JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 47
Capítulo 47




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A cena pavorosa lembrava um pastiche surrealista, um surto psicótico de algum artista durante a criação da sua obra. Acendeu-lhe com tintas fortes o medo que tinha de sentar numa cadeira de dentista, pois era aquilo o que a sua mente sugeria que fosse a obra de um homem que lhe torturava as gengivas para arrancar seus molares, numa época em que ainda se usava gás hilariante como anestésico. Talvez as gargalhadas fossem para manter a boca arreganhada, com os objetos de desejo do torturador à vista. Mas ali não havia motivo algum para alguém sorrir. Seu pesadelo de criança ainda permanecia vivo dentro de si, e era vergonhoso ter que confessar aquilo a alguém. Desejava dentes de tubarão, para que tão logo um fosse perdido, viesse outro no lugar. Mas aquela obra não tinha sido feita por um carniceiro aquático, mas por um cachorro tomando gosto por carne humana. Que falta fazia naquele momento aquele pó de gafanhoto enrolado como cigarro e que chamavam de erva. Não era bem a ideia de diversão que fazia quando estava de folga.

 

— Minha Nossa Senhora! - Assustou-se ao vislumbrar o cenário que estava à sua espera, enquanto ela parecia alheia a todo aquele horror, apontando lá para fora e passando uma das mãos pelo pescoço para informar que o animal estava preso.

 

Seu gosto por mulheres singulares estava rendendo frutos, assim como o seu irmão que parecia acentuar ainda mais aquele sabor hoje em dia. Não havia nada com o que se impressionar desde a infância até adolescência de ambos, quando suas primeiras namoradas pareciam saídas de um circo de aberrações. Lucrécia era albina e careca, e Josélia, anã e esquizofrênica. Desfilavam com ambas como soldados condecorados, recém retornados de alguma guerra imaginária na qual se jogaram sobre uma granada sem pino para salvar o seu batalhão, com os seus intestinos recolocados no ventre e a barriga costurada com overlock e alinhavada com agulha de crochê. Havia orgulho em andar de mãos dadas com figuras tão estranhas aos seus pares, de causar incômodo, de perturbar a ordem natural das coisas, de romper aquele hímen delicado que separava o bom gosto alheio, da peculiaridade das suas predileções.

 

Olhava para o corpo do primo da mudinha como a um cheeseburger mordido e com catchup demais. Fez uma cara de nojo e apertou o botão do rádio. Chamou pelo ‘’faxineiro’’ da polícia, aquele capaz de sumir com o resultado de uma chacina assobiando uma sinfonia. Usava os dedos para apagar rastros, como Mozart utilizava os seus no piano, e se fazia de surdo como um Beethoven. A equipe era enxuta, e todos sempre tinham alguma dívida em aberto com ele. Essa turma que trabalhava com formol gostava de aspirar coisas proibidas.

 

— Não se preocupe que em pouco tempo meu pessoal vai chegar e dar um jeito nisso aqui - Informou, apontando para a cadeira de rodas e caminhando até a janela dos fundos para ver se o autor daquilo realmente estava confinado.

 

O animal rosnava e caminhava de um lado para o outro arrastando consigo a corrente que lhe prendia. O delegado podia sentir o bafo de sangue ressequido que o vento trazia daquela bocarra. O corpo se retorcia a cada latido vigoroso, e teve a impressão de ver o pênis do cachorro em riste, como o seu estava naquele exato momento, quando recebeu um abraço por trás da mulher, que desceu a mão pela sua barriga até a fivela do cinturão. Aquilo enfureceu ainda mais o pastor alemão, mas atiçou também a sua dona, que quando passou para a frente do delegado já estava nua. O cão sacudia com fúria entre os dentes, retalhos da sua peça íntima de um lado para o outro, enquanto via a sua dona sendo penetrada por trás, com os seios balançando como sinos a anunciar a escuridão. A lascívia dos dois era um pântano de sentimentos. Ele, do alto da sua alucinação, mergulhava no seu oceano de fraquezas, alheio a qualquer consequência advinda do ato, e ela, que tratava um coito como um mestre patisseiro confeitando um bolo, queria deixar a sua performance gravada a ferro e fogo na memória do macho.

 

De maneira inesperada, Zuleide se desvencilhou e abriu a porta do quintal, se colocando na posição de quatro no chão de terra, próxima demais de Sultão, chamando o homem desnorteado com o dedo indicador. ‘’Aquela mulher não deveria ter nascido nunca’’, foi a única coisa que ele pensou antes de mergulhar o seu membro outra vez para dentro da moça pequena e devassa, que sorria vendo o sofrimento do cão, que por sua vez, expectorava perdigotos de desespero a poucos centímetros do seu rosto. O delegado sentiu quando despejou toda a sua aflição dentro da mulher, ouvindo os seus grunhidos de satisfação. O animal, com o pescoço já ferido pela corrente, sentou-se cansado, com a língua a pender para fora da boca em sinal de derrota.

 

Em pouco menos de duas horas, os faxineiros transformaram o inferno num céu palatável, levando as sobras de Cândido para uma certa chácara, onde desafetos e restolhos humanos eram a ração predileta dos porcos selvagens criados pelo delegado, com alimentação restrita para as ocasiões em que certos banquetes seriam servidos. Ainda naquela tarde ele pediu Zuleide em casamento, levando-a a uma joalheria para escolher as alianças. Sua mãe ficaria orgulhosa pela segunda vez. A primeira tinha sido ao mostrar-lhe o distintivo de delegado de polícia recém promovido. Mas antes de apresentá-la à sua genitora, precisava preparar sua futura esposa. Sua mãe era dada a certas excentricidades, como por exemplo, pedir que ela se despisse na sua frente para ter certeza que o filho estava se casando com uma mulher. Aquilo era uma culpa exclusiva dele, quando do alto da sua ingenuidade, não notou que a androginia da albina lhe reservava uma surpresa no meio das pernas.

 

Pelos padrões dos seus pares levava uma vida de nababo por sempre circular com desenvoltura pelo lado escuro da lei, onde auferia a maior parte dos seus proventos. E apesar de evitar ‘’lantejoulas’’ no seu estilo de vida para evitar uma atenção indesejada dos seus superiores, circulava como um playboy fora do país. Mesmo sem desposar a imperfeição que o completava, já planejava a lua de mel em algum arquipélago idílico que pudesse abrigar um casal com fogo suficiente para assar cardumes no próprio habitat.

 

Dispensou os vermes que preenchiam papéis, e fez algumas chamadas do seu telefone fixo residencial depois de colher frugais depoimentos de vizinhos da ninfomaníaca, apenas para descobrir coisa nenhuma que incriminasse o alvo do seu desvario, já que ninguém sabia lidar com uma pessoa que não tinha comunicação verbal. Achava que aquele vácuo não deveria ser preenchido por nenhuma mácula que a tornasse vilã. Como alguém que gozava das suas faculdades mentais, digno do posto que ocupava na força de segurança pública, resolveu meter o dedo no interruptor para que as luzes da dúvida se desligassem. Segurou na mão da porra louca, que o olhava fixo como a boa psicopata que era, assobiou algo que lembrava esperança, e mandou o resto às favas. Deixou o vizinho mais próximo dela, o rapaz de recados, com dinheiro suficiente para alimentar Sultão. Era o único que ao chegar perto do animal, o rabo balançava.

 

Zuleide passou a chave na porta do seu lar sabendo que não voltaria a pisar os pés ali. Seria melhor entrar no carro do seu futuro marido e não olhar para trás, apesar da dívida que sabia ter com o seu cachorro, a quem amava por diversos motivos. Dentre eles, por guardar a ossada do seu ex-companheiro, enterrada debaixo da casinha de Sultão. O idiota caiu de encantos por ela e não desistiu até convencê-la a viverem juntos. Como estava prestes a ser despejada da casa da sua recém falecida mãe, achou conveniente, apenas exigindo levar o seu animal de estimação junto com ela, que providenciou em pouco tempo que ela ficasse viúva. Estava ansiosa para saber como seria o seu novo lar. Talvez tivesse um quintal grande o suficiente para construir um pequeno canil.

 

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Era como se ela estivesse dormindo, mas estava fria, deitada nua dentro de um saco sobre uma maca. Ali estavam os seus sonhos, congelados dentro da geladeira junto com o corpo de Cláudia. E seriam com ela enterrados. Na gaveta adjacente repousava inerte, Justino. Por um momento quis trocar de lugar com o rapaz e poder ter o descanso eterno ao lado da sua amada. Lembrou das crianças e apagou aquele devaneio. Uma parte dela seria cuidada por ele até o fim dos seus dias. Anuiu com a cabeça para o funcionário da funerária e assinou os papéis para que os corpos fossem preparados para o velório. Fechou lentamente o zíper do saco até a altura do pescoço arroxeado, detendo-se por um instante para contemplar a beleza da mulher pela qual se apaixonou. Tão jovem e linda, ainda que fosse cadáver.

 

—--

 

A menina o irritava fazendo tantas perguntas. Pensou em usar o clorofórmio outra vez, mas aquilo poderia trazer problemas que o obrigasse a levá-la a um hospital. Optou por amordaçá-la e amarrar os pés e as mãos na cama, dando-lhe água e o que comer de hora em hora. Estava impaciente, mas precisava aguardar o enterro do rapaz para que pudesse encontrar a pessoa certa em casa, e colocar a parte final do seu plano em prática. Aguardou as gotas do clamante que pingou na água fazer efeito, e ao vê-la ressonar, vestiu uma roupa e saiu para comer algo e tomar uns tragos. O nome que dava àquela inquietude era ressaca pós evento, já que a euforia da prisão da vagabunda havia passado. Precisava de algum tipo de diversão. A menina seria a cereja do bolo.

 

—--

 

— Já acionei as autoridades competentes e enviei um retrato de Cidinha para a polícia. Agora temos que aguardar, já que a única pista que temos é de um carro preto parado na frente da sua porteira quando ela sumiu - Informou o prefeito de Sabugueiro à sua cunhada, que estava sob efeito de remédios e amparada pela irmã, no jardim da mansão.

 

Conceição estava sedada e mal prestava atenção no que o marido da irmã dizia. O olhar estava fixo na piscina, onde imaginava ver um homem engravatado levitar sobre o espelho d’água com um microfone na mão, fazendo um discurso inflamado para um público invisível, informando que a vida dele estava em risco. Volta e meia a aparição abria uma página da bíblia e disparava alguma frase de efeito. Aquilo parecia ser direcionado a ela.

 

— A esperança que se retarda deixa o coração doente, mas o anseio satisfeito é árvore de vida, Provérbios 13:12 - Professava o ectoplasma, que bailava a cinco metros de altura, olhando com intensidade para a avó desconsolada.

 

Logo, o peso que tinha na consciência por ter visitado a filha na clínica e ter dito coisas das quais hoje se arrependia, sobreveio, fazendo-a desabar em choro. Patrícia era uma desregrada, e tudo o que poderia acabar com o fim da sua existência, também poderia perdurar com aquela herança genética. Como futura avó, em um primeiro momento, houve sofreguidão em testemunhar seu fruto podre gerar outro fruto. Aquilo poderia se perpetuar com o sangue contaminado de coisas vis daquela que ia parir. Chegou a sugerir que ela desistisse daquele feto, já que tinha certeza que suas influências não fariam bem à criança. Para a sua surpresa, houve uma recusa efusiva, inclusive com aquela que ela achava ser um aleijão da fé, levantando os braços para o céu e invocando o perdão de Deus para a mãe, que como católica praticante se sentiu ultrajada num primeiro momento.

 

— Não vou matar o meu filho só porque você me considera uma desvairada! Sei que nunca fui boa filha e acho que isso nunca vai mudar, mas acho que diante de tanta cabeçada que dei na vida, é uma chance que tenho de mostrar a Deus que eu tenho coração. Mãe! Me ajude a ser mãe! É provável que jamais eu saberei ser uma, mas a certeza que tenho é que você poderá ter uma segunda chance de acertar com essa criança. Será o meu presente pra você, e que será meu no futuro.

 

O fantasma flutuava calado, arreganhando os olhos para Conceição como se aguardasse a resposta para alguma pergunta, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça na direção da casa como se lesse os seus pensamentos. Informou que se recolheria mais cedo naquela noite, mas a sua intenção era mexer em uma gaveta com fundo falso no quarto do seu estranho sobrinho onde estava abrigada, e onde repousava esquecida uma garrucha carregada. Ela precisava parar de reclamar do falatório da neta. Dar com a língua nos dentes poderia ter sido decisivo para salvar a sua vida. Cederia aos encantos do dono da vendinha que tinha lhe enviado dois recados com supostas pistas sobre o suposto sequestrador da menina. Ele não poderia ser tão execrável ao ponto de usar aquela situação somente para seduzi-la.


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