— Você comeu da minha comida de novo?!

Os gritos, vindos da cozinha, despertaram Jeongyeon de seu sono. Profundo, sem sonhos, como vinham sendo ao longo de todas suas últimas semanas.

Acordar depois de uma noite como aquelas a fazia se sentir bem menos descansada do que o esperado. Infelizmente, não podia saber o motivo exato para tantos problemas para dormir. Não podia deduzir. Talvez da faculdade que vinha consumindo toda sua energia nas últimas semanas, ou do estresse de morar com aquelas outras cinco meninas, agora ela percebia enquanto ouvia a gritaria. Haviam muitas possibilidades.

Virando o rosto para o lado, os dois toques que deu com o indicador acenderam a tela do celular para que pudesse ver as horas.

Seis e doze.

Da manhã.

De um sábado.

— O quê você vai fazer, Momo, pedir pra me expulsarem? - ela ouviu a segunda voz perguntar, muito mais calma que a outra, apesar das palavras escolhidas. - Eu já pedi desculpas, tá bem? Achei que tinha permissão. Você não se importou da última vez.

Com um grunhido irritado, ela virou-se para o outro lado, o pijama enroscando-se levemente sobre seu corpo com o movimento. Trouxe o travesseiro para cima da cabeça, tentando abafar o som para que pudesse voltar a dormir. Não adiantou.

— Você me pediu da última vez - em resposta, voltou a gritar a primeira voz -, o que não te dá passe livre para fazer isso sempre!

Com mais um grunhido, sendo vencida pelo barulho da discussão, ela se levantou. Devagar, é claro, porque Sana parecia completamente inconsciente do barulho e ainda dormia profundamente na cama acima da sua, ela jogou a coberta para o lado, colocando-se de pé, e saiu em direção à cozinha. Sua chegada interrompeu Chaeyoung, a voz mais calma de antes, bem na hora que ela voltaria a argumentar sobre o que quer que tivesse comido sem permissão.

— Ei, será que vocês se importariam de fazer silêncio? - ela perguntou, apoiando as mãos na cintura, a voz bastante mais baixa que as outras. - É sábado, gente! São seis da manhã...

Revirando os olhos, Momo, a voz irritada de antes, tirou um frasco de vidro com tampa da geladeira, levando-o em direção ao balcão que dividia a cozinha em duas. Em silêncio, ao menos... Parecia ter se convencido dos argumentos da outra.

— Sana ainda não levantou e vocês sabem que a novata chega hoje - ela continuou, andando em direção à pia, buscando por um copo d'água - É essa a primeira impressão que querem passar para ela?

— Se Momo continuar sendo assim - Chaeyoung respondeu do lugar onde estava, com bastante ironia na voz, trocando o canal da televisão à sua frente -, é bom ela ir se acostumando...

Antes que Momo pudesse responder - porque ela ia e já se preparava para voltar a gritar - Jeongyeon a alcançou, apoiando a mão em frente à sua boca. Quando recebeu o olhar surpreso e ameaçador em resposta, no entanto, ela recolheu sua mão.

Levando o copo até a boca, ela bebeu um gole de sua água e deu um sorriso constrangido, decidindo que seria melhor se se afastasse de Momo.

Com os pés sobre o chão, que estava bastante frio por conta do inverno e porque ela calçava apenas uma meia branca e curta até sua canela por baixo da calça do pijama, Jeongyeon andou até o sofá. Sentou-se na extremidade oposta à de Chaeyoung e, antes de se encostar propriamente, coçou a parte de trás da cabeça, colocando os cabelos curtos no lugar porque tinham sido um pouco amassados pelo travesseiro. Perdeu-se em pensamentos enquanto assistia ao jornal, que apenas falava sobre o tempo.

Neve.

— Que horas ela chega? - perguntou a menina ao seu lado, colocando-a de volta no mundo real. Como ela não entendeu a pergunta logo de cara, Chaeyoung repetiu: - A menina nova, Jeong, que horas chega?

— Ah, a senhora disse que por volta das oito e meia - respondeu, colocando os pés cruzados sobre a mesinha de centro e a cabeça no braço, apoiado no sofá -, mas deve chegar mais cedo. Novatos sempre chegam cedo. Todas nós fomos assim.

Chaeyoung deu de ombros antes de voltar a falar.

— Uma pena... Gostava de ter o quarto só para mim. Agora entendo Mina.

Ela jogou o controle da televisão no sofá ao seu lado e pegou o celular em seu lugar.

Trazendo uma caneca branca com uma faixa azul que contornava a borda e um prato com torradas, Momo sentou-se entre as duas, interrompendo a conversa. Deixou suas coisas na mesa de centro e pegou o controle para aumentar o volume da TV.

— Devia mudar pro quarto dela, Chaeyoung... Já que gosta tanto de dividir as coisas.

Jeongyeon chegou a ver o rosto de Chaeyoung esboçar uma resposta, mas ela não veio. Foram dois motivos para isso: além do volume da TV estar já bem alto, Mina tinha acabado de sair de seu quarto individual, o que também fez bastante barulho - a porta bateu atrás dela por conta de uma corrente de ar fria que percorria a casa. Apesar de não ter sido ela mesma quem bateu, Chaeyoung achou bastante pertinente para o contexto da conversa, já que envolvia ela.

— Eu prefiro ter meu espaço, mas obrigada pela sugestão, Momoring - disse, com um risinho, para a provocação.

Sorrindo, ela andou com passos calmos até o sofá. Vestia-se socialmente - camisa branca e saia justa e preta até os joelhos -, pronta para sair para trabalhar. Mirando Chaeyoung, ela terminou: - Estou de saída.

Quando alcançou o sofá, a garota virou seu rosto para ela, de forma que pudessem dar um curto beijo de despedida. No entanto, provavelmente achando que não era o suficiente, Chaeyoung se levantou. Dando passos longos e rápidos para atravessar o espaço entre as outras pessoas no sofá e a TV, ela tomou a mão de Mina para si.

— Vou levar você até a porta.

Ela recebeu um som de ânsia vindo de Momo, que fingiu enjôo da relação das duas. A própria Chaeyoung riu disso e respondeu, ainda de costas para ela: - Não sei como você não se acostumou com isso.

Enquanto Chaeyoung levava Mina à porta, o noticiário começou a falar sobre um incêndio que havia acontecido em uma rua bastante próxima à Belle Époque.

Jeongyeon, que viu os repórteres na rua no dia do acidente, já sabia da noticia; Momo, por outro lado, pareceu bastante chocada. Era natural, até, considerando que a casa incendiada tinha sido completamente escurecida pelo fogo.

— O fogo não podia ter chegado aqui, né? Parece meio longe - perguntou, ainda que fosse algo bastante óbvio.

Enquanto as duas assistiam ao jornal, Chaeyoung alcançou a porta com Mina, que recolocava com alguma dificuldade o sapato que usava para os dias de trabalho.

Quando ela abriu a porta, as duas se despediram com um beijo mais longo, que ambas no sofá podiam ouvir bem claramente. Mas quando o som parou, algo estranho aconteceu.

As duas começaram a conversar. Normal, é claro, se não houvesse uma terceira voz, que parecia ter chegado e flagrado-as à porta.

Isso, provavelmente, seria um problema... Era uma das regras mais claras da república, e estava escrita em uma lousa presa à parede no corredor entre a porta e a sala. Como podiam ter sido tão descuidadas?

Namoros eram proibidos!!!

Chegando à saída, o que viram inicialmente foi apenas Chaeyoung e Mina, que estavam ainda abraçadas logo em frente à porta aberta. As duas olhavam para alguém que estava, inicialmente, fora de vista, provavelmente ainda na escada logo abaixo.

— Sim, aqui é a Belle Époque - explicou Chaeyoung. - Você que é a... nova moradora?

— Eu mesma - respondeu a voz, que nesse momento passou a ser visível também por Momo e Jeongyeon.

Era uma menina baixa, mais ou menos da altura da própria Chaeyoung, mas com a pele bastante mais clara que a dela. Também tinha cabelos escuros de tamanho médio, que alcançavam seus ombros. Ela passou os olhos por cada uma delas antes de continuar:

— Me chamo Kim Dahyun, muito prazer.

Enquanto ela fazia sua reverência, todas trocaram olhares para se encarar, claramente confusas. Ela com certeza tinha visto Chaeyoung e Mina se beijarem... Mas parecia simplesmente não dar a mínima para isso. Isso, ainda que muito estranho, era bastante positivo para elas, a menos que ainda não soubesse das regras ou estivesse fingindo, o que era até bastante provável.

Ainda assim, muito estranho.

Foi Jeongyeon que se colocou à frente para falar assim que a garota voltou o corpo à posição inicial. Julgou que seria bom distrair ela do que estava acontecendo para ver se consertava ou ao menos contornava a situação.

— Muito prazer, Dahyun, Sou Yoo Jeongyeon - apresentou-se, e apontou para cada uma das meninas em seguida. - Essas são Hirai Momo, Son Chaeyoung... e... Myoui Mina...

Nesse momento, ela percebeu que as duas últimas continuavam abraçadas, e se colocou em frente a elas, forçando as mãos atrás de si para separá-las. Não foi nem um pouco discreta afinal de contas.

— Bem, não quer conhecer a casa? Vamos... Leve ela, Momo - terminou, entre os dentes, constrangida.

A menina apenas sorriu para ela com bastante naturalidade e acompanhou Momo para o lado de dentro. Será que era só fingimento? Difícil saber. Jeongyeon ignorou isso, virou-se para o casalzinho, suspirou e fez uma cara feia.

— Mais cuidado, por favor?! - brigou baixinho, se colocando para dentro também.

As três que tinham entrado passaram pelo corredor inicial até o armário de sapatos, onde Momo explicou para a menina, que parecia bem mais confortável que o esperado, onde devia deixar suas coisas quando chegasse em casa. Momo estava bem séria enquanto falava, o que não era algo típico dela, mas Jeongyeon julgou que seria pelo ocorrido de minutos antes - quando ficava irritada, Momo virava uma esnobe arrogante daquelas - e, no fim, estava certa. Descobriria logo depois.

Como na sala não havia muito o que apresentar, já que eram apenas o sofá e a televisão que ela tinha livre acesso como todas as outras, passaram diretamente para a cozinha. Andando até a geladeira, Momo abriu-a para expôr as prateleiras.

Estava completamente cheia, o que significava que Dahyun precisaria arrumár ela para conseguir seu próprio espaço. A última prateleira deveria ser completamente dela, considerando a ordem de chegada na casa, mas ninguém parecia realmente se importar com essa regra. Momo, claro, que já discutira antes com Chaeyoung pelo motivo que a fazia apontar para cada etiqueta, uma depois da outra, parecia se importar ainda menos.

— Essas são as coisas da Jeongyeon, da Chaeyoung, da Mina, da Sana, da Nayeon e minhas... - explicou, rispidamente, e parou para olhar Dahyun mais uma vez. - E logo terão suas coisas aqui também. Basicamente, se tem etiqueta, tem dono - E fechou a porta da geladeira. - Aqui nós não pegamos coisas que são dos outros, ok?

Ela não esperou uma resposta, apenas saiu em direção aos quartos. Dahyun olhou ela sair com confusão, não entendendo exatamente de onde tinha vindo aquele desgosto todo em sua voz.

A outra veterana, por outro lado, apenas sorria nervosamente com a grosseria: - Não se preocupe - acalmou. - Tivemos um... um histórico mais cedo... Ela ainda está um pouco irritada, sabe.

Enquanto ela dizia isso, Chaeyoung voltava à sala, e se sentou novamente no sofá sem olhar para mais ninguém.

Tão antipática... A primeira impressão que Jeong tinha comentado mais cedo realmente não era nada importante para aquelas duas.

— Bom - continuou a veterana, chamando a atenção da Dahyun mais uma vez -, por que não vemos seu quarto agora?

Mal tendo encostado o corpo no estofado ainda, a simples menção daquela palavra fez a garota do sofá se levantar novamente. Era seu quarto também, afinal, e ela não ia querer que a novata conhecesse seu espaço sozinha.

Ela foi se aproximando das outras duas no tempo em que Jeongyeon terminava sua explicação do porquê não podiam passar em seu quarto, mesmo que ela própria não tivesse problemas com isso:

— Minha colega de quarto ainda está dormindo, ela acorda tarde aos sábados. Todas nós temos alguns hábitos, acho que você já deve ter percebido. Você vai se acostumar com essas coisas com o tempo.

As três saíram em direção aos dormitórios e entraram na última porta da esquerda. Havia ali uma beliche alta e toda branca do lado esquerdo, e uma longa bancada de madeira marrom-clara que cobria todo o espaço da parede do lado direito. Os móveis eram grandes, mas ainda havia espaço suficiente para que andassem as três juntas no ambiente. Era provavelmente o maior quarto da Belle Époque, Dahyun supôs.

Na parte mais próxima à janela, algumas coisas espalhavam-se ao redor de um notebook aberto, mas apagado, e na parede logo acima, algumas prateleiras estavam cheias de livros de direito. Todos, obviamente, de Chaeyoung, sua colega de quarto. Ela foi a primeira a entrar.

— Eu durmo na cama de cima, mas você pode escolher qual cama preferir - ela disse, começando a juntar os papéis de seus estudos em uma pequena pilha que deixou logo ao lado do computador. - Não me importo com qual das duas você escolher. Podemos trocar os colchões também, ou apenas os lençóis, como quiser.

Depois de organizar as coisas, ela deu leves batidinhas com o punho fechado na madeira antes de continuar: - ... Mas o lado da bancada perto da janela eu gostaria de manter.

Dahyun entrou no quarto também, acenando levemente com a cabeça e um "ok" para confirmar que tinha entendido toda a informação. Não escolheu a cama logo de cara, mas, com passos lentos enquanto estudava seu novo aposento, levou a mala de mão para o espaço logo abaixo do seu lado na bancada. Colocou-a tão suavemente que não emitiu ruído algum.

— Ah, acho que prefiro a cama debaixo mesmo - ela respondeu, sorridente. - Mas obrigada.

Jeongyeon, por sua vez, que ainda estava à porta, acenou com a mão ao alto. Um sorriso no rosto para se despedir.

— Bem, vou deixar vocês se organizarem - disse, já tomando o caminho para a sala. Do corredor, gritou: - Depois te mostro os arredores, Dahyun, me procure!

Apesar do plural usado por Jeong em "vocês se organizarem", Chaeyoung também não ficou mais muito tempo ali, com ela. Tudo o que fez para terminar de colocar suas coisas no lugar foi fechar o notebook e ajeita-lo mais ou menos ao canto para não ocupar muito espaço. De alguma forma, parecia tentar não incomodar muito a novata, apesar de não parecer bem o tipo de pessoa que se importava de incomodar os outros. Era bastante descolada e "na dela", ou ao menos foi a impressão que a própria Dahyun teve.

Ela seguiu para a porta e continuou: - Em geral, se precisar de mim, já que dormiremos juntas... ou estarei aqui no quarto, ou na sala, ou na faculdade. Ou... - e parou um instante, claramente pensando se devia mesmo dizer o que estava em sua mente, apesar de ser algo que falava naturalmente com as outras meninas. - Bem, você pode me chamar pelo grupo do dormitório. É o jeito mais fácil de me encontrar.

E saiu, com um sorriso de canto, um som de estalo da língua e um gesto de arminha de mão, deixando Dahyun sozinha, com suas coisas e seus pensamentos para colocar no lugar.