Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 35
Capítulo XXXV




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― Eu sinto muito.

Matias disse, não tendo outras palavras além daquelas após ouvir o relato de Irina. Ela observava o lago a certa distância do banco onde estavam, parecendo perdida demais em si mesma. Na verdade, ela parecia assim desde que chegaram ao parque. 

― Seu irmão sabe onde encontrar fadas dispostas a conversar?

― Não falo com Estevão desde que nos despedimos naquela noite. Nós não brigamos ― ela continuou, indo contra o pensamento mais óbvio após o relato detalhado que dera da busca com o irmão. Matias precisava dizer que surpreendera-se ao ouvir Irina falar de forma ininterrupta por tantos minutos, era sempre tão sucinta nas palavras. ― Não sei se ele se retirou da cidade por uns dias novamente ou o que aconteceu.

Matias ponderou rapidamente, ignorando uma senhora que passou por eles e os encarou com censura, seguindo seu caminho. 

― Eu posso ajudá-los. Não é difícil conseguir uma audiência com qualquer um do Submundo ao usar o nome de minha família.

― Como vai a sua família? ― A bruxa voltou os olhos cinzentos para ele, invertendo o jogo de quem era o foco. Matias tentara evitar aquele momento desde que se encontraram, porém, não podia evadir-se para sempre. 

O clima na casa dos Salazarte estava cada vez mais insuportável desde a semana anterior. Fazia exatos sete dias desde que Matilda se trancara no quarto, Matias não suportava olhar para o próprio pai e suas poucas conversas se reduziam a assuntos práticos, com Leônidas sequer mencionando algo sobre a carta de Inês que nunca seria capaz de encontrar, pois o filho a tinha em sua posse. Quanto a Meredith, as poucas vezes em que se viram estreitaram-se em evitar a razão da discussão com o pai e as reclamações dela sobre as aulas de poções que fora obrigada a começar. Sequer tocou no assunto de que ela também tinha seus segredos a esconder. Era patético, para ainda ser um pouco gentil com os adjetivos a respeito de si mesmo. 

Rui estava certo em cada uma das palavras que lhe dissera na última vez em que se encontraram e, por mais que seu orgulho se recusasse a tomar aquilo como verdade, negá-las seria inútil, pois a realidade estapeava-lhe na cara todos os dias.

Mais um dia sem atitude e mais um dia sendo soterrado pelos problemas que não fazia ideia de como se livrar.

Por isso, desejava tanto os minutos que passava fora de casa ― com exceção daqueles que ia, sem sucesso, cobrar os inquilinos que ainda deviam ―. E, mais especificamente, desejava ainda mais os minutos que poderia passar com Irina, fosse em sonhos ou pessoalmente.

Seus favoritos eram os pessoalmente, com certeza, pois ao menos eram reais e tinha consciência disso. 

Além de Rui, que fazia parte de sua família, ela fora a única pessoa com quem se sentira à vontade para desabafar. Bergoy era o único amigo ― dos que ainda tinha depois de cinco anos longe ― em quem confiaria, contudo, sequer se encontraram desde o último jantar na residência dos Katsaros. Bergoy estava ocupado demais tocando a própria vida, tentando construir suas alianças ou aproveitando os meses do primeiro ano de seu casamento. Precisava confessar que sentia certa inveja e se perguntava o que o amigo faria se estivesse em seu lugar.

Já com Irina era uma outra história. Talvez sentisse que o fato dos dois terem tantos problemas com a própria família fazia tê-los algo em comum? O fato era que sabia haver alguém próximo de compreendê-lo. Mesmo que o problema dela não estivesse piorando por falta de ação.

― Não tivemos muitas mudanças desde a última vez que nos falamos. — Mais uma vez, ele preferiu se desviar do assunto. 

Ela assentiu em silêncio e voltou a observar o lago. Um pombo chegou para se molhar na água gelada do primeiro dia de inverno.

― Acredito que você deveria continuar a procurar por si mesmo as respostas sobre sua tia. Seu primo não trouxe mais informações?

― Não falo com Rui há alguns dias. ― A verdade era que o orgulho ferido o impedia de ir à casa dele. Sabendo como Aquino era tão cabeça dura quanto ele próprio, ficariam naquela queda de braço para ver quem tentaria contato primeiro. Levando em conta a situação, talvez ele saísse perdedor. ― Não creio que nos deixarão entrar novamente naquele lugar ― continuou, referindo-se à pedreira que tanto ele junto do primo quanto Irina e o irmão visitaram em busca de respostas. ― Fico feliz que você tenha seguido meu conselho de não ter ido até lá desacompanhada.

Irina deu um sorriso fraco, vendo outro pombo se juntar ao que estava no lago.

― Eu posso voltar até lá em busca de respostas para você ― ela ofereceu, esquecendo-se das aves se banhando no frio.

― Pelo que me disse, seu irmão não aprova uma nova ida até lá. E eu não me sentiria bem sabendo que você foi até lá sozinha. ― Antes que tivesse uma réplica, torceu um pouco a conversa para o lado dela. ― Você não planeja ceder à proposta do homem que encontraram lá, planeja?

Irina pressionou um lábio contra o outro, cruzando os braços envoltos pelo seu casaco de lã rosa. Encarou novamente o lago, contudo, a graça que era os dois pombos se banhando e brincando parecia pouco importar. 

― Estevão estava certo em dizer que Ezequiel preferiria morrer do que me ver tirar a vida de alguém. E eu sei que não teria coragem. ― Ela suspirou para o ar, como se a resposta pudesse cair dos céus. ― Naquela noite... Era a única esperança que ainda restava para meu irmão.

 — Ainda há alguns espaços a serem preenchidos nessa história — ele começou, procurando uma das mãos de Irina sobre o colo dela. O decoro fora largado pelo meio do caminho antes mesmo da amizade de fato começar. — A maldição diz que as crianças morrerão ainda na primeira infância, e seu irmão tem dezoito anos, além de ainda haverem os sonhos. E agora sabemos onde procurar. 

Sutilmente, Irina deslizou seus dedos para fora do calor dos dele e Matias estranhou a quebra de um gesto que estava ficando tão comum entre eles. Recolheu a própria mão, dando a ela o espaço que queria. 

— Ezequiel acredita que irá morrer em breve — ela confessou, fazendo até mesmo Matias sentir a possibilidade que poderia tornar-se real. 

Desde que se envolvera naquilo, estava certo de que encontraria uma solução, independente de qual fosse. E independente da lembrança de que o único bruxo oniromante que já ouvira falar morrera após uma profecia cumprida. 

A possibilidade da morte de Ezequiel sempre estivera lá, contudo, era como se fosse a menos provável de acontecer. Para Irina, não parecia ser aquela a situação. 

Os pombos voaram do lago e Irina subitamente se pôs de pé. Finas gotas de chuva começaram a cair e Matias imitou o gesto, amaldiçoando os céus por aquele encontro ter que terminar mais cedo do que planejava. Ao menos daria tempo de caminhar até sua carruagem antes que a chuva aumentasse. 

— Talvez ele pense isso por acreditar que não há mais o que fazer. — Ele deu o braço a ela, percebendo que sua tentativa de conforto foi terrivelmente falha daquela vez. — Meu pai tem conseguido amenizar os sintomas nos últimos meses, talvez a magia da Mãe Terra seja capaz de lutar contra a magia da Sombra. 

Ela negou com a cabeça. 

— Nosso povo não tem histórico de tentar lutar contra magia sombria. 

— Mas isso é acreditar que a magia da Sombra é mais poderosa do que a nossa. — Daquela vez, Matias congratulou a si mesmo pelo argumento, contudo, percebeu que fora inútil. 

As gotas de chuva começavam a engrossar quando ele ajudou-a a subir na carruagem da família Salazarte. Ao ser fechada a porta, os cavalos que guiavam o veículo foram postos a correr.

― Não creio que a questão seja a nossa magia ser mais poderosa do que a da Sombra ou não ― Irina continuou no seu argumento enquanto chacoalhavam. Pingos grossos batiam contra o vidro da janela. ― Acredito que a Terra decida abandonar quem ultrapassa suas leis.

― É uma injustiça sem tamanho punir gerações de bruxos que sequer sabem qual foi a falha cometida por seus antepassados.

― A vida infelizmente não é justa ― ela retorquiu, parecendo querer encarar qualquer coisa que não fosse ele. Focou sua atenção na chuva gentil contra a janela. ― Nossas histórias dizem que a Sombra cobra um preço caro demais para quem decide fazer um acordo com Ela, mas não é isso que a Terra também faz conosco? — Irina soltou uma risada nervosa que o surpreendeu, um tanto incomum para ela. — Que justiça há em fazer uma criança sofrer uma vida inteira com uma doença por um erro que não é seu?

Salazarte avançou para a ponta de seu assento e, de súbito, tomou as mãos da bruxa à sua frente entre as suas. Diferente daquela tarde em que ainda estavam cheios de esperança em busca de uma pseudo vidente, viu-a estremecer. A janela deixou de ser o foco daqueles olhos que queria encarar. 

Estavam nublados feitos as nuvens do lado de fora. Mais pesados do que elas, que derramavam chuva calmamente. 

― Que justiça há em já amaldiçoar um filho que ainda nem nasceu? ― Não pôde evitar perceber o subir e descer do colo da Srta. Gutiérrez e assistiu-a em silêncio por alguns instantes.

Sua vida estava um caos e sabia que em parte a culpa era sua, enquanto Irina era obrigada a carregar uma culpa por algo que ela sequer sabia o que era. Ela e toda uma geração ligada à família Gutiérrez, por sabe-se lá quantos séculos. E sabe-se lá por quantos séculos mais. 

― Que justiça há em condenar um homem inocente a sofrer junto de mim por uma maldição que é da minha família? ― Irina engoliu em seco, dizendo cada uma das palavras com lentidão, como se estivesse escolhendo-as com cautela.

― Sua mãe teve três filhos saudáveis antes de um ser afetado pela maldição ― Matias lembrou-a, um pouco aéreo demais pelas últimas informações da bruxa à sua frente.

Um “sinto muito” não teria efeito nenhum, bem como nenhuma tentativa de consolo em que pudesse pensar. Mesmo que ainda houvesse muito para se desvendar de Irina, sabia como ela preferiria uma solução prática do que somente gentis palavras vazias. Mesmo que às vezes a fizessem sorrir. 

― E como poderia prever qual dos filhos nasceria com a maldição? ― Ela tentou novamente escorregar seus dedos para fora dos dele e, dessa vez, Matias segurou-os. ― Todos nós ainda carregaremos essa maldição no nosso sangue e passaremos para as próximas gerações.

― A Luz ― Salazarte interrompeu antes que ela continuasse, tentando desesperadamente procurar por algo que aliviasse aquele martírio que ela parecia estar carregando. ― Esse homem que vocês encontraram disse que deveríamos procurar as fadas para sabermos mais sobre o sonho de Ezequiel, elas têm mais contato com a Luz…

Ela novamente negou com a cabeça. 

― Não deve haver alguma razão para o sonho de seu irmão?

Irina suspirou, o peito elevando-se uma última vez, para a respiração começar a normalizar em seguida.

― Tudo bem, tentaremos mesmo as fadas ― ela afirmou, ao que Salazarte assentiu em silêncio.

O chacoalhar da carruagem parou subitamente, enquanto o ruído da chuva ainda era audível do lado de fora. Pela janela, pouco conseguiam ver do exterior de tão embaçado o vidro. Matias sabia que deveria soltar as mãos dela, afinal, a Srta. Gutiérrez tinha que descer de volta para casa, porém, se recusou a deixá-la ir daquela forma.

Não podia vê-la partir angustiada sem fazer absolutamente nada. 

― Um homem que a ame de verdade estaria disposto a sofrer junto de você, independente de qualquer maldição que seu sangue carregue ― ele declarou sem pensar e Irina voltou o rosto para ele de imediato, pega de surpresa pela declaração e pela situação. Até ele fora pego de surpresa pela própria fala. Precisava abrir a porta e ajudá-la a descer, mas não tão rápido. ― Um homem que a recusasse somente pela possibilidade de sofrer seria um tolo, pois perderia uma vida feliz ao seu lado pela dor do luto.

O rosto de Irina subitamente adquiriu um adorável tom rosado nas bochechas e no colo, e tinha certeza de que ele próprio não estava tão diferente assim. Ela entreabriu os lábios, sem palavras, e Matias teve de lutar contra a vontade de não soltar as suas mãos.

― Apesar da injustiça, dividir nossos fardos pode tornar-nos um pouco mais leves. Uma verdade incontestável que você fez questão de me dizer recentemente. 

A Srta. Gutiérrez respirou fundo outra vez, seu rosto voltando à cor mais pálida de sempre. Matias soltou-a finalmente e abriu a porta.

― Obrigada ― ela murmurou e Salazarte assentiu junto de um sorriso.

Ele pulou para fora do veículo, sentindo as gotas de chuva que continuavam a cair. Diferente daquela vez em que se viram obrigados a passarem uma noite na companhia um do outro, estava longe de ser uma tempestade. Ela foi auxiliada a descer e logo estavam os dois parados no meio-fio da calçada, olhando um para o outro. Irina ainda parecia em busca das próprias palavras e Matias aguardou-a em silêncio, mesmo que estivessem tomando um pouco de chuva.

― Obrigada ― ela repetiu e deixou sua mão escorregar para fora da dele.

Apenas repetindo as palavras de que se veriam em breve para encontrarem as fadas, Matias assistiu Irina dar as costas e subir os poucos degraus que levavam até a porta de entrada de sua casa. Mesmo com a chuva já tendo molhado-o um pouco, continuou até que ela sumisse completamente de suas visitas.

― Para a residência dos Katsaros, por favor ― ele pediu para o cocheiro e finalmente saiu de debaixo da chuva.

 

 

Katsaros soltou uma baforada de seu charuto para o teto escuro de seu escritório. Apesar de estarem quase batendo na porta das cinco da tarde, o tempo chuvoso aliado ao inverno tornara o dia em noite bem mais cedo, fazendo um dos criados acender uma vela sobre a mesinha que separava as duas poltronas.

― Não pedirei desculpas porque você conhece minha sinceridade, meu amigo, ou acredito que não teria vindo até mim contar tudo isso. ― Bergoy finalmente quebrou o silêncio que caiu após os minutos onde Matias abriu seu coração carregado de preocupações para o outro bruxo. ― Mas terei que concordar com cada uma das palavras de seu primo.

Matias respirou fundo, enquanto Katsaros devolvia o charuto à boca para dar uma nova tragada. Ele pedira por isso vindo até ali, não?

― Infelizmente, seguir o conselho de Rui não levou a lugar nenhum.

― Ora, você não poderia esperar que seu pai fosse revelar seus segredos apenas porque você pediu em um inédito rompante de raiva ― Bergoy riu. ― Ver você envolvido em uma discussão é algo que eu gostaria de viver para presenciar, meu caro, mas não é uma única discussão que resolverá seus problemas.

Salazarte conteve a vontade de soltar uma reclamação e continuou a encarar a porta fechada do escritório.

― Com os seus contatos no Submundo, esperava que tivesse ouvido algo sobre Baltazar que eu não soubesse...

― Sobre Baltazar eu nunca ouvi falar, mas quanto à sua família, ela está na boca de todos há um bom tempo. E você principalmente. ― Katsaros apontou para o amigo com o charuto, em seguida dando umas batidinhas sobre o cinzeiro. ― Desconsiderando mexericos de mães casamenteiras desejando que você conheça as filhas delas e suposições que acredito que você não irá querer ouvir...

― Que suposições? ― Matias o interrompeu, franzindo a testa.

Bergoy o observou de canto de olho, a mudança na voz do outro sendo notável.

― A reputação de seu irmão o precedia, meu caro, as pessoas estavam curiosas para saber como você iria se comportar ocupando o lugar dele. Além do mais, você nunca foi uma figura muito presente no Submundo, o que levanta questionamentos de alguns sobre quem você é. ― Novamente apontou para ele com o charuto, antes de levá-lo à boca. ― Lembre-se do que eu lhe disse antes: mesmo com a reputação manchada, isso é coisa passageira e ter aliança com um membro da família Salazarte pode ser algo valioso no futuro. As pessoas esquecem rápido de certas coisas.

Bergoy riu, fazendo um pouco de fumaça sair pelas narinas, enquanto prendia novamente o charuto entre os dentes.

― Tenho tantos problemas que a última coisa que eu pensaria atualmente seria me envolver em armações de membros do Submundo ― Matias confessou, contendo um grunhido. 

― Eu mantenho meu conselho de pé e acredito que você ainda poderia extrair algo promissor daí, mas já que insiste... Farei o sacrifício de me envolver com os leões por você. ― Bergoy preencheu o ar com uma gargalhada e Salazarte sorriu brevemente. — Tenho certeza que em breve terei informações quentes sobre o canalha que seduziu sua irmã. 

Os dois eram conhecidos por serem uma dupla inesperada desde que a amizade se formou nos primeiros meses na universidade, contudo, Salazarte era da opinião de que, às vezes, personalidades tão opostas poderiam se dar bem justamente por uma completar o que faltava à outra.

― E aproveitando que mencionei mães casamenteiras agora pouco... ― Katsaros começou, apagando o que restava de seu charuto no cinzeiro. ― Nas últimas duas semanas o seu nome está sempre atrelado ao dos Gutiérrez e ― Ergueu um dedo na direção dele ― a maior incentivadora disso é a própria Sra. Gutiérrez, como eu bem te avisei.

Matias conteve a vontade de sorrir com o pensamento de que a tentativa de suborno de seu pai fora por água abaixo. Um aprendizado para Leônidas de que nem sempre o mundo se dobraria à sua vontade, inclusive as pessoas.

― Você pretende se casar com ela? ― Bergoy questionou de repente, trazendo Salazarte para fora dos próprios pensamentos de uma forma atordoante de tão rápido.

― O que? ― Matias questionou em um engasgo.

― Ora, pelo seu sorriso enquanto falava de Irina, e perdoe-me por chamá-la pelo primeiro nome, meu caro, estou apenas usando suas palavras... ― Katsaros acrescentou com um sorriso brincando pelo rosto. ― Pelo seu sorriso enquanto falava dela, supus que estivesse apaixonado.

― Bem... ― Salazarte começou e parou a frase antes de sequer dar início de verdade.

Poderia tentar negar para Bergoy ― e, da forma como ele o lia tão bem, duvidava que fosse acreditar ―, no entanto, era algo que não poderia negar para si mesmo. Não precisava ser poeta para saber o significado por trás de pensar em alguém por tanto tempo, desejar vê-la todos os dias, ansiar por um toque que fosse em suas mãos e ainda sonhar com sua presença quase todas as noites... Era como ver os versos de Shakespeare, que lera para Irina, materializados em alguém.

― Não há como saber se é recíproco.

― É claro que há, basta se declarar. ― Naquele momento, foi a vez de Salazarte rir da fala do amigo. ― Lembro-me de quando você sofreu por um coração partido no nosso último ano na universidade. ― Bergoy esfregou um dedo contra o outro, parecendo que queria acender outro charuto, e encarou o outro bruxo, segurando o riso. ― E também me lembro muito bem que você apenas teve coragem de pedi-la em casamento porque eu o incentivei a beber um pouco mais do que devia.

Matias torceu os lábios, dessa vez incomodando-se com a gargalhada que o dono da casa deu.

― Acredito que a ressaca do dia seguinte tenha sido pior do que ter recebido um não ― ele brincou com um sorriso, mesmo que fosse amargo se recordar daquele momento. Bernardo estava totalmente certo em dizer que o irmão tinha alma de romântico. Sofrer como um ele já sofria. ― Mas não sei se eu faria o mesmo nessa situação, Irina já tem muito com o que se preocupar.

― E um casamento não poderia ser algo bom para ela? ― Bergoy acrescentou, cedendo à vontade e pegando outro charuto da caixa. ― Considerando a família que aquela pobre mulher tem, você estaria fazendo um favor ao tirá-la daquela casa.

― Não acredito que a minha família seja muito melhor do que a dela ― Salazarte acrescentou enquanto perdia qualquer tom de humor que tivera segundos atrás. ― Irina está mais preocupada com a maldição do irmão...

― O que complica um pouco as coisas para o seu lado. ― Matias ergueu as sobrancelhas, pedindo silenciosamente para que ele explicasse seu ponto. Mesmo que fosse claro o que Bergoy queria dizer com aquilo. Qualquer um chegaria à mesma conclusão se soubesse da situação por inteiro. ― A maldição...

― Um homem teria que ser um tolo para rejeitá-la por isso.

Daquela vez, Bergoy é quem pareceu surpreso enquanto riscava um fósforo.

― Seu pensamento é um em uma centena, meu amigo. Com exceção de você, qualquer bruxo que eu conheço romperia o noivado sem pensar duas vezes quando descobrisse esse... ― Ele parou com o charuto acesso na mão, parecendo escolher a palavra certa. ― Detalhe sobre os Gutiérrez. A maioria de nós estremeceria com o pensamento de ter uma relação com o sangue de um amaldiçoado pela Sombra.

― Irina não tem culpa pelo que seus antepassados fizeram ― Matias rebateu incomodado, abanando a fumaça de tabaco que veio em sua direção. ― Seria estupidez perder uma vida com ela por uma possibilidade. A maldição demorou um século inteiro até se manifestar em um dos filhos dos Gutiérrez.

― Em alguns momentos eu admiro e invejo seu otimismo. ― Bergoy parou com o charuto a caminho da boca, observando demoradamente o bruxo ao seu lado. Por fim, ofereceu um sorriso que Salazarte interpretou como pena sem esforço algum. ― As pessoas estão contra você, as circunstâncias estão contra você... E até você está contra você mesmo, pois sei que sua recusa em tomar uma atitude não é apenas por Irina... ― Matias não foi capaz de conter um olhar carregando raiva para Katsaros. ― Você sabe que estou falando a verdade e, se veio até mim, sei que o fez porque queria ouvi-la.

Bergoy bateu o charuto no cinzeiro, dando alguns instantes para o amigo se manifestar, coisa que não fez.

― Te dou apenas mais um conselho, meu amigo, e isso inclui tanto sua vida amorosa quanto seus problemas familiares. ― Mais uma vez, esperou por uma reação do outro lado, recebendo apenas silêncio. ― Se continuar se recusando a tomar uma posição, alguém irá fazê-la por você. Goste você disso ou não.

Matias continuou em silêncio, enquanto o amigo voltava a soltar baforadas para o ar, deixando-o com os próprios pensamentos. 

Podia desgostar das palavras de Bergoy ― principalmente no que se referia a Irina e os Gutiérrez ―, no entanto, não podia negar que ele estava certo em suas colocações finais.

Podia continuar tentando resolver a situação do seu jeito, mas a vida, conforme as evidências apontavam, não iria colaborar com suas vontades.


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