermelha, Aelora desceu correndo até a ponte levadiça, e ficou esperando que seu irmão fizesse o caminho até ali. Foi uma longa espera; ela podia imaginar Rhaegar oferecendo sorrisos, canções e moedas para toda a gente que por ele esperava. Ao contrário do pai, o Príncipe não tinha receio de ser tocado, e se permitia navegar entre nobres e plebeus com igual liberdade.

                Quando finalmente ele passou pelas portas de carvalho em seu corcel negro, ladeado pelos seus escudeiros, Myles Mooton e Richard Lonmouth, ele passou rapidamente os olhos entre aqueles que o esperavam; Jon Connington, Lewyn Martell, e então, finalmente, focalizou Aelora. Neste momento, pulou de seu corcel para o chão com um gesto hábil, e, assim que ele foi na direção dela, Aelora se destacou da multidão e foi igualmente para os seus braços.

                Ela não sabia o que os nobres pensariam daquela demonstração de afeto, mas não importava; Rhaegar tinha cheiro de casa, e de conforto e de verão. Ele a segurou com tanta força, que espremeu para fora dela todas as coisas ruins que ela tinha pensado dele enquanto estava longe.

—Onde estão elas? –Perguntou Aelora assim que ele a livrou de seu aperto. –Tenho algo para a pequena Rhaenys.

                Ele fez um gesto para que ela o seguisse, e os dois voltaram pelo caminho que ele fez, onde uma liteira trazia uma senhora cheia de enormes peitos com um embrulho vermelho nos braços. Aelora sorriu, mas estreitou os olhos.

—Onde está a Princesa Elia? –Perguntou, desconfiada de repente que a maldição de Lorde Stauton houvesse se provado verdadeira.

—Em Pedra Dragão com sor Oswell. –Rhaegar respondeu cheio de confiança. –Ela virá ter conosco uma vez que estiver um pouco mais forte. A senhora Ashara também ficou em sua companhia.

                O nome de Ashara trouxe, é claro, a pergunta que ela não queria fazer. Mas, embora houvesse mordido a própria boca para ficar calada, se encontrou dizendo:

—E sor Arthur? –Perguntou.

                Rhaegar não pareceu surpreso ou desconfiado com sua pergunta.

—Foi falar diretamente com o Comandante Hightower. –Respondeu, tomando Rhaenys dos braços de sua ama, e trazendo-a mais para perto da irmã. –Parece que há um problema em Porto Real que precisa de sua atenção.

                Rhaenys havia saído mais à mãe que a Rhaegar. Tinha os cabelos escuros dos dorneses, uma forma apequenada, e a pele escura. Quando abriu os pequenos olhos curiosos, porém, eles eram da cor purpúrea que o pai apresentava. Uma combinação incomum, Aelora chegou a pensar, mas não inteiramente sem precedentes. Em outro mundo, ela teria sido sua filha.

—Ela é tão linda quanto a mãe. –Aelora disse, então seu sorriso morreu no rosto. –Vai ter que apresenta-la ao pai.

                Imitando o rosto da irmã, o sorriso de Rhaegar também morreu rapidamente em seu rosto.

—Precisa me falar. –Ele começou. 

—Não aqui. –Ela o interrompeu. –O rei vai esperar que se acomode antes de encontra-lo. –Aelora falou baixo e rápido, numa mistura do Idioma Comum e algumas palavras em Alto Valiriano, que confundiriam qualquer um que tentasse ouvir a conversa. Era assim que os apoiadores do Príncipe tinham de se dirigir uns aos outros na Fortaleza naqueles tempos. –O encontrarei em seus aposentos.

                Aelora foi logo para o quarto que um dia fora de seu irmão na Fortaleza de Maegor, mas o próprio Rhaegar ainda demorou cerca de uma hora cumprimentando velhos conhecidos e distribuindo seu charme antes de se juntar a ela. Quando chegou, Aelora já havia mandado acender uma lareira para aquecer o quarto frio, e mexia no fogo com um atiçador, quando a porta atrás de si foi aberta e por ela passaram seus antigos companheiros mais próximos; Rhaegar, seguido de perto por Jon Connington e com Arthur Dayne para fechar a comitiva.

                Ela havia passado o ano inteiro treinando-se para aquele confronto. Da última vez que vira a Espada da Manhã, tinha vinho na língua e lágrimas nos olhos, além de muito pesar no coração. Naquele ano, porém, a princesa havia aprendido a ser mais comedida com sua língua.

—Sor Arthur. –Disse quando ele passou pela porta e olhou para ela, a cabeça ligeiramente inclinada para baixo em uma saudação muda. –Confio que sua espada tenha acendido a escuridão de Pedra do Dragão.

—Não como teria feito a sua beleza, Minha Princesa. –Ele respondeu formalmente, mas não havia calor real em suas palavras.

                Sua frieza foi um golpe no ego de Aelora, mas ela sorriu docemente e acenou como se não se importasse, então se virou para o irmão, a mente cheia de um novo tipo de determinação.

—Quem está na porta? –Perguntou a Lorde Connington. A ausência de Rhaegar transformara o jovem lorde de um conhecido a um amigo e aliado confiável.

—Sor Barristan. –Ele disse, como quem já cuidara do assunto.

—Bom. –Ela concordou com sua escolha. –Disse a ele que não deixasse que nenhum criado entrasse?

                Apenas depois que o lorde confirmou essa informação, ela virou-se para o irmão, e o mandou que tocasse sua harpa, ainda conservada junto à lareira onde ele a deixara. Rhaegar pareceu confuso com o pedido, mas o fez mesmo assim, tocando as notas de introdução da canção Jenny de Pedrasvelhas.

                Apenas assim, ela e Jon trocaram olhares para começar seu relato.

                Contaram sobre a aranha, que passou a ser chamada de Lorde Varys, e sobre como os lordes Stauton e Qarlton Chelsted sussurravam dia e noite no ouvido do rei, apontando inimigos, que eram queimados numa pira quase permanente nas entranhas do castelo; criados, serviçais, acusados de espionar, às vezes para Lorde Tywin, às vezes para Rhaegar. Disseram que o rei tinha tanto medo de ser tocado por lâminas, que seus cabelos cresciam selvagens e suas unhas estavam longas e curvas, e ele parecia ter envelhecido muitos anos naquelas poucas voltas de lua.

—Algo precisa ser feito. –Rhaegar disse, com determinação. –Os Lordes não percebem o que está acontecendo?

—Percebem e se aproveitam. –Jon Connington disse, resignação em sua voz. –Entregam seus próprios criados por uma permissão para aumentar alguns acres de terra em detrimento de um vizinho, denunciam crimes que nunca aconteceram pelos direitos de pescaria de um rio.

                A expressão de Rhaegar era horrorizada, como se não pudesse realmente acreditar que tais barbaridades estavam sendo feitas no reino, pelos homens supostos a proteger os menos abastados que eles. O próprio Arthur tinha uma expressão enjoada no rosto; ele podia entender a loucura do rei, mas não a ganância daqueles que se aproveitavam dela.

—E Lorde Tywin? –Perguntou Rhaegar. –Onde está durante tudo isso?

                Jon Connington torceu os lábios.

—Ele gere sobre o que o rei permite. –Disse, afinal. –É um homem inteligente e capaz, e às vezes o rei está tão fora da realidade que ele consegue baixar as taxas de comércio de Porto Real, cobrar impostos que apoiadores de Aerys deixam passar. Mas há cada dia menos que o rei permite que ele faça.

                Os quatro fizeram silêncio, absorvendo a seriedade da situação na qual o reino estava imerso.

—Diga o que devemos fazer, e faremos. –Arthur Dayne finalmente cortou o silêncio, com Alvorada brilhando por cima de seu ombro como uma promessa.

                Rhaegar olhou para cada um deles, medindo-os. Então assentiu, como se um plano houvesse se formado em sua cabeça.

—É preciso que os Grandes Lordes saibam o que está acontecendo. –Ele determinou. –É preciso um Torneio. Jon, vá até o Comandante Hightower, e o mande para buscar Elia em Pedra Dragão. Você vai com ele, levando uma mensagem para Sor Oswell. Ele não voltará com vocês, mas irá encontrar o irmão em Harrenhal.

                Arthur franziu a testa.

—Acha que os Grandes Lordes não sabem? –Ele perguntou. Parecia mesmo improvável em um mundo em que o rei já era chamado de Rei Louco por toda a parte.

                Rhaegar negou com a cabeça.

—Acho que sabem. –Disse, gesticulando com as mãos. –Mas ainda não confiam em mim para fazer diferente. Acho que sabem tão bem que se preparam. Não é estranho, Arthur? Lorde Tywin é casado com uma prima, assim como Lorde Rickard Stark. Lorde Tully é casado com uma vassala. Lorde Steffon Baratheon foi casado com a senhora Cassana Eastermont. As relações de vassalagem são importantes de serem estabelecidas. O que há de diferente.

                Sor Arthur Dayne nunca havia sido acusado de ser lento com os pensamentos.

—Estão casando seus herdeiros entre si. –Apontou ele. –Lorde Robert Baratheon com uma garota Stark, o herdeiro dos Stark com uma das meninas Tully. Lorde Arryn é protetor de Lorde Robert enquanto ele é jovem, e também do Stark mais novo. Quatro das oito Grandes Casas.

                Rhaegar concordou com um aceno de cabeça.

—E onde estão as outras Grandes Casas? –Agora ele perguntou à irmã, que tinha a testa franzida. Ela não havia pensado no grande cenário como o irmão fizera.

—Os Martell têm uma princesa, então estão conosco. –Ela contou. –Os Tyrell fazem parte da corte. Os Greyjoy estão ocupados saqueando a Costa Oeste, com um Lorde reformista. Tywin Lannister é mão do rei.

                Ela hesitou por um segundo antes de acrescentar.

—Além disso, me propôs casamento com seu herdeiro. –Ela disse rapidamente, olhando para Rhaegar ao invés de qualquer outra pessoa.

                O irmão não fez cara de surpresa; Aelora supôs que talvez ele fosse mais observador que ela se permitira acreditar.

—O pai não permitiria. –Rhaegar apontou, sem se preocupar. –Embora talvez seja mesmo hora de pensar numa aliança vantajosa para o nosso lado.

                Ele disse “nosso lado” como se Aelora fosse inegavelmente uma peça ao seu lado do jogo. Ela queria apontar que ele estava errado; ela era uma mulher, portanto, estava cativa aos desejos dos homens que tinham sua guarda, e aquele era o Rei Aerys. Ele jamais permitiria que Rhaegar organizasse seu casamento, a não ser que por um movimento extremamente sutil.

                Além disso, ela não queria casar. Mas começou a perceber que a crise dentro do reino era mais séria que apenas algumas intrigas dentro da corte, e que talvez fosse mesmo o caso de ela fazer o que pudesse para ajudar seu irmão em sua empreitada.

—Com quem você me casaria? –Ela perguntou, curiosa.

—Elbert Arryn é solteiro, e herdeiro do Ninho da Águia. –Ele disse, tão rápido que ela soube que não era a primeira vez que pensava sobre isso. –Fazer aliança com os Arryn será o mesmo que fazer amizade com os Stark, Tully e Baratheon, nas presentes circunstâncias.

                Sem conseguir resistir mais um momento, ela deixou seus olhos se desviarem para Arthur, se perguntando se o cavaleiro, como a princesa, estava pensando na última conversa que haviam tido. Não era estranho que um cavaleiro da Guarda Real fosse mandado para guardar uma princesa, mesmo quando ela não era mais herdeira direta da família, e fosse casada fora desta. Desejou ardentemente que fosse mandado outro cavaleiro com ela. Talvez o bondoso Sor Barristan, que contava histórias com boa retórica. Rhaegar certamente iria querer manter Arthur consigo próprio como fizera ao leva-lo para Pedra Dragão.

                Arthur, porém, não olhou de volta para ela, então a princesa suspirou.

—Convença o pai, e eu casarei com ele. –Disse ao irmão, finalmente.

                Quando Rhaegar levou a pequena princesa Rhaenys para conhecer o pai, Aelora, ao contrário, fez caminho para o quarto de sua mãe, usando a capa preta adornada com rubis de sua Casa. O quarto de sua mãe era guardado por dois Guardas Reais ao invés de apenas um: naquela noite, o velho sor Harlan Grandson e o Comandante Gerold Hightower. Ambos cruzaram suas espadas à frente da porta quando ela se aproximou, embora os dois parecessem envergonhados em fazê-lo.

—O Rei está com a Rainha neste momento, Princesa, e nos disse para manter todos afastados. –Sor Gerold era um dos maiores homens que ela conhecera na vida; maior mesmo que Robert Baratheon. Quando ele colocava seu elmo com chifres de touro, era uma visão assustadora a se contemplar. Mesmo que naquele momento ele usasse apenas as roupas brancas da Guarda Real, com sua espada longa em uma das mãos, ainda havia algo em sua voz que avisava ao interlocutor que aquele não era um homem de pequenezes.

                Uma coisa gelada cutucou sua espinha. Se o rei já estava com a rainha, então a reunião com Rhaegar não poderia ter sido muito longa. Além disso, nada de bom vinha de seus encontros com Rhaella; ela sempre acabava machucada e chorosa, e as aias falavam, e os rumores se espalhavam pelo castelo, chegando aos ouvidos de outros lordes.

                Impotência se espalhou pelos seus ossos; era muito melhor não saber, fingir que as dores de sua mãe não existiam quando estavam escondidas pelo vestido, pois era incapaz de fazer qualquer coisa para ajudá-la.

                Aelora se virou e correu; não queria que os guardas de seu pai a vissem arrasada, mas também correu da consciência do que era feito de sua mãe. Sem que se desse conta, seus pés a levaram para um lugar que, embora fosse parte da casa de sua infância, lhe era quase desconhecido.

O ar estava rico com os cheiros da terra e das folhas. Havia algo de selvagem num bosque sagrado; mesmo ali, no coração do castelo que se erguia no centro da cidade, podia-se sentir os deuses antigos observando com mil olhos invisíveis. Aelora fora criada com os com a Fé dos Sete, como era costume entre os Targaryen desde Aegon, o Conquistador; adorava as estátuas, as imagens nos vitrais, a fragrância de incenso ardendo, os septões com suas togas e cristais, o mágico jogo de arco-íris nos altares incrustados de madrepérola, ônix e lápis-lazúli. Mas não podia negar que o bosque sagrado também possuía um certo poder. Poder o suficiente para acalmar as batidas de seu coração e limpar sua mente.

Deslocou-se de árvore em árvore, sentindo a aspereza da casca sob os dedos. Folhas rasparam no seu rosto, como magros dedos de garras afiadas, mas ela não se importou. Fechou os olhos e respirou fundo o cheiro úmido de terra, folhas e decomposição, mas também outra coisa, fresca como limões no auge do verão. Ela inalou esse segundo cheiro com desejo desproporcional. Sem abrir os olhos, a princesa disse em voz alta:

—Por que me seguiu, sor Arthur? –Perguntou para o nada. Sua voz foi abafada pelos troncos e folhas, mas mesmo assim ela sabia que ele devia ter ouvido.

                Abriu os olhos. Mesmo no escuro das profundezas do Bosque Sagrado, Alvorada brilhava nas costas de seu cavaleiro escolhido, da cor de leite. Quando ele se moveu para perto, seus pés não fizeram barulho no musgo verde e na madeira apodrecida do chão.

—A Princesa deve ser sempre acompanhada de um Guarda Real. –Ele respondeu profissionalmente. Aelora estava cansada daquele comportamento, e abriu a boca para dizer justamente isso, mas ele não havia ainda terminado de falar. –Além disso, há algo que eu gostaria de mostra-la.

                Aelora se perguntou se sua curiosidade a permitiria negá-lo. Mas não foi curiosidade que a moveu a diminuir a distância entre eles. Suas botas forradas de peles também não faziam barulho algum no solo do Bosque Sagrado, quase como se eles não estivessem realmente lá.

                Arthur a observou se aproximar, dando a volta num tronco caído entre eles, cujo miolo já havia há muito apodrecido e se decomposto, os olhos dele nos movimentos dela, como se ela fosse um adversário, não uma garota.

—O que gostaria de me mostrar? –Ela manteve uma distância segura dele daquela vez. A princesa havia sido mais direta do que lhe era direito da última vez que o vira, e não repetiria o erro novamente.

                O cavaleiro suspirou quando ela parou com a distância de um braço entre eles.

—Venha comigo. –Pediu, e fez um gesto para que ela saísse à sua frente.

                Ela o seguiu na direção da Arcada das Donzelas, uma fortaleza com teto de ardósia que tinha o seu próprio jardim, gazebo e vista para o mar azul e brilhante da Baía de Água Negra. Quando saíram do Bosque Sagrado, o barulho de suas botas no chão pareceu tão alto no piso de pedra que ela se assustou e quase deu um pulo. Arthur, que volta e meia olhava para trás, pois esse era seu dever de Guarda Real, virou a cabeça para encobrir um sorriso jocoso. Aelora teria se ofendido, mas a visão tirou seu fôlego, e ela precisou de tempo para voltar a respirar novamente.

                Tanto distraiu-se observando o movimento de sua capa branca de inverno pendendo de seus ombros largos, que quase não notou quando ele apontou alguma coisa à frente. Aelora deu a volta no cavaleiro para ver do que ele falava com tanto entusiasmo, e perdeu o fôlego uma segunda vez com a visão das Rosas de Inverno do Jardim.

                Todas haviam florido desde da noite anterior: brotos em diferentes tons de azul; azul-gelo e cobalto, turquesa e índigo. As pétalas macias tinham dezenas de camas abertas umas sobre as outras, sobradas para dentro e para fora das flores, cujos caules eram longos e verde-escuros, com longos espinhos afiados. Elas cobriam todo o parapeito do jardim, e se despejavam para o solo com grama queimada de inverno, exibindo-se.

 -Rhaegar enviou sor Oswell para falar com o irmão, Lorde Whent, senhor de Harrenhal. Haverá um torneio, se tudo funcionar de acordo. –Arthur contou a ela, tendo se aproximado sem que ela percebesse. Estava atrás dela, tão perto que ela podia sentir o calor que saia do corpo dele em direção ao seu. Se ela se inclinasse apenas um pouco para trás, encostaria as costas no peito da Espada da Manhã; e ele seria quente e macio, mas duro, como ela se lembrava dele. Não fez isso. –Deverá haver uma coroa de flores para a Rainha do Amor e da Beleza.

—Eu colhi as flores do último torneio ao qual fui. –Ela se lembrou. Haviam sido Bafos de Dragão, vermelhas, com um toque ligeiramente quente em suas pétalas. Flores de verão. Isso havia sido muito tempo antes; quando ela ainda se preparava para casar com Rhaegar, Elia Martell era uma distante estranha, e Arthur Dayne era um grande cavaleiro, mas não juramentado. Antes de seu pai ser louco.

                Arthur claramente se lembrava daquele tempo.

—Ganhei aquele torneio para o Príncipe Rhaegar. –Arthur a lembrou, mas ela não precisava que fosse dito. –Coroei você Rainha do Amor e da Beleza.

—Então Rhaegar me avisou que você pretendia ser cavaleiro da Guarda Real. –Ela deixou escapar, mordaz. –Eu farei a coroa, se é isso que quer me pedir.

                Ela se virou, e agora havia apenas um palmo entre eles. Os olhos violeta de Arthur acariciaram seu rosto antes de encontrar com os olhos dela. A respiração dele agitou duas mechas soltas de cabelo que emolduravam seu rosto.

—O que eu quero.... –Ele começou a dizer, então se forçou a parar, como se fosse um esforço físico. –Será a minha Rainha do Amor e da Beleza, mesmo que Elbert Arryn tenha a sua mão. Tenho de ter ao menos isso.

                Ela fez que não com a cabeça, mas sorria. Não conseguiu controlar sua expressão, não mais do que conseguia controlar a onda de afeição que tomou seu peito; soube, naquele momento, que jamais haveria outra pessoa. Ele morreria um dia, talvez em serviço do seu rei, e ela viveria todos os seus dias, teria os filhos de algum lorde, e pensaria em Arthur Dayne, em seu cheiro fresco, no modo como um dos lados de sua boca levantava mais alto quando ele sorria.

                A Rainha Naerys havia conseguido antes dela, ou ao menos era disso que os cantores tentavam os convencer.

—Será a segunda vez. –Ela o avisou, mas não havia temor verdadeiro em sua voz. –A corte começará a comentar depois disso.

                A reputação de outras moças poderia ser arruinada por menos, mas, nesse aspecto, eles eram privilegiados; ela era uma princesa, e haveriam consequências para quaisquer rumores criados sobre ela. Além disso, mesmo que seu nome fosse arrastado na lama, sempre haveria um lorde disposto a toma-la pela proximidade com a Casa Real. Quanto à Arthur, que era um cavaleiro da Guarda Real e a nomeada Espada da Manhã de sua geração, sua fama era inabalável.

                Mesmo assim, ele pareceu abalado.

—Basta uma palavra sua e jamais trarei à tona este assunto novamente. –Ele prometeu. –Mas não ganharei o torneio se não puder dar a você o título.

                O olhar da princesa oscilou rapidamente dos olhos do cavaleiro para as flores azuis. Não ficariam tão bonitas em sua cabeça quanto os Bafos de Dragão, com sua cor escarlate chocante, mas qualquer coisa que Arthur a desse valeria mais que todas as suas joias, fossem flores ou olhares.

—Ganhe o torneio. –Ela concedeu. –E mais... fique aqui. Mesmo se Rhaegar voltar à Pedra Dragão, fique aqui. Ao menos até o casamento.

                Não havia sentido em fingir que não haveria casamento. Eles apenas tinham que aproveitar qualquer tempo que houvesse por enquanto.

                Mas Arthur hesitou,

—Meus votos... –Ele começou a explicar.

—Não. –Ela o interrompeu. –Fique com seus votos, não é por eles que peço. Fique, e será o suficiente.

                Não era o suficiente. Se ele a tomasse em seus braços naquele momento, e jamais a deixasse ir, ainda assim não seria o suficiente. Aelora gostaria de mais; de testemunhar cada olhar, cada cicatriz, de passar os dedos pela pele nua de seus braços e ombros, de descobrir a textura da pele macia das costas. Ela gostaria de poder se fundir a ele como se fossem ambos uma única chama, e mesmo então não seria o suficiente.

                Ela a olhou como se ela fosse Tombastela; uma propriedade à qual ele não tinha direito, mas ainda considerava sua casa.

                Arthur Dayne se pôs de joelho, mas não tirou a espada da bainha. Ela observou o topo de sua cabeça quando ele olhou para baixo.

—Já prometi minha espada à um rei, Princesa, mas ofereço-a minha lealdade e coração.

                As mãos dele estavam vazias, mas Aelora não desejada nada que pudesse ser tocado.


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Notas finais do capítulo

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