Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 34
Capítulo XXXIV




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Margarida Gusmão permanecia em silêncio desde que ela e Betina adentraram o longo jardim dos Gusmão. Não tinham o mínimo de assunto para conversar, contudo, Betina sabia que precisava fazê-la falar o que lhe interessava. 

Nunca em sua vida acreditou que fosse estar tão ansiosa por ouvir uma fofoca, mas lá estava ela, tendo aceitado ir com o avô em uma visita aos Gusmão apenas para satisfazer suas dúvidas, coisa que deveria ter feito anos atrás. 

A ameaça de Saul ainda continuava tão fresca em sua mente quanto dias antes, impedindo-a de dizer qualquer palavra que fosse para o avô. Estava sozinha e com medo, tendo certeza absoluta que o marido estava envolvido com magia sombria. 

― Estou um tanto surpresa pela sua visita repentina, Betina, não posso esconder ― Margarida confessou, girando o cabo da sombrinha por entre os dedos. ― Não somos amigas e você nunca tentou estreitar laços comigo, no que está interessada?

Betina segurou um arquejo, impressionada com a velocidade com que Margarida Gusmão conseguiu captar suas intenções. Bem, que suspeitas uma visita cordial entre membros do mesmo clã poderia levantar?

A babá estava um pouco mais à frente ― o suficiente para que não fosse capaz de ouvi-las sem erguerem a voz ―, empurrando uma Anastácia brincalhona no carrinho de bebê, exposta ao frio sol do inverno. A Sra. Tremonti também desfrutava o quanto podia do calor, tendo a cabeça protegida por uma touca e o colo pelo fichu. Dias como aqueles mereciam ser aproveitados, pois seriam um pouco raros dali em diante. E, mesmo no verão, eram raros para ela por algumas semanas. 

Margarida, pelo contrário, parecia um tanto incomodada sob sua sombrinha de seda cor de rosa. Ou talvez o motivo de seu incômodo fosse outro. E Betina suspeitava que a causa fosse ela própria, no entanto, não eram somente os dias de sol que tinha de aproveitar. 

― Não vejo razões para tentar adiar esse diálogo, se é assim ― a Sra. Tremonti começou após instantes de silêncio para recalcular suas falas. ― Você é alguém bastante perspicaz... 

― Agradeço pelo elogio, mas também agradeceria se fosse direto ao ponto ― a Srta. Gusmão a interrompeu com um sorriso. ― Meu irmão pode estar se entretendo enquanto é instruído pelo seu avô como se fosse um idiota em política, mas eu prefiro gastar meu tempo em coisas mais úteis, portanto, se for direto ao ponto podemos terminar essa visita logo. Já deixamos as cordialidades para trás há muito tempo. 

― Tudo bem... ― Betina respirou fundo, ainda tentando processar a rispidez de sua anfitriã.

Se suas intenções foram descobertas, negá-las seria pedir para sair dali de mãos abanando e, conhecendo-se muito bem, sabia que, se isso acontecesse, demoraria para tentar tomar outra atitude. Momentos como aquele deviam ser realmente aproveitados. 

― Recordo-me da última vez em que nos encontramos, quando você... ― Parou por alguns instantes, procurando pela melhor palavra. "Gabar-se" talvez não fosse uma boa escolha se quisesse tentar bajulá-la um pouco, mesmo que fosse a mais correta. ― Salientou seu conhecimento sobre nosso clã.

― Quando eu salientei minha habilidade como grande fofoqueira, você quer dizer ― Margarida riu. ― Diga com todas as letras, eu não me importo, é um motivo de muito orgulho. E útil, para ajudar alguém em uma posição como a de meu irmão. ― Encarou sua convidada de soslaio, o rosto sombreado. ― Mas vejamos... Você quer saber algo de alguém? Diga de quem, por favor, pois esse jardim é muito longo e demoraríamos demais se formos até o final. 

As mulheres passeavam no caminho entre sebes, esculturas ― um tanto semelhantes ao jardim de seu avô em Tantris, Tibério adoraria aquele lugar e finalmente encontraria algum motivo para elogiar Inácio ― e, um tanto mais à frente, se forçasse a visão, roseiras a se perder de vista. 

Margarida estava pisoteando todas as regras das boas maneiras para visitas, porém, considerando o desprezo que parecia ter por ela, compreendia o motivo. Quem diria que um dia sentiria falta da falsidade do Submundo de Tantris… 

― Por que todos de Mempolis parecem evitar a família Tremonti? ― Soltar a pergunta sem rodeio nenhum dava um gosto estranho na língua, no entanto, se era para ser daquele jeito, então que fosse. Ao menos pouparia tempo também para ela, de ter que ficar mais alguns minutos com alguém como Margarida. Mesmo que, diferente de sua anfitriã, tivesse muito tempo livre. 

A Srta. Gusmão riu, girando mais rápido o cabo da sombrinha entre os dedos. 

― Você demorou dez anos para perceber ou tinha vergonha de perguntar?

Betina respirou fundo, engolindo o incômodo junto. Margarida nunca fora tão grosseira daquela forma, talvez por sempre terem conversado junto de outras pessoas no mesmo ambiente. Sabendo que Betina não contaria aquilo para ninguém ― e não apenas por interesse ― era o momento de mostrar a verdadeira face. 

― Não é difícil de notar que vocês parecem ter algo contra os Tremonti, mas, depois do último encontro, minha impressão é de que a aversão é mais direcionada ao meu marido do que a mim. 

― Algumas pessoas têm pena de você, por isso ainda tentam se aproximar. Mas a aversão ao seu marido, usando a mesma palavra que escolheu, sempre falará mais alto. ― Ela suspirou um tanto alto demais, soando fingido. ― Tenho um pouco de pena de você, uma coisinha tão frágil e inocente nas mãos de um homem como ele. ― Soltou um riso para dentro. ― Da última vez que nos encontramos, disse que algumas mulheres eram mais afortunadas do que outras por poderem segurar seus filhos em seus braços, mas, agora que paro para considerar sua situação... ― Balançou a cabeça, fazendo alguns fios pretos escaparem da touca. ― Acredito que minha cunhada era mais afortunada do que você, pois ao menos foi feliz por bons anos com um excelente marido, enquanto você ainda terá que se submeter àquele homem por sabe-se lá quanto tempo. 

― Não deveria falar assim de alguém que não conhece ― Betina retorquiu, começando a amassar o tecido da própria saia sem nem perceber. ― Saul é um bom marido. 

Margarida riu, apoiando a sombrinha sobre o ombro e fazendo seu rosto tomar um pouco de sol. 

― Posso não ser uma boa jurada para a vida conjugal alheia, mas quanto a caráter alheio, nisso eu sou capaz de dar os meus palpites. 

― E o que a faz reprovar o caráter de meu marido?

― A questão não é apenas o caráter de seu marido, mas o da família Tremonti em si. Para sua sorte, ele é o menos pior dos irmãos, o que deve ser o único ponto positivo para você. 

Betina soltou o tecido da saia por entre os dedos. Além dos nomes e de que um dos irmãos de Saul morrera de uma pneumonia após nadar em um lago no inverno e o outro de uma doença desconhecida, deixando a propriedade da família para o filho mais novo dos Tremonti, não sabia mais nada a respeito. O único familiar de quem Saul se permitia falar um pouco mais era o pai, um homem orgulhoso de seu trabalho e que passava mais tempo com as uvas, dinheiro e mulheres do que com a própria família. 

― Você chegou a conhecê-los?

― Eu ainda era uma adolescente, mas sim, infelizmente sim. ― Betina franziu a testa, percebendo que sua anfitriã observava mais a ela do que o próprio jardim, estavam se aproximando das roseiras. Qualquer sombra de riso tinha ficado para trás. ― Samuel, o filho mais velho, era um mulherengo que tentava flertar até mesmo com moças que tinham idade para serem suas filhas. Experiência própria. ― Voltou a sombrinha para a posição anterior, lançando sombras para o rosto. ― Edgar ao menos era um pouco agradável, quando sóbrio. O que não acontecia com tanta frequência, já que ele passava a maior parte do tempo bêbado como um gambá. 

― Isso justifica a aversão aos Tremonti, mas Saul não é nem um pouco como eles ― Betina partiu em defesa do marido, dessa vez ao menos com um pouco mais de certeza. Se aquilo fosse mesmo verdade, não era de se estranhar porque ele não gostava de falar dos irmãos. 

― Que sorte a sua. 

― Então o que têm contra ele? Ser reservado e não gostar de conversar não é motivo para tanta aversão. 

Margarida parou de repente, enquanto a babá continuava uns bons metros à frente, completamente alheia à conversa das duas e mais ocupada em entreter a criança que parecia tão encantada pelas rosas vermelhas. Betina também interrompeu o passo.

― Eles mataram a própria irmã, Betina, isso é motivo suficiente para causar aversão a qualquer um dos Tremonti.

― O... Q-que? ― a Sra. Tremonti soltou em um quase sussurro, perguntando-se se havia mesmo ouvido certo. A julgar pela face de Margarida, aquilo não era nenhuma mentira. 

Saul nunca lhe dissera que um dia teve uma irmã...

― O velho Sr. Tremonti já havia morrido há alguns meses e você imagina como a fazenda deve ter ficado nas mãos do filho mais velho. ― Ela foi se aproximando de Betina, rodando a sombrinha por entre os dedos. ― Saul poderia viajar e passar tanto tempo longe de casa quanto quisesse, mas a pobre Isabella não tinha a mesma sorte... Ela tinha quase a minha idade. 

― E o que aconteceu? ― Betina sussurrou a pergunta, mesmo que a resposta já tivesse sido dita. Ainda sobrava o como. 

― Ninguém sabe exatamente e a única pessoa capaz de contar o que aconteceu de verdade é seu marido. Tudo o que sabemos é que, certa vez, quando Samuel e Edgar estavam se embriagando como de praxe, Isabella morreu. Não sabemos como e nem exatamente de que, apesar de algumas pessoas terem seus palpites absurdos. Sequer houve de fato um funeral e o corpo foi colocado no mausoléu de nosso clã pelos irmãos, que diziam ter havido um acidente quando eram questionados. Ninguém acredita nisso até hoje. 

Betina parou com os dedos trêmulos a meio caminho de tocar novamente o tecido da saia. Encarou Margarida como se ela tivesse acabado de lhe dar um tapa. A outra bruxa se afastou.

― É melhor voltarmos. Você está pálida e uma xícara de chá lhe fará bem.

― Meu marido não é um assassino! ― A Sra. Tremonti reencontrou a voz, mesmo que tenha saído um tanto engasgada. ― Se isso fosse verdade, Saul e os irmãos teriam sido condenados há anos. Se isso não aconteceu é porque não há provas.

A Srta. Gusmão parou, voltando-se na direção da convidada, os olhos semicerrados, como se não tivesse gostado de ser desacreditada.

― Tendo um avô como o seu, achei que soubesse que poder e dinheiro podem comprar inocência...

― Não com uma acusação de assassinato. Isso... Isso é...

― Chocante de descobrir? ― Margarida completou, aproximando-se de Betina. ― Imagino como sua mente deva estar negando o pensamento de ter que dormir na mesma cama que um assassino, mas essa é a verdade que todos de nosso clã sabem. ― Enganchou o braço no da convidada e virou o rosto para trás. ― Estamos voltando! ― gritou para que a babá, já muito longe, pudesse ouvir.

― Tudo que vocês têm contra Saul são boatos e fofocas. ― Betina parou, tirando o seu braço da outra e se recusando a continuar. ― Se acreditam nisso, por que não buscaram justiça? O sistema de vocês não condenaria à morte alguém que todos condenam publicamente como assassino?

― Nunca houve um julgamento...

― Nunca houve um julgamento porque não há provas! ― Betina exclamou e a Srta. Gusmão olhou brevemente para trás, vendo a babá se aproximar. Por sorte, eram somente palavras fora de contexto.

Margarida enganchou novamente o braço no da convidada e deu um puxão, tentando forçá-la a caminhar.

― Você me perguntou e eu respondi, se acredita ou não, não posso fazer nada. Agora, faça-me o favor de ir embora, pois ainda tenho outras visitas para receber nesta tarde, sim?

A contragosto, Betina deixou-se ser guiada pelo caminho de volta.

 


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