Immortalem - O Pacto com o Inimigo escrita por MiTó Videira Ramalho


Capítulo 1
Capítulo 1




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— Está tudo bem?

 

— Porque não haveria de estar!? – respondi à voz estranha que interrompeu os meus pensamentos.

 

— Não sei, talvez porque não é muito normal uma rapariga estar no meio de uma praia deserta em pleno inverno, de olhos fechados virada para o mar... - permaneci na mesma maneira que estava. Era uma voz forte e cansada, deveria ser um senhor de meia-idade.

 

Como estava a demorar para responder ele continuou: - Por acaso não estás a pensar em afogares-te, pois não?

 

— E se estivesse?

 

— Não iria permitir isso. – respondeu-me.

 

Abri os olhos e virei-me para ele com a intenção de o mandar embora e deixar-me sossegada, mas quando o vi, não consegui dizer nada.

 

Ele era lindo... Pouco mais velho do que eu, devia ter cerca de 25 anos, tal como a sua voz, também parecia cansado. Era alto, com o corpo bem definido. A sua pele era bronzeada e o seu cabelo castanho escuro meio ondulado. Mas o que mais me surpreendia na sua aparência eram os seus olhos, eram magníficos, eram da cor do azul do mar raiados de verde, profundos e transmitiam uma tranquilidade enorme. Trazia uma corrente ao pescoço com um tridente e vestia umas simples calças de ganga e uma camisa azul que fazia realçar mais os seus olhos. Estava descalço com os pés enterrados na areia. Como era possível que ele não sentisse frio?

 

Após algum tempo, recuperei novamente a voz e consegui dizer finalmente: - E como é que pretendias impedir-me se eu quisesse mesmo afogar-me?

 

— Se eu te dissesse não irias acreditar!

 

— Experimenta! – Voltei-me novamente para a imensa água à minha frente, respirei fundo e, para minha surpresa, cheirava a mar.

 

— Ordenava que a água não te deixasse ir ao fundo e que te trouxesse novamente para terra firme.

 

— Essa foi para rir? E como é que pensavas fazer isso?

 

— Não duvides das minhas capacidades...

 

— Pois, vou fingir que acredito!

 

Ficámos em silêncio, apesar de não o conhecer, era agradável falar com ele. Por isso para evitar que ele fosse embora, comentei:

 

— Cheira a mar!

 

— E porque não haveria de cheirar? – perguntou com um sorriso matreiro nos lábios.

 

— Porque aqui é assim, - respondi – estamos numa pequena praia numa ilha no imenso oceano, mas nunca cheira a mar.

 

— Gostas quando cheira?

 

— Bastante, é relaxante! – respondi.

 

— Se dizes que aqui nunca cheira e gostas tanto, porque vieste para esta praia e não para outra? – perguntou com bastante curiosidade.

 

— Porque eu precisava de estar sozinha. – disse sem pensar.

 

— Queres que me vai embora? – acenei negativamente com a cabeça – Sabes que estamos em pleno inverno, todas as praias iriam estar vazias.

 

— Não como esta!

 

— Como assim? – A sua expressão mostrava que não tinha percebido o meu comentário.

 

— Olha à tua volta...

 

— O que tem? – perguntou a olhar para a praia.

 

— Não vês?

 

— Não vejo o quê? Não estou a compreender nada. – ele estava mesmo confuso.

 

— Esta praia foi abandonada por todos. O acesso é péssimo, ou vimos de barco, ou então estamos condicionados às marés. E por falar em marés, o mar parece que perdeu a vida, a areia não tem cor e ainda há a questão do cheiro. – expliquei.

 

— O que queres dizer?

 

— Não percebes, este lugar está totalmente abandonado, de Verão, também ninguém cá vem. Até os deuses abandonaram a praia.

 

— Os "deuses"? – perguntou ele muito surpreso.

 

— Sim.

 

Após um momento de silêncio, inquiriu. – Acreditas neles?

 

— "Neles"?

 

— Sim, nos deuses?

 

Depois de pensar em como responder àquela questão, lá disse:

 

— Não é bem acreditar! É mais uma brincadeira com as minhas amigas. Acho que as religiões só servem para certas pessoas ganharem a vida à custa dos outros. Não acredito que existam deuses, santos, milagres e essas coisas. Sou mais da ciência. Mas todas as pessoas na hora de maior angústia ou aflição necessitam de uma força, ou de alguma coisa a que possam recorrer para não se deixarem ir a baixo e que lhes dê esperança de que dias melhores estarão para vir. E até eu preciso disso. Então porque não os Deuses Gregos?

 

— Interessante essa teoria. – disse ele a sorrir – Mas voltando atrás no assunto, estás enganada, não acredito que quem controla os mares se fosse esquecer do seu próprio reino.

 

— Olha à tua volta! – voltei a repetir.

 

— Já pensaste, que tal como tu necessitas de um lugar para estares sozinha, também ele queira um para a mesma finalidade? – deixou-me a pensar por um momento e, continuou – Numa coisa tens razão, não há melhor local para esquecer dos problemas do que aqui. É para onde eu sempre venho quando quero esquecer dos meus.

 

— E qual é o problema desta vez? – falei antes de me poder impedir de lhe perguntar.

 

Ele ficou pensativo e virou-se para o mar.

 

— Desculpa, não quis ser intrometida. Mas sabes que às vezes desabafar com um estranho ajuda. – não queria mesmo bisbilhotar a vida dele, mas enquanto falava-mos sobre ele, pelo menos esquecia-me das imagens que teimavam em passar pela minha cabeça.

 

— Por que motivo eu te contaria o que se passa comigo, há muito outros estranhos por aí. Eu nem sei o teu nome. – respondeu mal-humorado.

 

— Se não queres falar, não fales, mas não é necessária tanta arrogância. – com isto virei-lhe as costas pronta para ir embora.

 

Senti um aperto no meu pulso, era uma mão forte mas não o suficiente para me magoar. O toque da mão dele transmitia-me uma sensação estranha, poderosa e eletrizante mas, ao mesmo tempo muito agradável.

 

— Espera. – continuei virada de costas, ele manteve o aperto no meu braço. – Desculpa, tu não tens culpa dos meus problemas e eu acabei por descontar em ti. Não devia ter falado assim, não tinha esse direito. Será que podemos voltar no tempo até ao momento antes da minha atitude parva?

 

— Desculpas aceites, mas devíamos ir embora, a maré está a começar a subir. E a menos que tenhas um barco por aí, vamos ficar presos aqui.

 

— Temos outra opção para sair...

 

— Temos!? 

 

— Sim, por aquelas escadas. – disse ele a apontar para uma escadaria encostada à falésia que vinha de uma vivenda. 

 

Fiquei a olhar para a vivenda, aos anos que vinha aquela praia e sempre me perguntei quem moraria naquela casa tão isolada. 

 

— Não vou invadir propriedade privada.

 

— Não é invasão quando é o dono a convidar-te.

 

— Aquela vivenda é tua? Tu moras ali? – perguntei admirada.

 

— Sim e não. Sim é minha, mas não moro permanentemente lá. Gosto de pensar que é o meu refúgio quando quero fugir dos problemas.

 

— Como agora? – perguntei voltando ao assunto anterior. 

 

— Sim, como agora.

 

Sentei-me e ele fez o mesmo. 

 

— Então seja muito bem vindo ao meu consultório, pode-me contar o que o preocupa! – falei em tom de brincadeira.

 

— Sério? Agora és psicóloga?

 

— Não, futura enfermeira, é muito mais diversificado, faço um pouco de tudo. – brinquei – E para além disso, dizem que tenho o dom de conseguir perceber o que aflige cada mente.

 

— Oh, isso faz toda a diferença. Então o que me aflige? – perguntou cético.

 

Olhei para ele pensativamente: - Eu diria que são problemas relacionados com a família.

 

Ele olhou para mim com admiração no olhar, mas não disse nada, por isso perguntei: - Adivinhei, certo?

 

— Como sabes?

 

— Todos têm problemas com a família. Não sei. – encolhi os ombros – É como se os olhos das pessoas fossem uma janela para o que vai dentro da mente, então é só olhar com atenção e perceber o que se passa lá dentro.

 

— Sério? Então e nas minhas "janelas" o que se pode ver? – perguntou.

 

Olhei para os seus olhos, eram tão parecidos com o mar, até dava a sensação de se verem as ondas, fiquei perdida neles.

 

— Então? – procurou, uma vez que eu não tinha dito mais nada.

 

— Desculpa! – concentrei-me e disse – Mostram que estás chateado com alguma coisa e que já dura há muito tempo. Que já estás cansado disso e daí que tenhas vindo para aqui, porque querias ficar sozinho.

 

— Uau! Tu és boa nisso.

 

Sorri para ele: - Família?

 

Acenou com a cabeça: - Discussões e mais discussões com os pais dos meus irmãos.

 

— Com os pais dos teus irmãos!? Não deviam ser teus pais também? – perguntei.

 

— Não, na verdade eles não são meus irmãos, são os meus melhores amigos, mas eu considero-os como irmãos que eu nunca tive. – explicou.

 

— Mas não te dás bem com os pais deles?

 

— Não, eles é que não se dão bem comigo. Querem controlar o que me pertence, então estão sempre a arranjar confusão comigo e a tentarem prejudicar-me.

 

— E os teus pais não te ajudam?

 

— Os problemas ficaram piores desde que os meus pais morreram e eu tomei posse de tudo que era deles. 

 

— Oh! Lamento muito! – eu e a minha boca grande.

 

— Já foi há algum tempo. Mas todos pensavam que eu nunca iria assumir o poder e que iria deixar todo ser tratado pelo meu sogro.

 

— És casado? – perguntei admirada – Desculpa mas pareces um pouco novo para já seres casado.

 

— Já não sou. Que foi o principal motivo da discussão desta vez. Com a separação eles já não podem opinar nada sobre as minhas decisões e, isso não lhes agrada nada. – explicou. 

 

Olhei para ele confusa. 

 

— Desculpa é difícil de explicar – respirou fundo e continuou – Podemos mudar de assunto, por favor, e tu, qual o motivo de estares aqui?

 

Não lhe respondi, só de pensar sentia um aperto no peito, por isso, dei-lhe uma resposta que não era totalmente mentira: - Estou a passar férias.

 

— Vá lá, eu contei-te o que se passava comigo, agora é a tua vez. – acusou.

 

— Estou com a esperança de que se não falar sobre o assunto o esqueça mais depressa.

 

— Sabes, uma vez, uma sábia rapariga disse-me que falar com estranhos ajudava e, olha que ela tem a sua certa razão.

 

— Oh! Não uses as minhas próprias palavras contra mim. – protestei.

 

— Mas foi o que disseste e, olha que é bem verdade. – disse ele – Mas se não queres falar sobre o assunto, ninguém te vai obrigar, podemos falar sobre outra coisa qualquer.

 

Olhei em direção do oceano, era tão grande e imponente, tanto se passava dentro dele, tantas tragédias e desastres, que os meus problemas ao pé dele não passavam de coisas insignificantes. Mas mesmo com esse pensamento continuava a ser difícil de acreditar que pessoas tão próximas de mim me podiam ter feito aquilo, não era possível que pessoas que considerava amigas me pudessem trair daquela forma. Continuei em silêncio, mas dei-lhe o meu telemóvel com o vídeo a reproduzir.

 

— É o meu namorado, ou melhor dizendo, o meu ex-namorado e uma amiga minha.

 

— Mas eles estão na cama juntos. 

 

— Porque é que achas que eu corrigi para ex-namorado? – perguntei – Não vi o vídeo todo, mas não é preciso ser muito esperta para saber como acaba.

 

— E ela é tua amiga? Ela é uma bruxa, ainda é pior do que a Hécate! – comentou quando me devolvia o telemóvel. 

 

Tive de me rir com a piada dele: - É quase isso!

 

— Bom, ao menos consegui fazer-te rir. Espero que tenhas feito alguma coisa, para te vingares. – acenei negativamente com a cabeça. – Sério? Não fizeste mesmo nada? Nem um pequeno pontapé nas partes dele e um puxar de cabelos nela? Uma pequena vingança?

 

— Duas coisas: – disse – primeiro: não sou do tipo de me vingar, isso só demostra que sou do nível deles; segunda: mesmo que quisesse não tive tempo.

 

— Que pena, podias ter feito uma pequena vingança. – disse ele desiludido.

 

— É... e depois perdia o avião! – respondi – Enviaram-me o vídeo em número privado quando estava a embarcar.

 

— Então ainda bem que não fizeste nada, caso contrário, não estaríamos aqui e não poderíamos ver este lindo pôr-do-sol. – comentou ele.

 

Não me tinha apercebido das horas passarem e que o sol já se estava a pôr. Ficámos a ver o sol desaparecer no mar, era magnífico e espantosamente belo. O silêncio que caiu sobre nós era confortável e não havia a necessidade de preenchermos o tempo com palavras. Não sabia como era possível, mas de alguma forma, sentia-me bem ao lado deste estranho. A companhia dele tinha-me feito, por momentos, esquecer o João e a Elisa e, isso era o mais importante. Após algum tempo de silêncio, ele comentou:

 

— Apolo quando quer, sabe fazer o seu trabalho em termos.

 

— Não percebi?

 

— O Apolo quando quer faz o trabalho bem feito. Olha o lindo pôr-do-sol que ele nos proporcionou, nem sempre é assim. – explicou.

 

— Eu é que brinco que sou a crente, mas tu falas como se acreditasses e convivesses sempre com os deuses.

 

Senti o telemóvel a vibrar no meu bolso antes mesmo de tocar. Era uma mensagem do Luke:

 

"Ainda demoras?"

 

— Tenho de ir! – disse.

 

— Já? – perguntou desiludido.

 

— Sim, era o meu irmão, - expliquei – estão à minha espera.

 

— Oh! Sendo assim eu acompanho-te até lá em cima. A maré já subiu.

 

Fomos em silêncio até ao cimo da falésia. Quando acabamos de subir dei por mim num jardim lindíssimo, com um relvado enorme com alguns canteiros de flores muito bem arranjados. Atravessamos o jardim até ao portão da frente que dava para a estrada onde tinha o carro estacionado.

 

— Quando quiseres ir até à praia podes vir por aqui. Não tens de estar condicionada as marés. – ofereceu ele. 

 

— Obrigada... - fiquei a pensar – ainda não sei o teu nome.

 

— Maikekai... quer dizer, Kai, sim isso, podes-me chamar Kai.

 

— Kai!? Tens a certeza? Não pareces muito certo disso!

 

— Talvez daqui a uns tempos te responda com mais convicção. E o teu?

 

— Katherine! – respondi.

 

— Prazer Katherine – disse ele ao depositar um leve beijo na minha mão – gostei muito de te conhecer.

 

— Eu também, - disse – foi boa a tarde, por momentos deu para esquecer tudo.

 

— Vou voltar a ver-te? – perguntou.

 

— Não sei, vou estar aqui mais uma semana, tudo é possível. – disse – Adeus Kai.

 

Quando virei as costas e fui em direção ao carro, ainda sentia um leve formigueiro na mão onde ele tinha beijado. Antes de entrar no carro, inspirei profundamente para absorver o cheiro salgado do mar, porém tudo estava como antes, não senti cheiro nenhum, olhei a minha volta e já estava completamente sozinha.


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Notas finais do capítulo

Esta é a primeira história que escrevo e espero que gostem. Agradeço críticas e sugestões. Será publicado um novo capítulo todas as semanas.



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