Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 9
Capítulo IX




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― É realmente uma pena não termos nos encontrado na casa do Sr. Melquiades ― Beatriz lamentou para o Sr. Salazarte, gesticulando de forma displicente. ― Tenho certeza de que Isaac adoraria conhecê-lo. Pelo trabalho, meu filho tem contato com muitas pessoas e poderia ser um bom aliado para reintegrá-lo à nossa sociedade de Tantris, se o senhor quiser.

Irina bebeu mais um gole de chá, os olhos passando da jovem Srta. Salazarte em uma cadeira ao lado do sofá ― onde ela e a mãe estavam ― e tomando para si que a garota parecia desejar estar em qualquer lugar que não fosse aquele, ao menos a julgar pelo movimento de torcer as mãos que não parava e por relancear o olhar pelo relógio próximo ao cravo, um pouco atrás do sofá. Se compartilhava da opinião da irmã, o Sr. Salazarte ao menos conseguia disfarçar muito bem, mostrando-se interessado no diálogo com a Sra. Gutiérrez e mais ouvindo do que falando. Não que ele tivesse muita escolha, já que até mesmo o mais extrovertido dos homens terminava atropelado em um diálogo com ela.

― É realmente uma pena, Sra. Gutiérrez ― o bruxo retorquiu após afastar a xícara dos lábios. Irina ergueu uma sobrancelha, pois lembrava-se muito bem de tê-lo visto no evento ao lado de Katsaros, durante a atitude vergonhosa do irmão em provocá-lo. ― Mas tenho certeza de que teremos muitas oportunidades para que o encontro aconteça.

― Oh sim, disso eu não tenho dúvidas. Mas parece que o destino está brincando conosco para que isso não aconteça ― Beatriz riu, erguendo a cabeça para o alto por um instante. O pires com a xícara estava praticamente intocado sobre o colo. ― Isaac precisou sair alguns minutos antes do senhor e sua irmã chegarem, temos um comprador interessado em nossa seda chinesa. Inclusive, se o senhor ou suas irmãs estiverem interessados, faremos um desconto para a família. Seu pai tem sido muito gentil em vir à nossa casa tantas vezes para cuidar do meu filho caçula. 

― Não é preciso, Sra. Gutiérrez ― o Sr. Salazarte respondeu, enquanto na cadeira ao lado sua irmã relanceava os olhos novamente para o relógio. ― Nosso pai está cumprindo o seu trabalho, não há necessidade de nos oferecer uma retribuição. Tenho certeza de que ele diria o mesmo se estivesse em meu lugar.

― É realmente muito gentil da sua parte! ― A bruxa mais velha exclamou, agitando sem querer a xícara em seu colo. Viu-se obrigada a beber um gole para esvaziar um pouco e evitar que derramasse. ― Mas eu insisto. Nós temos um apreço muito grande pelo seu pai e gostaríamos de estender a gentileza à toda a família. Não é mesmo, querida?

Irina assentiu com a cabeça e percebeu os olhos azuis do convidado sobre si mesma. 

― Gostaria de mais um pouco de chá? ― a Srta. Gutiérrez ofereceu e, ao ter uma resposta positiva, esticou-se um tanto para pegar o bule de cima da pequena mesa de centro. O Sr. Salazarte imitou o movimento, depositando pires e xícara sobre a madeira, para que a bebida fosse servida.

― Alegra-me muito saber que o senhor gostou do meu chá ― Beatriz iniciou um novo assunto, enquanto o convidado recuperava a xícara e dava um sorriso para Irina em agradecimento. ― É uma mistura de pitanga com um certo toque pessoal. Não costumo passar a receita para qualquer um, mas se...

― Irina, o meu sonho mudou! ― Ezequiel berrou de fora do cômodo e logo foi se tornando visível através da porta aberta da sala de visitas. ― A parte do navio, ela...

O rapaz estacou sob o umbral da porta, arregalando os olhos ao ver que havia duas figuras desconhecidas junto da mãe e da irmã e que a atenção de todos estava sobre ele. Ezequiel corou e levou uma mão à nuca para coçar os cabelos escuros que estavam em um certo estado de desalinho.

Beatriz fuzilou o filho com os olhos, no entanto, o jovem bruxo parecia mais ocupado em abrir e fechar a boca em busca de palavras do que reparar na censura da mãe.

― Venha, querido, junte-se a nós. Posso pedir para que Suzy traga mais uma xícara. ― A Sra. Gutiérrez logo vestiu um sorriso no rosto e somente a filha conseguiu perceber que aquele era um tanto diferente dos habituais. Forçado, sim, mas um tanto nervoso. ― Venha, sente-se ao meu lado. Tenho certeza de que nossos convidados adorariam conhecê-lo.

Ezequiel engoliu em seco e foi até o conjunto de móveis no centro da sala com passadas longas. Ele se sentou no espaço vago entre a mãe e a irmã, parecendo querer encolher-se entre as duas e sumir. Irina conteve a vontade de afagar-lhe os cabelos ― que, a julgar pelo estado, bem como o rosto um pouco marcado do lado esquerdo, tinha acabado de acordar —. Sabia como o irmão era tímido pela falta de convivência com estranhos e cair de repente em uma situação como aquela o deixava acuado.

― Este é meu filho mais novo, Ezequiel ― Beatriz retomou, colocando uma mão sobre o ombro dele, tendo deixado pires e xícara sobre a mesa. ― Estes são o Sr. Salazarte e sua irmã, filhos do Dr. Salazarte. Por que não os cumprimenta?

― Prazer em conhecê-lo, Ezequiel. ― O convidado esticou-se um pouco para a borda da cadeira e estendeu a mão.

― Prazer também ― ele respondeu em uma voz vacilante e Irina olhou para a mãe de canto de olho, vendo-a respirar fundo.

Devido à distância, Ezequiel cumprimentou a Srta. Salazarte com um acenar tímido e foi retribuído, sequer levantando-se para segurar-lhe a mão, como era de praxe.

― Você parece um pouco mais corado, querido ― a Sra. Gutiérrez comentou, passando a mão pelos cabelos do filho assim que ele voltou a tentar enfiar-se no sofá. ― O último preparado que o pai de vocês trouxe tem se mostrado o mais eficiente até agora. Já faz algumas semanas que Ezequiel não tem mais febres e nem apareceu manchas novas, não é?

Ezequiel abriu a boca e não emitiu nenhum som. Irina sabia que parte daquilo era timidez e parte era o desconforto por estar sendo guiado pela mãe. Quando se tratava dele, tudo tinha que ser no seu tempo e não obrigá-lo a falar.

― Sabe tocar cravo, Srta. Salazarte? ― Irina questionou, desviando o foco de todos de seu irmão e percebendo o alívio passar rapidamente pelos olhos escuros dele.

― Sei apenas o básico. Minha irmã mais velha é quem é realmente talentosa com música ― a garota finalmente se manifestou outra vez, tendo caído para o silêncio após os primeiros minutos da visita.

― Já que tocou no assunto, por que não toca uma peça para nós, querida? ― a Sra. Gutiérrez propôs para a filha. ― Enquanto isso, irei me retirar para preparar mais um pouco de chá. Não confio em mais ninguém da casa para preparar a minha receita. ― Ela se levantou, soltando um riso baixo. ― Sintam-se à vontade. 

― Eu adoraria ouvir a senhorita tocar ― o Sr. Salazarte manifestou, enquanto a dona da casa deixava o ambiente para trás. Era como se uma aura de alívio caísse sobre os quatro ainda restantes. ― Nossa irmã mais velha era exímia com o instrumento e admito que sinto um pouco de falta de ouvir um pouco de cravo.

― Com todo o prazer ― ela devolveu junto de um sorriso sutil e se levantou, atravessando o círculo em que estavam e sentando-se sobre o pequeno banco cor de creme de frente para o instrumento.

Enquanto Irina ajeitava as saias volumosas sobre o assento e o puxava para mais perto do cravo, foi capaz de ouvir a voz da Srta. Salazarte novamente:

― O senhor é um tanto tímido, não? ― Sequer precisou virar a cabeça para o lado para saber a quem ela se dirigia. Percebendo que não havia partitura nenhuma por perto, tentou recordar-se de alguma peça simples para ser executada o mais rápido possível. ― Não precisa se sentir compelido a conversar conosco, se não quiser.

― Minha mãe costuma dizer que não é de bom tom tratar as visitas dessa forma ― Ezequiel retorquiu em um quase murmúrio, apenas audível porque a sala estava em completo silêncio.

Irina virou a cabeça para o lado e viu ambas as atenções dos irmãos sobre ele. Levou os dedos às teclas e deu início à introdução da primeira peça em que conseguiu pensar.

― Bem, eu não me importo com isso. ― Ouviu a jovem bruxa outra vez. ― Sei como é terrível sermos obrigados a falar quando não queremos.

As vozes se calaram novamente e Irina deu uma olhadela de canto por um instante, percebendo Ezequiel ainda encolhido contra o assento do sofá e sendo analisado pela garota como se fosse um objeto de estudo. O gesto pareceu não passar despercebido pelo irmão dela.

― Sua irmã é realmente talentosa com o cravo ― o Sr. Salazarte comentou para Ezequiel.

― Muito. Irina se dedica muito às coisas que gosta.

― E o senhor? Também tem habilidade com algum instrumento? ― a Srta. Salazarte questionou, tentando integrá-lo à conversa e indo contra sua afirmação anterior, de que não precisaria falar se não quisesse.

Irina percebeu que sua tentativa de desviar a atenção do irmão para si não estava sendo tão bem sucedida como planejou. O melhor talvez tivesse sido continuar sentada e tentar ela mesma guiar a conversa. Sem a interferência e bajulações da mãe, a tarefa com certeza seria muito mais agradável para todos os lados.

― Eu leio bastante ― Ezequiel respondeu.

― Eu também gosto de ler ― a garota devolveu sem deixar muito espaço para silêncio. ― Tenho me dedicado a estudar magia elemental e preciso ler muito para compreender melhor o seu funcionamento. É uma pena, porque acaba atrasando a prática, que definitivamente é a melhor parte.

― Mas não há como se praticar sem compreender primeiro a teoria ― o Sr. Salazarte pontuou. ― A magia elemental pode ser um tanto perigosa se feita sem o conhecimento necessário.

― Ela drena muita energia ― Ezequiel completou, deixando a irmã, que ainda tocava o cravo, um pouco aliviada ao perceber que ele estava começando a interagir um pouco mais por si só. ― Eu não sei muito sobre o assunto, mas pelo que li é um tipo de magia que pode demorar décadas para se adquirir um bom domínio. Ou até mesmo mais de um século para se atingir o domínio completo ou perto disso.

― Para tudo há uma primeira vez, não concorda? Eu adoraria ser a primeira a quebrar essa regra ― a Srta. Salazarte finalizou com uma risada.

― Mas a aptidão da família Salazarte não é o domínio de poções? ― Ezequiel inquiriu.

― Nada me impede de estudar uma magia que não é a aptidão que eu nasci. Assim como nada me impede de estudar quantos tipos diferentes de magia eu quiser ao longo da vida.

― A aptidão dos Gutiérrez são os feitiços relacionados a objetos, não? ― o Sr. Salazarte intrometeu-se no diálogo, atrapalhando o ar um tanto presunçoso que a fala da irmã exalou.

― Sim, nós nos damos bem com encantamento de objetos.

― O senhor consegue realizar um feitiço desse tipo? ― a jovem bruxa perguntou. ― Porque sempre ouvi dizer que é algo que também demora um pouco para se adquirir algum domínio.

― Não, eu não... ― A voz de Ezequiel voltou a vacilar e Irina agradeceu pela peça estar se encaminhando para o final. Na verdade, tinha certeza que pulara boas seções durante a execução, contudo, pouco importava. Além de ninguém ter de fato percebido. ― Não consigo.

― Não tenho dúvidas de que daqui algum tempo essa afirmação irá ficar para trás. Você me parece um jovem inteligente e estudioso ― o Sr. Salazarte retorquiu e Irina finalizou a última nota da peça, fazendo os três voltarem a atenção para ela. ― Uma belíssima execução, Srta. Gutiérrez ― ele elogiou, dirigindo um sorriso polido para ela.

Irina levantou-se e alisou a saia, usando sua expressão educada.

― Muito obrigada...

― Eu provavelmente tenho sonhos proféticos! ― Ezequiel interrompeu qualquer tentativa da irmã de guiar a conversa antes mesmo que ela tentasse, monopolizando a atenção para si. ― O que provavelmente explica minha dificuldade para a execução de quaisquer outros tipos de magia.

A revelação fora de hora do rapaz fez Irina arregalar os olhos enquanto caminhava em sua direção. Os lábios dela se entreabiram suavemente, deixando perfeitamente claro a sua reação de espanto. As bochechas pálidas dele coraram no mesmo instante assim que passou os olhos pelo rosto da irmã.

― Então é por essa razão que o senhor chegou à sala de visitas procurando sua irmã para falar sobre sonhos? ― A Srta. Salazarte adiantou-se, os olhos castanhos arregalados e jogando o corpo mais para a ponta do assento, parecendo empolgada com a súbita revelação. ― Eu acreditei que bruxos com sonhos proféticos fossem apenas uma lenda...

Irina retornou para um dos lugares vazios ao lado do irmão, em uma conversa muda através dos olhares para censurá-lo pela súbita revelação para duas pessoas até então desconhecidas. Ezequiel susteve o olhar de reprimenda, parecendo não se arrepender.

― Durante meu tempo na Nova Inglaterra, ouvi algumas histórias sobre um falecido bruxo que possuía a habilidade da clarividência em sonhos, a oniromancia, como chamam ― o Sr. Salazarte interveio novamente, junto da nova informação. Antes de continuar, balançou a cabeça para si mesmo, parecendo considerar as próprias lembranças. 

— E alguma profecia se cumpriu? Elas eram reais? — Ezequiel questionou empolgado e a irmã colocou uma mão sobre o ombro dele, tentando acalmá-lo antes que se agitasse mais. 

— São relatos um tanto incertos… — O convidado tamborilou os dedos sobre o braço da cadeira, focando-se nos irmãos Gutiérrez e praticamente esquecendo-se da irmã ao lado, que o encarava de olhos faiscantes. — Algumas pessoas diziam que ele previu uma grande cheia, ocorrida dois anos antes de eu chegar à cidade. 

— E outras pessoas não acreditavam nisso, correto? — Irina pela primeira vez se intrometeu no assunto, ainda com a mão sobre o braço do irmão. — A maioria de nós se mostra um tanto cética em relação ao assunto. 

— Ao longo dos meus primeiros meses lá, travei conhecimento com algumas pessoas que acreditavam nesse homem, Srta. Gutiérrez — o Sr. Salazarte rebateu, fixando os olhos sobre a moça —, bruxos sagazes e de profundo conhecimento em nossas magias. Eles diziam que nosso povo minimizou os estragos graças aos avisos desse homem. Ou ao menos parte de nosso povo.

― E o senhor sabe qual era o estado de saúde desse homem? ― Irina logo emendou uma nova pergunta.

― Ele faleceu semanas depois da cheia que inundou a cidade.

O rosto do bruxo adquiriu ares levemente sombrios ao dar a informação, enquanto Irina fechou os dedos sobre o tecido branco da camisa do irmão, o rosto tornando-se lívido enquanto continuava a encarar o convidado. Viu-o mostrar ligeira preocupação, porém pouco conseguiu processar, ainda mastigando a informação.

Eram somente coincidências que se conectavam. Malditas coincidências que apontavam para um mesmo fim. E ela sequer acreditava completamente na teoria de Ezequiel. Mesmo que aquela fosse uma das teorias mais plausíveis a qual se agarrar.

Talvez o desespero estivesse fazendo-a perder o bom senso.

― Mas o senhor já teve algum sonho profético? ― a Srta. Salazarte questionou, segurando em um dos braços da cadeira do irmão. ― Algum deles se concretizou?

― Não exatamente... ― Ezequiel começou de forma tímida e olhou de canto de olho para a irmã, que encarava o próprio colo de maneira desolada. ― Eu tenho um sonho que sempre se repete. Eu queria entender o que ele significa e uma profecia foi a única coisa em que consegui pensar.

― Creio que quase todos nós tenhamos certos sonhos ou pesadelos que tenham se repetido algumas vezes ― o Sr Salazarte interveio, dessa vez tentando trazer a explicação para algo mais racional. ― O que o faz acreditar que há a possibilidade desses seus sonhos serem proféticos?

― Não acha que o Sr. Salazarte pode estar certo? ― Irina disse para o irmão em uma meia-voz, a mão ainda sobre seu ombro, suavizando o aperto aos poucos.  ― Pode não ser oniromancia.

― Você acredita nisso mesmo vendo a forma que eu acordo todas as vezes? ― Ezequiel sussurrou e, antes que os dois entrassem em uma discussão na frente dos convidados, ele voltou-se para eles. ― É dito entre nós que a magia sempre cobra um preço e, quanto mais poderosa ela é, maior será o preço que irá cobrar. Então, como li alguns casos de bruxos com habilidades proféticas e que terminavam desgastados...

― O senhor acha que essa é a causa de sua doença? ― a Srta. Salazarte o interrompeu de súbito. ― Perdoe-me a indiscrição, mas...

― Não conheço muito da nossa sociedade em Tantris, mas imagino que eu deva estar na boca de muita gente como um pobre coitado ― Ezequiel retrucou com um sorriso que misturava acidez e melancolia.

― Não foi isso que eu queria...

― E qual seria o sonho que tanto se repete, se me permite a pergunta? ― o Sr. Salazarte cortou a tentativa da irmã de desculpar-se. A garota retraiu-se um pouco no assento, as bochechas adquirindo um tom levemente rosado e suas reações sempre assistidas pelo filho da dona da casa, que não tirava os olhos dela.

Ezequiel piscou algumas vezes e voltou os olhos para o bruxo quase ao lado, embarcando num relato dos pesadelos que o faziam acordar em desespero quase todas as noites.

Durante os breves minutos, Irina retirou a mão do ombro do irmão, esquecendo-se que devia se portar como uma boa anfitriã e oferecer mais chá ou bolo. Sua atenção focou-se em Ezequiel, assim como a da Srta. Salazarte. Os olhos do outro convidado focaram-se no piso reluzente do chão, parecendo entrar em um estado de reflexão.

― O senhor tem alguma teoria para essa parte do porto ter sido substituída pela parte da floresta? ― a jovem bruxa questionou.

― Eu não... Tive tempo de tentar pensar em algo ainda ― o filho mais novo dos Gutiérrez respondeu, voltando a soar um tanto vacilante. ― Eu começar o sonho na entrada da floresta e encontrar essa garça com asas de anjo e o javali é ainda mais absurdo que a parte do navio.

― Todo o sonho não possui sentido nenhum ― Irina comentou.

― Mas deve haver algum sentido! ― a outra bruxa exclamou. ― Se o seu irmão tem esses sonhos repetidos há tanto tempo é porque há alguma razão. E com certeza deve haver alguma explicação até mesmo para essa nova parte com os animais. Não concorda comigo, Matias?

O outro bruxo demorou alguns segundos para retornar à conversa, erguendo os olhos para a irmã ao lado, para os outros dois no sofá e então balançando a cabeça, parecendo rejeitar algo.

― É um acontecimento curioso...

― Pois eu acho que é algo extremamente curioso! ― a jovem sequer o deixou continuar. ― Os dois já tentaram procurar por explicações?

― É o que planejávamos fazer ― a Srta. Gutiérrez respondeu de forma séria, medindo a outra com os olhos. Não estava gostando da empolgação da convidada em relação ao irmão, principalmente pela forma curiosa com a qual ela não deixava de encará-lo. Irina sabia como a doença de Ezequiel virara uma fofoca entre alguns bruxos do Submundo. Alguns dirigiam pena para a família, enquanto outros o recepcionavam com aquela mesma curiosidade. De qualquer forma, ela não gostava de nenhuma das duas abordagens. ― Porém nenhum de nós conhece alguém que levará essa teoria a sério ou seria capaz de elucidar esse sonho.

― Você conhece alguém, não conhece, Matias? Ou algum de seus amigos deve conhecer alguém? ― a garota questionou ao irmão. ― Enquanto nosso pai continua procurando por algum medicamento, nós podemos ajudá-los em busca de respostas. Eu também acredito na sua teoria de que ambas as coisas possam estar relacionadas, Sr. Gutiérrez.

― A senhorita acredita?! ― Ezequiel exclamou, a voz elevando-se um tom acima e um sorriso brotando no rosto pálido.

― Sim. Eu consigo ver perfeito sentido nessa explicação. ― Ao obter o incentivo para suas suposições, Ezequiel virou o rosto para a irmã, deixando-a ver sua empolgação transbordante. Apesar de não concordar com aquilo, Irina não deixava de apreciar ver o irmão feliz daquela forma.

― E a senhorita ou o senhor por acaso saberiam nos dar uma luz de por onde começar? ― a nova anfitriã inquiriu.

― Eu conheço um lugar onde podemos começar a procurar. Com certeza deve haver muitos livros antigos lá e talvez encontremos algo sobre profecias e sonhos ― a outra respondeu, trocando olhares com o irmão e praticamente ignorando a aparente pergunta silenciosa que ele lhe fazia. A atenção dela estava totalmente em Ezequiel.

― Eu vou tentar mandar uma carta para meus conhecidos na Nova Inglaterra ― o Sr. Salazarte adicionou, voltando-se para os Gutiérrez, já que a irmã praticamente o ignorara. ― Porém preciso advertir que demorará ao menos dois meses para termos alguma resposta.

― Trouxe mais um pouco de chá ― a Sra. Gutiérrez anunciou de súbito, interrompendo com a sua presença esvoaçante o clima intimista daquele diálogo. Todos ficaram em silêncio enquanto a mulher retornava para seu posto em posse do bule de chá, que foi colocado sobre a mesa de centro. ― Gostariam de mais bolo? Acabei demorando tanto que restam apenas farelos. ― Ela riu para si mesma.

Nos minutos onde Ezequiel acabou sendo o mais falante, relatando o seu sonho de forma detalhada, os outros três haviam bebido os conteúdos de suas xícaras e devorado seus pedaços de bolo, restando somente xícaras e pires vazios sobre a madeira.

― Oh céus, já passa das cinco! ― A Srta. Salazarte se levantou enquanto encarava o relógio, a postura dramática um tanto exagerada. ― Matilda ficará extremamente chateada se a deixarmos sozinha a tarde inteira, Matias!

O irmão voltou a face para ela, parecendo confuso, e após uma conversa silenciosa que durou não mais do que alguns segundos, ele também se levantou.

― Eu sinto muito por termos que nos retirar de forma tão brusca, Sra. Gutiérrez. Mas Meredith está certa, acabamos nos demorando um pouco mais do que devíamos na visita.

― Não se preocupem com isso! ― a dona da casa exclamou e ergueu-se da mesma forma, fazendo as saias farfalharem junto. ― É um prazer poder recebê-los...

Enquanto Beatriz ensaiava suas despedidas, os irmãos Salazarte trocavam murmúrios referentes ao seu retorno para casa. Aproveitando aquela deixa, Irina se levantou, passando à frente da mãe.

― Eu os acompanho até a saída.

― Faça isso por mim, querida ― a Sra. Gutiérrez concordou com o pedido da filha sem nem pensar duas vezes.

Os bruxos se despediram de forma breve e educada e, enquanto a dona da casa reiterava mais uma vez que poderiam voltar quando quisessem e que passaria a receita de seu chá, os três saíram da sala de visitas, deixando para trás Ezequiel e sua mãe.

― Eu peço desculpas pelos excessos de minha mãe ― Irina pediu para os dois enquanto atravessavam o corredor que levava para o hall principal, onde o mordomo estava parado e os assistindo vir em sua direção. ― E agradeço pela ajuda que ofereceram.

― Mesmo a senhorita estando um tanto cética com a teoria de seu irmão? ― a outra questionou de uma forma um tanto provocativa.

Ao atingir o hall de entrada, os três pararam, fazendo o mordomo ter que esperar a conversa terminar.

― Mesmo que eu tenha minhas dúvidas em relação à teoria de meu irmão, acredito que todas as hipóteses devem ser testadas. ― A resposta deixou pouco espaço para comentários. Irina faria de tudo em busca de uma solução para a doença de Ezequiel. Mesmo que para isso precisasse passar por cima de suas próprias convicções.

― Eu entrarei em contato com a senhorita quando pudermos ir atrás dos livros que falei ― a Srta. Salazarte adicionou por fim, recebendo um aceno de cabeça em concordância.

― Poderia me esperar na carruagem? Ainda preciso trocar algumas palavras com a Srta. Gutiérrez. ― Ao pedido, o Sr. Salazarte recebeu um olhar inquisitivo da irmã, contudo respondeu apenas com o silêncio. Os dois assistiram o mordomo devolver a touca de Meredith e abrir a porta da frente para que ela se retirasse. ― Peço que perdoe-me pelo alarmismo que causei com o meu comentário sobre a morte do senhor na Nova Inglaterra ― ele quebrou o silêncio, desviando os olhos da visão da irmã descendo as escadas que levavam à entrada da casa. ― Foi nítido como a senhorita ficou assustada com o relato.

― Não é necessário desculpar-se por isso, Sr. Salazarte ― Irina retorquiu, um sutil sorriso se formando em seus lábios. ― Eu prefiro ouvir a verdade do que ser enganada com promessas vazias. Eu realmente aprecio a sinceridade. ― Ela viu-o balançar a cabeça, demonstrando que a compreendia. ― E realmente agradeço a ajuda que o senhor e sua irmã estão se dispondo a dar, mesmo que não tenhamos proximidade nenhuma...

― É nítido a sua preocupação com seu irmão ― ele interrompeu. ― E se pudermos ajudar de alguma forma, não vejo por que não o fazermos.

― Obrigada ― ela murmurou, recebendo um sorriso gentil em retorno. ― Tenha uma boa tarde, Sr. Salazarte.

― Igualmente, Srta. Gutiérrez.

Trocadas as despedidas, ele se afastou, sendo guiado pelo mordomo em direção à saída. Irina o assistiu, tentando não deixar a esperança subir à cabeça. Poderia não dar em nada no final das contas, mas tinha que tentar.

 


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