JARDIM BAGDÁ escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 35
Capítulo 35




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Ele capitulou um pouco tamborilando os dedos na mesa enquanto tomava seu café com leite e assistia à televisão. Poderia tirar vantagem daquela situação, afinal o velho Antenor tinha confiado nele, e bem ou mal o menino lhe devia algum tipo de satisfação. Além do mais, não era bem naquilo que estava pensando. Poderia sair daquela confusão como herói, e quem sabe assim chamasse a atenção de Vilma. Parecia que os seus orixás estavam soprando no seu ouvido o que tinha que ser feito. Precisava agir rápido antes que a polícia encerrasse aquele caso sem que ele pudesse tirar ao menos uma casquinha. Até já se imaginava estampando as manchetes dos periódicos no dia seguinte. ‘’ATO DE HEROÍSMO DE MESTRE DE CAPOEIRA ENCERRA O SEQUESTRO NO ASILO’’.

 

Abriu o guarda roupas e mexeu nos cabides até encontrar o único paletó que tinha. Suspirou de alívio quando notou que a gravata ainda estava com o nó atado, já que sempre se atrapalhava com aquilo, o que poderia lhe atrasar. Tomou um banho e caprichou na indumentária para ir de encontro ao seu destino. Estava fadado ao sucesso, e Montila proporcionaria o seu momento de glória. Beijou os pés da imagem de Preto Velho, acendeu uma vela para Ogum, seu orixá guerreiro, e pisou com o pé direito fora de casa depois de abrir a porta da rua. Caminhou dois quarteirões até o ponto de ônibus ouvindo gracejos dos seus alunos, que lhe perguntavam onde seria a recepção do casamento. Respondeu em pensamento..’’Dando entrevistas em alguma emissora de tevê’’.

 

Sua experiência com Janice não fora de todo ruim, mas também não conseguiu aplacar o chamego desigual que sentia por Vilma. A diferença era entre andar numa bicicleta enferrujada e com a corrente soltando, e estrear uma novinha em folha. Enquanto a primeira ensinava o padre a rezar a missa, a outra nem tinha sido batizada. A sorte nunca sorriu para ele quando o assunto era mulher. A sua primeira esposa lhe meteu um cabresto de não poder mais ir na esquina comprar pão, alegando ciúmes. Era uma ninfomaníaca que em pouco tempo tinha lhe deixado no couro e no osso, abandonando-o na porta de um hospital com quarenta e cinco quilos de peso. A segunda lhe meteu medo quando disse que a sua sogra sonhou que ela só seria feliz se tivesse sete filhos. Morreu no parto do segundo, pedindo que ele completasse a prole com outra, senão viria lhe puxar o pé de noite. A terceira lhe meteu chifre com um enfermeiro anão que vinha fazer os curativos à domicílio da sua hemorróida crônica.

 

Ainda não fazia ideia de como abordar o seu pupilo, mas imaginava que não poderia ser assim tão difícil. Eles eram aluno e professor, e a capoeira tinha ética própria. O rapaz era desmiolado, mas estava numa encrenca muito grande para negar a sua ajuda. O que ele queria dando um mata leão numa idosa dentro de um asilo? Roubar um dente de ouro incrustado na dentadura dela? Não havia nada de valioso num lugar como aquele. A única coisa que ele conseguiu foi roubar a paz do lugar e da vizinhança, que já começava a tocar fogo em pneus no meio das ruas, culpando a inércia da polícia, que estava recuada preventivamente para que uma tragédia não se anunciasse. Foi com a pose de bom samaritano que ele desembarcou do seu transporte e logo viu que não seria nada fácil se aproximar. Precisava achar o comandante da operação e se apresentar. Aquele pobre rapaz, órfão de pai e mãe, precisava dar ouvidos a quem tinha alguma autoridade sobre ele.

 

—-

 

Já havia desistido de passar no asilo depois que entrou no meio de um protesto de moradores da região. Não entendeu o que reivindicavam, mas também teve certeza que era tarde demais para dar marcha a ré. O asilo estava próximo e a sua preocupação eram as crianças, que estavam quietas e fascinadas com as labaredas que valsavam sobre a borracha dos pneus. Havia palavras de ordem que Abdias não conseguiu compreender. Para a sua surpresa, uma silhueta familiar surgiu à sua frente, e tratou de subir com o veículo no canteiro do acostamento para ficar melhor protegido da balbúrdia. Buzinou e fez um aceno com a mão, chamando a atenção dela, que se aproximou ainda sem saber quem estava a bordo.

 

— Sr. Abdias? O que está fazendo aqui? - Perguntou Samira, abaixando-se na janela ao identificá-lo.

— Vim me despedir de sua mãe. Estou indo embora para o interior. O que está acontecendo? As pessoas enlouqueceram?

— É o que está perto de acontecer comigo. Lembra daquele desordeiro conhecido pela alcunha de Montila?

— O que assaltou a minha farmácia uma vez com mais dois delinquentes?

— Esse mesmo. Fez a minha mãe de refém. Estou preocupada porque Justino foi ver se havia algo a ser feito e até agora não voltou. Já me arrependi de ter deixado ele ir.

— Você pode fazer um favor ao seu pa… a um velho amigo da sua mãe? Tome conta dessas crianças aqui que vou atrás de Justino e ver se posso ajudar.

— São os filhos de Cláudia? Onde ela está?

— É uma longa história minha querida. Aliás, também tenho uma história para lhe contar na volta e que diz respeito a você e a mim. Mas antes preciso falar com a sua mãe.

— Tenha cuidado, Montila está muito nervoso. Ninguém sabe o que ele quer, ele não pede nada. A polícia está confusa. E toda vez que ameaça se aproximar ele aperta o cano do revólver na cabeça da minha mãe ameaçando matá-la - Alertou, vendo-o se afastar, mas curiosa sobre o que o ex-dono da farmácia tinha para lhe dizer sobre ambos, e entrando no carro antes que as crianças dessem por falta do padrasto e começassem a chorar.

 

 

— Você precisa parar com isso de uma vez por todas. Sabe o trabalho que me deu para livrar seu rabo do caso daquela moça que se suicidou por sua causa? Você precisa se tratar. Ainda me pego pensando como foi que você chegou a esse cargo de chefia e ninguém sabe nada a respeito da sua psicose.

— Desconfiam, mas isso é bom. Me olham com medo. Mas eu também fico espantado meu caro irmão como foi que você chegou a delegado na polícia sendo um cleptomaníaco incorrigível - Retrucou Peixoto, tirando suas abotoaduras de ouro do alcance do irmão.

— Eu estou me tratando. E nunca subtraí nada de muito valor de ninguém. Mas o seu distúrbio é de um masoquismo extremo. Induzir um ser humano a morte ou a um castigo além das suas forças apenas para o seu deleite? Tudo isso provocado por você? Isso é doente demais para a minha cabeça.

— Pois mantenha sua cabeça funcionando, porque você vai livrar o meu rabo mais uma vez. Em contrapartida vou lhe dar nomes e provas para que você mande emitir mandados de prisão imediatamente.

— Até o momento eu só tenho o nome de um tal Jonas. Já temos um agente no encalço dele. A mãe adotiva com mais duas mulheres estiveram na delegacia e contaram a respeito desse caso escabroso - Relatou, já tirando um bloco de papel e pegando uma caneta sobre a mesa.

— Vai devolver, né? - Provocou o redator chefe, observando o Delegado Elias Peixoto espremer os olhos de raiva.

— Desembucha logo!

 

 

Tinha contado com a sorte. Era dono de uma compleição física mirrada e se encontrasse um enfermeiro de porte avantajado teria que atirar, mas ali era um depósito de gente bolorenta, a maioria de idosas que mal conseguiam arrastar as suas pelancas até o banheiro para fazer as necessidades. Os únicos homens na instituição que não eram internos, ele tratou de prender no banheiro. Um segurança desarmado e o rapaz do almoxarifado. Este último tinha lhe dado mais trabalho, apesar de ser tão franzino quanto ele, mas não permitiu que lhe tocasse para não lhe borrar as unhas enormes que ele tinha acabado de pintar. Na cabeça de Montila aquilo era mais letal e efetivo do que o cassetete do guarda.

 

Todo o resto dos funcionários, visitantes, e os internos que podiam ou não andar com as suas próprias pernas, foram colocados para fora sobre macas e cadeira de rodas, exceto Dinorá. Trancou todas as portas e janelas, deixando apenas o corredor entre a recepção e o refeitório livres para circulação. Entrou no quarto do Madame e a viu sentada na cama, concentrada sobre um tabuleiro de gamão.

 

— Quer jogar comigo? - Perguntou, sem levantar a cabeça.

 

Ele se aproximou dela com cuidado, como se aquele ser fosse uma ameaça. Olhou para aquele jogo estranho, com pedras de duas cores sobre desenhos pontiagudos, e se irritou com a calma dela. Ele estava no comando. Para demonstrar aquilo, deu a volta para ficar de frente e apontou a arma na sua direção.

 

—  Então você é a tal Madame Dinorá. Trouxe um presentinho para você - Disse, retirando do bolso o frasco de vidro.

— Eu adoro presentes! Mas quem é você? Não me diga que também é meu filho? De vez em quando aparece gente dizendo que sou mãe deles. O mundo está ficando louco. Onde estão os pais dessas pessoas?

— O que sobrou do meu está aqui dentro - Disse, levantando o frasco e sacudindo na frente do rosto da idosa, fazendo com que as bolinhas girassem.

— O que é isso?

— Você deveria saber.

— Porque?

— Foi você que mutilou o meu pai há alguns anos atrás. Ele fez algo de muito ruim com a sua filha, mas isso não lhe dava o direito de lhe arrancar os bagos! - Gritou, vendo-a impassível e fascinada diante do objeto que ainda se mexia dentro do líquido.

— Moço, eu não lembro o que comi no café. Como é mesmo o seu nome? - Disse, depois de processar aquelas informações e não chegar a lugar algum.

— Não interessa - Respondeu, ouvindo em seguida o barulho das sirenes que só fazia aumentar.

— Ande logo, quero acabar com isso rápido! - Ordenou, encostando a cadeira de rodas no pé da cama e puxando Dinorá de qualquer jeito para fazê-la sentar.

— Vamos viajar, moço?

— E com passagem só de ida!

 

 

— Não consigo ficar aqui parado sem poder fazer nada! - Exasperou-se o gêmeo, preocupado com Samira que tinha deixado sozinha no meio da turba.

— Calma, homem! Atos de heroísmo quase sempre terminam em tragédia. Temos que esperar o melhor momento. O tal Cândido não está lá dentro? Vamos aguardar mais um pouco. Eu mais do que ninguém quero olhar na cara daquele vagabundo e lhe dar uma lição.

— O que você vai fazer?

— A minha vontade era de enterrar ele vivo, mas vou seguir a bíblia. Olho por olho, dente por dente.

— Você vai currar Montila? - Perguntou espantado, olhando a expressão de satisfação do coveiro ao revelar as suas intenções.

— Não. Estava pensando em uma pequena cirurgia de fimose - Disse, revelando um canivete por baixo da calça, ao mesmo tempo em que puxava Justino para se esconderem atrás de um flamboyant e sair das vistas de uma dupla de policiais que patrulhavam o bosque atrás do autor dos disparos.

 

 

A mudança de bairro e de profissão tinha sido providencial para José Osvaldo. O que pouca gente sabia era o que o ex-borracheiro fazia para viver. Construiu uma bela casa em uma ótima vizinhança e se achava protegido de tudo, até porque gostava de trabalhar o mais longe possível dali. Perdeu a sua fé em Deus, quando o filho saiu de casa para se drogar. Perdeu a sua fé na vida quando soube da morte do rapaz, e tinha perdido a sua fé no homem quando teve ciência da venda do cadáver do seu menino. Só lhe restava usar toda a sua experiência para vingar o seu sofrimento.

 

Ficou de tocaia na saída do necrotério depois que Amália e Agda tinham saído daquela cafeteria com a verdade dolorida do destino de Aurélio. Tudo indicava que o tal Jonas sumiria do mapa para não ser preso, e daquela maneira ele não teria mais nenhuma chance. Acompanhou à distância a trajetória do mentecapto até sua casa, onde achou arriscado uma abordagem devido ao intenso movimento de pessoas. Viu-o chamar um táxi na calçada arrastando uma mala de bom tamanho. Continuou no seu encalço até a rodoviária, onde também comprou passagem para embarcar no mesmo ônibus. O rapaz tinha planejado ir para bem longe. Checou o tambor da sua arma no banheiro do terminal e embarcou logo depois dele, sentando-se duas fileiras de poltronas atrás. Esperaria o momento certo. Uma parada noturna para jantar seria o ideal. Puxaria um assunto qualquer e ofereceria um cigarro para fumarem mais afastados. Era uma tática que usava muito na sua profissão de matador de aluguel. Aquele seria o seu primeiro serviço não remunerado, e talvez o que lhe desse mais prazer.


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