Monalisa escrita por Minerva Lestrange


Capítulo 1
Capítulo Único




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O ruído foi ensurdecedor assim que pisou no palco após a troca de roupa. Àquela altura, era quase anestésico para Monalisa, como se sentisse a energia chegar até ela, retumbando em seu peito de forma pesada, mas não absorvendo realmente o efeito. Talvez, fosse pela forma como parecia fazer tudo no automático há meses, talvez anos. 

De qualquer forma, a recepção era sempre igual se estivesse em um Versace completamente elaborado ou vestindo calça jeans, camiseta e tênis, como naquele momento. Não se sentia festiva, embora aquele dia devesse ser comemorativo e ela se esforçasse em algum nível em nome do show. 

O baterista rebateu a expectativa da plateia, mas parou ao notar que estacou no meio do palco após ser avisada pelo ponto eletrônico, que o microfone precisava ser ajeitado. Se apoiou pesadamente contra o tripé do microfone, percebendo a própria lentidão, e esperou que o assistente de palco fizesse o seu trabalho, ajeitando o microfone sob sua camiseta, já que havia caído quando subiu as escadas de forma rápida e decidida. 

Sob os óculos rosados, tentou focar em algum rosto específico na multidão que a devorava entre maravilhada, em expectativa e até preocupada, mas, no fim das contas, simplesmente, esperava o próximo espetáculo. Estava cansada de ser aquela entidade distante. Era isso o que Monalisa era, no fim das contas: uma atração para olhos ávidos e estranhos. 

Com sorte, as lentes disfarçariam seus olhos moles e inchados, bem como o quase desprezo que habitava cada expressão em seu rosto, inclusive o retorcer dos lábios pintados em batom vermelho vivo, um contraste com a camiseta branca, quando retirou do bolso o papel que vinha guardando com tanto cuidado desde aquela manhã.

Ainda não estava bêbada às quatro da madrugada, quando as palavras simplesmente escorreram de seus dedos e de sua mente raramente focada. Lentamente correu os olhos pelas letras e engoliu em seco. Não estava pronta para seguir em frente, porém, não seguiria em frente se, simplesmente, não gritasse tudo aquilo num paradoxo que parecia rir dela. Seria a primeira vez que se apresentaria depois de tudo. 

Mordeu os lábios e se encaminhou até o piano, no centro do palco, notando a brisa fria do fim de tarde, que anunciava o temporal próximo. Se sentou junto ao instrumento com familiaridade e testou uma nota, focando os olhos débeis no horizonte pesado e acinzentado, que se formava acima da arena. Por trás da iluminação artificial do estádio aberto, as nuvens pareciam antecipar a expectativa, que, talvez, crescesse apenas nela mesmo em reflexo à sua ansiedade, levemente minada pelo álcool. Bem, não era o suficiente. 

Sem se preocupar com o tempo e com os olhares julgadores da lateral do palco, respirou fundo e levou as mãos aos cabelos, soltando-os sem cuidado, sentindo a textura dos cachos longos e loiros suados se espalhando por suas costas e ombros no ritmo da brisa úmida que a alcançava sem reservas. Ele gostava de seus cabelos soltos, mas caindo em sua típica desordem sob sua pele nua e alva. 

Colocou a partitura amassada sobre outra, que alguém havia deixado no piano mais cedo, e encarou novamente os primeiros versos. Provavelmente se arrependeria de tudo aquilo. Testou novamente outra nota. O público esperava a próxima canção. Seus olhos resvalaram na expressão furiosa de seu agente, que, de braços cruzados, podia apenas aguardar seu próximo movimento. 

Ao menos ali, naquele pequeno espaço e pelo breve período de tempo permitido, era Monalisa quem ditava o ritmo. Não havia ninguém a rodeando, não havia ninguém opinando, não havia ninguém determinando, não havia ninguém, nem ele… Apenas ela por si mesma. Sentia que sempre havia sido assim, independente de todas as luzes, flashes e aplausos. Até que ele apareceu e ela escolheu quebrá-los para mantê-los como deveriam ser. Tinha consciência do fardo que era. 

Desviou os olhos para o colo e rapidamente controlou o embaçar das vistas, decidindo que precisava de alguma coragem. Abriu a garrafa de gim deixada sobre a cauda do piano e despejou uma dose no pequeno copo. O gole foi certeiro e cortou sem desculpas ao descer por sua garganta. Absorveu o efeito com uma careta, ouvindo os gritos ávidos do público. Aquele só poderia ser um espetáculo memorável mesmo, pensou com ironia ao bater o copo com força sobre o instrumento e limpar os lábios molhados com as pontas dos dedos.

Respirou fundo, sentindo o impacto imediato da bebida nos próprios nervos. Voltou a focar no papel, a letra escrita à mão desenhada em um garrancho do qual ele sempre reclamava, - mesmo que não se importasse muito, pois estava em cada post-it da casa dele -, sobre a folha amassada. 

No entanto, naquele momento, era a única coisa que não parecia borrada para sua visão questionável em comparação com a iluminação do palco, a plateia ao longe e os músicos ao redor. Sentia como se aquela fosse a canção mais importante de toda a sua vida, ainda que fosse apenas sua, e, por isso, parecia estar gravada nela inteira, mais do que no papel. 

— Eu… - Sua voz divagou sem precisar se erguer. - Eu escrevi essa música hoje. No estúdio da minha casa, antes de vir para cá. - Sua respiração foi frustrada contra o microfone, mas não se importou enquanto seus dedos novamente testavam uma tecla ou outra e dava de ombros. - É simples, eu acho, mas… Er… Sinto que… 

Seus olhos se voltaram novamente para a plateia, à direita. A música que realmente deveria tocar estava destacada e em pausa no monitor logo ao seu lado. Imaginou se deveria deixar tudo aquilo de lado, mas, estava tão cansada daquelas merdas que tinha de repetidamente fazer porque alguém havia mandado. 

Assim, voltou a focar novamente no céu pesado, pensando consigo mesmo que, especialmente agora que se encontrava no centro da atenção daquela multidão, parecia longe demais, como tudo o que mais desejava em sua vida. 

Naqueles dias chuvosos, eles costumavam ficar deitados e satisfeitos na cama de estilo japonês junto à janela, encarando a água escorrer pelo vidro transparente, como se o mundo fosse, de fato, tão tranquilo quanto parecia naqueles breves instantes. Ponderando em embriaguez agora, eram instantes tão breves e raros - por Monalisa ser quem era, principalmente -, que se lembrava com clareza de tudo, mesmo que sua voz falhasse e estivesse meio bêbada perante centenas de pessoas. 

O brilho dos olhos azuis claros iluminados pelo abajur amarelado, a textura da barba por fazer contra seu pescoço, o rosto afundado no volume suado de seu cabelo, o perfume a envolvendo por inteiro ao pegar emprestado um moletom velho qualquer, pois ele não era apegado a compras, os dentes mordendo seus lábios enquanto a beijava de forma tão lasciva, que a deixava tonta como ninguém jamais fizera, quando podiam se encontrar.

Cada sensação que as lembranças traziam era tão vívida que sentia como se todos ao redor pudessem sentir também: em seus poros arrepiados, seus olhos avermelhados ou, simplesmente, em sua voz. 

— Quando eu era criança, lembro que as nuvens pareciam falar comigo… Não é muito diferente de como me sinto hoje, mas, cercada por quarenta mil pessoas, a sensação é… - Voltou a encarar a letra disposta ao piano e suspirou, deixando a postura cair um pouco, mesmo que sentisse a expectativa ao redor apenas crescer. - Esta é uma canção sobre… A pessoa mais importante da minha vida. - Engoliu em seco, mordendo os lábios e inclinou a cabeça, forçando sua mente a se concentrar. - Provavelmente nunca será lançada. Eu gosto de… Manter algumas canções para mim e nunca deixar o mundo saber como, realmente, estou. E esta é uma delas… Mais ou menos, que seja.. Precisava dizer essas palavras. Foda-se. 

Tirou os óculos de lentes rosadas em um impulso e jogou sem cuidado no chão do palco, enquanto os gritos ávidos ressoavam por toda a arena acompanhando as primeira notas dramáticas de seus dedos ao piano, não demorando a se transformarem em um dó natural para seguir sua voz grave, mas arrastada, àquela altura.

Aquele era o tom que deveria ter. Era irônico, no entanto, que já se odiasse enquanto cantava implorando que ele não a deixasse, pois havia feito exatamente isso. Aquela letra dúbia a irritara a princípio, mas a recordava perfeitamente da sensação de quando fechou a porta do apartamento dele após decidir quebrar o coração de ambos. 

Por um momento, enquanto processava as próprias palavras no elevador do prédio dele, foi como se um turbilhão a atingisse em detrimento da constante letargia que a tomava todos os dias em sua rotina comum. O mesmo acontecia enquanto cantava aquela canção, mais sincera do que qualquer outra que saíra de sua boca. 

Aquele jamais seria seu último drink, sua voz arranhou no verso, e ele era… Bom demais. Para ela, para aquele mundo, para as pessoas que a cercavam, para a realidade a qual parecia atada para o resto da vida. Todavia, cantar para que ele não a deixasse parecia tornar o pedido eterno, em detrimento da cruel realidade do fim deles. 

“Estraguei tudo novamente, eu sei.”

Monalisa soava inteira como um problema em tempo integral, alguém que precisava ser, o tempo todo, cuidada para que não fizesse ou falasse qualquer besteira, tinha consciência o bastante para saber se retirar da vida de alguém que não precisava lidar com isso - não por escolha. 

Se lembrava perfeitamente do dia em que ele dissera detestar holofotes, mesmo aqueles relacionados aos próprios trabalhos. Detestava estar sob o escrutínio alheio, algo com o que ela lidava a todo o instante desde que podia se lembrar. Algumas coisas ficaram no passado, mas este era o estado mais constante de sua vida. 

Todos que conheceu durante aqueles anos se associaram à ela desejando tomar algo - seu dinheiro, seu tempo, sua fama, sua atenção -, ou, ao menos, era assim que aparentava. Por isso ele parecia tão diferente, perfeito, como um sopro de ar fresco necessário em meio a um ambiente abafado e desolador, desenhado para ser ilusoriamente atraente. 

Até notar o quanto precisava dos holofotes e, ao mesmo tempo, o quanto não queria fazer dele um objeto das suas necessidades e vaidades. A prova disso era estar naquele palco cantando aquela canção particular demais para os ouvidos de qualquer um que se achava digno de conhecer aquela história em específico. Ninguém era, Monalisa havia decidido assim. 

“Eu amo você e sinto muito”. 

As notas voltaram a soar sem que sua voz acompanhasse por um momento. Era uma melodia tão simples, que chegava a ser ordinária. Sabia muito bem o que seu produtor diria e como seu agente desdenharia de qualquer coisa vinda apenas de sua autoria. Era assim que as coisas funcionam e, por isso, seu arquivo pessoal estava repleto daquelas canções avulsas e sem sentido esquecidas em pontos distintos de sua vida. 

Fechou os olhos e tocou de forma mais agressiva, seus dedos fazendo com que o som retumbasse contra si de forma totalmente diferente do que havia acontecido no estúdio mais cedo. Na solidão de uma sala vazia, aquelas notas não pareciam tão raivosas. Mas eram, no fim das contas. Agora podia notar. 

Não era apenas por amá-lo que precisava dele. Precisava dele para colocá-la no chão e abraçá-la no silêncio do que eles eram diante do barulho ensurdecedor do mundo ao redor. Tão ensurdecedor que a fazia tremer e temer, em ansiedade, ao mesmo tempo. 

De outra forma, não tiraria cada palavra de seu peito com o peso que estava fazendo, seu timbre retornando mais rasgado do que nunca aos seus próprios ouvidos, como se não houvesse mais plateia e restassem apenas Monalisa e o piano à sua frente em um quadro mais solitário do que de costume. 

“Não me abandone, eu iria me odiar até a morte.” 

Suas ações não condiziam com o que queria, de fato. Havia dito adeus desejando, mais do que qualquer outra coisa, simplesmente ficar, pois tudo o que havia permanecido em sua vida soava fabricado demais; e fechado a porta do que poderiam ser querendo explorar todas as possibilidades existentes com ele. 

Se lembrou do que havia comentado em tom depreciativo durante um de seus primeiros “não-encontros”, como intitulavam aquilo que tiveram por um tempo, pois, não se conheciam até aquela fatídica situação degradante num banheiro de uma festa qualquer, portanto, seus encontros não tiveram qualquer fundo romântico por muito tempo. 

— Estou naquela idade. 

Comentou de maneira displicente, deitada sobre o tapete macio do apartamento nova-iorquino dele. Havia examinado tudo com muito interesse para tentar desvendar a personalidade dele, que insistia em continuar um completo mistério atrás de olhos azuis acinzentados e voz baixa. 

— Que idade? - Perguntou sem muito interesse, sentado no sofá esboçando algo no papel que mantinha em seu colo. 

— 27. - Do chão, o viu encará-la de maneira cética, quase suprimindo um riso. 

— E você acha que seu destino é o mesmo de Hendrix, Joplin e Cobain? Porque são todos estrelas do mesmo patamar? - Monalisa deu de ombros ante a ironia e brincou com uma mecha dos longos cachos platinados. 

— Quem pode saber. 

Ele apenas a encarou, consciente do motivo para cultivar aqueles pensamentos, mas nenhum dos dois continuou a discutir o assunto naquele dia. Notou que havia fechado os olhos de forma automática no auge do refrão, no momento em que cantava como seu coração se quebraria sem ele. 

“Preciso mais de você do que desta bebida.”

Tudo parecia mais doloroso por conhecer a verdade que vertia por cada sílaba e nota, uma vez que, também não era mentira como não conseguia se livrar deste seu outro lado em nome dele. 

Quando abriu os olhos, sentiu as lágrimas insistirem em nublar suas vistas de forma quase desesperadora. Sua voz, já apertada demais a essa altura pela garganta fechada pelo choro quase iminente, faltou e Monalisa teve de quebrar um verso na metade para conseguir respirar novamente. 

Seus olhos relancearam na direção da plateia novamente, em silêncio, como que em respeito a um momento que talvez parecesse particular demais, embora todos prestassem atenção ao que seria objeto de teorias pelos próximos meses. Com essa parte não se importava muito, a fantasia soava melhor do que a realidade, às vezes, e sabia muito bem disso. Assim, eles fantasiavam sobre a vida que cantava e ela fantasiava embriagadamente sobre a própria realidade. 

Voltando sua atenção ao papel amassado à sua frente, cantou mais baixo e firme, tentando finalizar da forma como tinha escrito de maneira quase apressada na partitura improvisada, como havia tirado no piano mais cedo, do lá para o mi bemol, mas voltou a olhar para o fosso próximo ao palco, onde, em meio aos convidados, o rosto conhecido se sobressaiu. 

Não soube como conseguiu se manter sentada junto ao instrumento e o microfone, embora seus dedos tivessem tremido para conseguir continuar a tocar, prolongando a canção e o momento. Mesmo de longe e sob todas as luzes do palco, sentia seus olhos conectados aos dele, também estacado seriamente, de braços cruzados, ao lado de estranhos empolgados, sem precisar se esforçar para se manter no canto mais escuro do local. 

Jamais havia aceitado participar de um de seus shows e preferia que fosse assim, a exposição e a pressão não faziam bem a ninguém. Era irônico que tivesse feito uso daquele crachá justamente quando tudo estava acabado. 

Ainda assim, no entanto, podia identificar a intensidade dos olhos azuis acinzentados sobre ela, qualquer que fosse a distância, bem como a óbvia irritação na mandíbula apertada sob o boné escuro para evitar chamar a atenção. Ele estava decepcionado, mas não mais do que Monalisa consigo mesma, ao menos disso tinha certeza, divagou. 

“Perdi um amor e cometi alguns pecados”

Piscou, sentindo o suor escorrer atrás de seu pescoço e salpicar suas costas, fazendo os fios claros de seu cabelo grudarem ali e conservarem o aspecto bagunçado a cada nota mais grave. 

Tentou espantar as lágrimas, que já deveriam ter borrado toda a sua maquiagem, e se voltou ao piano, se concentrando na melodia novamente para finalizar após prolongar o trecho final de maneira atípica, distraída por ele e pelas lembranças abstratas do que costumavam ser. 

Quando levantou a cabeça novamente, mais tonta do que se recordava, viu a silhueta conhecida abrindo caminho entre as pessoas, deixando o local enquanto cantava. 

— Amo você e sinto muito.

Terminou a última nota quase sofregamente e respirou fundo, com os olhos ainda no local em que ele havia sumido bem diante dela. 

Durante um breve minuto, enquanto fitava todos aqueles rostos desconhecidos, foi como se ele sequer tivesse estado ali e, dado o seu nível de embriaguez, até acreditaria que fosse apenas algo de sua cabeça, mas não… Por algum motivo, ele estivera, realmente, ali e havia escolhido ir embora. 

Era como se, então, se sentisse ainda mais sozinha, mesmo em meio a todas aquelas pessoas. 

Ignorando os aplausos, assovios e gritos da plateia e da equipe, surpresa pela performance, e, como se saísse de sua própria catarse, empurrou o microfone de forma abrupta, causando uma interferência quase ensurdecedora

Não soube como conseguiu se levantar sem trançar as pernas em sua visão embaçada e movimentação incerta pelo álcool antes de arrancar sem cuidado os fios do microfone rodeando seu corpo e agarrar a partitura amassada para sair do palco.  

FIM


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Notas finais do capítulo

Olá!

Depois de tooodas as fanfics em diversos fandons, trouxe uma história original, pela primeira vez confortável para compartilhar outras coisas que saem da minha cabecinha.

É uma oneshot inspirada na música 'Dope' de Lady Gaga, em resposta a um Desafio Mensal: um conto com começo, meio e fim. Trata-se de um esboço que pode vir a se tornar algo maior, quem sabe...

Faça esta autora feliz e deixe um comentário pra eu saber se gostou!

Até breve ♥