Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 10
9. Defuntos, inquilinos e panelas voadoras




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808091/chapter/10

— É... meus parabéns – Paris se aproximou do corpo inerte de Benjamin sobre o piso, apoiando as mãozinhas nos quadris para o observar com mais propriedade. – Agora você matou ele.

O pobre do humano jazia imóvel, todo torto, com uma vassoura sob a mão direita e a fatídica frigideira assassina jogada a alguns centímetros da sua cabeça. E por enquanto vamos deixa-lo aí mesmo, porque, como já sabemos, tudo começa pelo começo: e para isso devemos voltar para algumas horas mais cedo, quando o contrato foi assinado, Elisabete e Loukás apertaram as mãos, e ele foi autorizado a se mudar naquele dia mesmo, uma vez que já estava basicamente tudo pronto, e ninguém ali estava muito a fim de se fazer de difícil.

Porém, ainda assim, tinha sido um dia complicado. Paris retornara após mais uma temporada de buscas nos Arquivos, e não trazia boas notícias: começavam a ganhar força os boatos de que Eros, muito convenientemente, estava disposto a de fato aparecer para a Revista de natal daquele ano, depois de faltar às cinco últimas pelo menos. Como resultado, o Paraíso dos anjos do amor estava um perfeito caos – missões e mais missões se acumulavam sobre as mesas em seus pequenos escritórios, cada cupido querendo ter mais números na cota para poder impressionar o pai.

A própria mesa de Paris estava tão abarrotada que não dava mais nem para ver a própria. Só um gigantesco organismo de papelada para preencher, já que sempre que se tinha uma enxurrada repentina de missões assim, o sistema da rede online dos cupidos travava que era uma beleza. Todo ano eles diziam que chamariam um técnico, e todo ano esqueciam – o que geralmente resultava em mãozinhas musculosas de tanto escrever e uma tonelada de papéis para serem descartados nos Arquivos após isso.

— E por falar em Arquivos, Paris – Perguntara Volúpia, a responsável pela gerência dos cupidos nos momentos de pico – como vai aquela sua missão com o doidinho das músicas pop?

O alvo do questionamento era um Paris completamente atônito ao ser pego no flagra com aqueles portões de madeira de lei fechando atrás de si. Será que ainda dava tempo de pagar de doido, se esconder numa daquelas nuvenzinhas cor-de-rosa e fingir que não a tinha visto?

— Aaaah, o L-Loukás? – Devolvera ele, gaguejando todo besta. Olhou ao redor; as nuvenzinhas estavam longe demais. Porcaria. – Vai tudo bem! – Fez força então para recuperar a compostura – tudo mais do que bem.

— Bom, pensamos que fosse algo rápido, não? Melhores amigos que se apaixonam, um clássico, sempre funciona. No entanto ainda não o vimos desde que vocês foram à Terra na última vez.

— Jura? – E já que estava mentindo mesmo, por que não se comprometer ainda mais? – pois eu não entendo como. Ele está bem aqui!

— Aqui?

— É, nos Arquivos. Acabei de vê-lo lá dentro. Disse que quer mostrar os resultados pessoalmente a Eros no natal, mas posso chama-lo agora se a senhora qui...

— Ah, não, não, não! – Ela se apressara em responder, como ele previra. Quase suspirou alto de alívio – vamos deixar ele quietinho lá dentro por enquanto. Tudo o que menos precisamos até a Revista é de alguém para nos atrapalhar.

Volúpia era pertencente à trindade do Conselho, e tê-la levado no papo foi uma baita jogada de sorte – mas mesmo assim Paris voltara para a Terra uma pilha de nervos. Passara, portanto, chatíssimas horas exercendo o direito inalienável de anjos, demônios, humanos, e basicamente qualquer criatura que tenha o mínimo de consciência da realidade: o de reclamar.

Reclamara durante a manhã, reclamara durante a tarde, reclamara durante um passeio com o irmão pela orla e durante as boas vindas das mulheres no apartamento. Reclamou mais ainda quando Loukás teve a brilhante ideia de cozinhar algo de madrugada – o jantar tinha sido sopa de mariscos, e ele não sabia se era alérgico a isso – e brigou aos berros enquanto tentava tirar a tal panela das mãos de um caçula que insistia em teimar lhe desobedecer.

Só parou de reclamar quando a luz da cozinha foi acesa do nada, Benjamin entrou aos gritos empunhando uma vassoura, e a panela escapou das suas mãos, ganhando impulso com a força do Loukás-Adulto e voando certeira na cara do pobre do humano. O barulho de “Tain!” do encontro do metal com o crânio calou os três ao mesmo tempo.

E é agora que voltamos ao nosso segundo começo, com o rapaz desfalecido, Paris com as mãos na cintura, e Loukás se aproximando devagarinho dos dois. Ele se abaixou para pegar a frigideira arremessada e a abraçou firme contra o próprio corpo, pálido como porcelana. Ainda não parecia ter sido capaz de absorver completamente a situação.

— E-eu...– Indagou então, todo trêmulo. – Eu matei...?!

Paris se afastou jogando os bracinhos para o ar.

— Como se já não tivéssemos problemas o suficiente! – Reclamou ele.

— Papagaios, eu matei!

— E agora, o que é que a gente faz com esse moleque estirado aqui?!

— AARGHH, por que esses humanos tinham que ser tão frágeis?! – O caçula largou a frigideira e agarrou os próprios cabelos – Poxa, uma bomba eu até que entendo, mas uma panela?!

— Já sei – O mais velho correu para os pés do garoto – venha rápido, antes que o anjo da guarda apareça! Você pega por aí, eu pego por aqui, a gente joga pela escada e finge que foi um acidente.

— QUÊ?!

Foi então que ouviram o som de chinelos se arrastando velozes sobre o piso, parecendo se aproximar. Não deu nem tempo de pensar: de repente uma figura pequena e franzina estava de pé diante dos dois, de camisola de seda cor-de-rosa, touca no cabelo, e máscara facial verde musgo melecando todo o rosto, agarrada num suporte de perucas que provavelmente tinha sido a primeira coisa que ela viu pela frente ao levantar.

Paris soltou um mini gritinho chocado, voando para se esconder atrás da perna do irmão.

— Um duende! – Exclamou ele.

— Eu ouvi gritos! – A voz de Elisabete Lago quebrou tal devaneio, para alívio do pobre anjo. E então ela viu. – Benjamin!!

Largou a cabeça de manequim sobre a bancada, correu para se abaixar ao lado do sobrinho desacordado. Ainda tentou pegá-lo no colo, mas infelizmente era um peso muito grande para os seus jovens bracinhos, então se contentou em estapear suas bochechas na tentativa de reanima-lo.

— O que aconteceu?!

Loukás abriu um sorriso amarelo. Empurrou a panela com o calcanhar discretamente para debaixo do fogão.

— Eu não sei – E mentiu descaradamente – acho que ele se assustou ao me ver aqui, e...

Foi interrompido por um gemido baixo do defunto. Paris se afastou um pouco do seu esconderijo improvisado, dessa vez positivamente surpreso.

“Cacetada!” murmurou ele. "Isso que eu chamo de cabeça dura!"

— Benjamin – tia Betty prosseguia batendo no pobre do coitado que pelo visto ainda não tinha apanhado o suficiente – Benjamin, acorda. Sou eu, tia Betty, a sua tia tá aqui!

— Tia...?

— Sim, meu amor, estou aqui!

— Aai... – ele começou a se mexer debilmente, prensando os olhos e tentando alisar a própria testa – minha cabeça...

Abriu os olhos bem devagar, parecendo ter alguma dificuldade para isso – só para quase desmaiar de novo ao ver a cara da criatura verde que o tinha socorrido, e permanecia envergada em sua direção. O espasmo assustado que seu corpo deu diante do estado da tia a fez fechar a cara para ele.

— Ah, para de drama – reclamou ela – toda mulher tem seus truques de beleza, não seja ingênuo.

— E-eu... o quê... o que aconteceu? – Ele começou a tentar se endireitar, apoiado pelos cotovelos. Correu os olhos nervosamente pela cozinha, os arregalando ao pará-los sobre os de Loukás. – Ele! – Começou a apontar então, enfático – ele me acertou uma panela na cabeça!

Tia Betty virou o rosto para o cupido, que se fez muito espantado.

— Eeeu? Jamais faria uma coisa dessas.

— Você sim! – Insistiu o rapaz – e por que é que só eu tô gritando aqui? – Voltou-se então para a velha, urgente – Tia, tem um cara branco na nossa cozinha!

— É, eu sei.

— E por que não tá chamando a polícia?!

— Polícia? – Ela deu uma gargalhada boa – por que eu chamaria a polícia para o nosso hóspede?

— Hóspede?

— O que está acontecer...? – Uma quarta voz surgiu por trás do grupo, arrastada e sonolenta, duas vezes mais carregada de sotaque que o usual.

Era Emiko, que já chegou arregalando seus olhinhos pequenos para a inusitada cena que seu cérebro recém-desperto ainda demorou um bom par de segundos para processar como um todo. Ela olhou para Benjamin ao chão, depois para a Elisabete verde e rosa agachada ao seu lado, Loukás diante da pia, e aí de volta para Benjamin de novo, reiniciando o looping. A impressão que tinha era de ainda estar sonhando, ou talvez de ter invadido um episódio aleatório de uma daquelas sitcoms americanas que tanto gostava de assistir.

— Hum... – ela conseguiu dizer então – que horas são...?

— Três da manhã – respondeu Loukás.

— Não fala com ela! – Reagiu Benjamin.

— Ei! – Tia Betty se meteu – Não grite assim com o menino!

Nova rodada de revezamento de olhares. “É”, constatou Emi, mentalmente “eu definitivamente estou assistindo sitcoms demais”.

— Vamos, venha, levante – tia Betty começou a se erguer, tentando puxar o sobrinho pelos braços – venha sentar aqui na mesa direitinho pra gente tentar entender o que aconteceu.

Benjamin então se deixou levantar com alguma dificuldade, o que fez a amiga correr para ajudar Elisabete a apoiar seu peso durante o processo. Loukás nem ousou chegar perto. Estava convencido que era a última pessoa/criatura de quem o rapaz aceitaria alguma ajuda no momento, e tinha boas chances de estar correto quanto a isso.

Este desabou numa das cadeiras de madeira da mesa, alisando dolorosamente a pancada na testa, e ainda vendo o mundo girar à sua frente por alguns instantes. Céus, se já se sentia fraco antes de sair do quarto, agora aquela sensação dobrara de intensidade... E ver aquelas estrelinhas piscando diante dos seus olhos não era lá algo muito animador. Tateou a mesa em busca do copo d’água que tinha visto alguém colocar diante dele, e virou metade de uma só vez goela abaixo.

— Se sente melhor, meu bem? – ouviu a tia perguntar.

O jovem tentou fixar os olhos nos dela. A vontade que tinha era de responder com sinceridade que estava se sentindo uma bela merda, mas a expressão de preocupação que conseguiu flagrar por trás da máscara verde o demoveu da ideia.

— Estou legal – respondeu então, com um suspiro. Em seguida, como num passe de mágica, seus olhos pousaram involuntários no estranho ainda parado como uma estátua diante da pia, e ele contorceu o rosto na expressão mais descontente que conseguiu improvisar. – Você...

Loukás sentiu um calafrio de terror escorregar pela espinha com a intensidade do olhar que o atingiu. Abriu um sorriso todo trêmulo.

— Eu – acenou então, meio besta. Se perguntou logo em seguida por que carambas que fez isso.

— Por que carambas que você fez isso?!

O loiro piscou, surpreso.

— Acenar?

— Jogar uma panela na minha cara!

— Mas eu não joguei!

— Benjamin! – tia Betty se meteu com impaciência – quer parar de acusar assim o nosso hóspede?!

— E que história é essa de “hóspede”?

— A "história" que eu venho te contando desde ontem, mesmo contigo enfornado naquele quarto! – explicou ela, contando nos dedos – Que alugaram o quarto. Que o rapaz viria jantar conosco hoje. Perguntei bem alto pela porta se tu ouviu, e você só disse um "ahaam" todo mal-humorado.

— A inquilino – foi a vez de Emi tentar colaborar, mais calmamente. – Eu te falar também. Lembra?

O olhar que ela lançava para o amigo que o sustentava ali da mesa era carregado de significado. “Eu especificamente te pedi pra não o assustar", diziam seus olhinhos puxados, bastante arregalados e com as sobrancelhas negras lá em cima. “Tá lembrado disso?

E foi só aí que a ficha do rapaz finalmente caiu.

O inquilino.

Aquele inquilino.

Oh, não.

O humano não pôde evitar um olhar discreto para quem descobriu que havia julgado como um psicopata há apenas algumas horas mais cedo: e ele era loirinho, branquinho, todo engomadinho... algo que faria alguém regular comparar com anjos ou príncipes encantados e tal, mas que só fez a mente dele soltar um: igual ao Jeffrey Dahmer, cheio de horror. E o fato de ter sido literalmente nocauteado por ele há míseros minutos – estava convicto de que não tinha inventado isso – não ajudava muito a melhorar essa impressão.

Atordoado, Benjamin voltou a levar uma mão à própria cabeça. Era muita coisa para uma mente exaurida processar em tão pouco tempo. Pela segunda (ou seria terceira?) vez naquela noite, ele sentiu que poderia mesmo desmaiar.

Emi encheu o resto do copo d’água. O jovem o segurou tremulamente.

— Eu não entendo... – murmurou então, aéreo – eu levantei e... tinha um cara na cozinha... um cara branco que eu nunca vi... devíamos... ter chamado a polícia...

Elisabete soltou um risinho.

— Ora, querido – disse, brincalhona – eu não posso simplesmente ligar pra polícia no meio da madrugada só pra dizer que vi um cara branco na minha cozinha.

— Tem razão – ele finalmente pareceu parar para pensar – vamos dizer que ele era preto.

— E que tal não envolver polícia nisso? – Emiko sugeriu com um sorrisinho acolhedor. Chegou pelas costas do amigo e o segurou afavelmente pelos ombros, se inclinando para observá-lo mais de perto – Puxa... você não parecer nada bem.

Benjamin olhou de volta para ela. Seus olhos piscaram, literalmente, um de cada vez.

— O que aconteceu para você estar em chão?

— Eu...

— Eu acho que tenho um pouco de culpa nisso – Loukás se pronunciou de repente. Todos os olhares se voltaram para ele, incluindo o de Paris. – Eu sinto muito, mas... bom... – sorriu meio sem graça – eu fiquei com fome durante a noite e vim beliscar alguma coisinha na geladeira. Não quis acordar vocês, então deixei as luzes apagadas mesmo. Acho que devo ter te assustado, pelo tamanho do grito – ele agora encarava Benjamin no auge da sua cara de pau – desculpa.

O humano prensou os lábios, contrariado. Estava prestes a argumentar que ele tinha deixado um importante detalhe de fora daquela fantástica narrativa, quando foi traído pela própria barriga que roncou alto a ponto da própria Emiko escutar.

A garota lançou um olhar julgador para ele.

— Você não foi jantar, né...? – não era bem uma pergunta.

— Bom...

— Meu Deus, Benjamin – Elisabete se indignou – quando foi a última vez que você comeu alguma coisa?!

— Huh... – ele se embananou mais ainda.

E essa era uma oportunidade boa demais para o nosso anjinho perder.

— Sabem, existe uma coisa – começou ele, munido por não sei quantas décadas de pura hipocondria – chamada hipoglicemia. Acontece principalmente quando a gente não supre nossas necessidades alimentares, causando uma queda no nível de açúcar no sangue, e possíveis episódios de perda de consciência. Pelo que estou ouvindo vocês falarem daqui, me parece ser o caso, não é?

Viu, de canto de olho, Paris cobrir o rostinho com as mãos e menear a cabeça, como se quisesse muito desaparecer dali num passe de mágica. Aquilo o fez errar uma respiração, com medo de ter falado algo errado, mas ele conseguiu manter sua pose de entendedor da coisa toda.

Pose esta que se provou bastante eficaz desde o momento em que Elisabete ouviu as suas palavras, até o momento em que se levantou para poder brigar melhor com o sobrinho.

— Pois então está explicado! – Ela deu um tapa irritado no braço do jovem, que se encolheu e resmungou – Tá vendo o que eu vivo te dizendo?! “Saco vazio não para em pé, Benjamin!” – Mais um tapa – “Vai almoçar, Benjamin!” – Mais um. – “Tá muito” – tapa – “magro” – tapa – “Benjamin”!

— Aai, já entendi! – Ele reclamou de volta.

— Pois eu vou esquentar a sopa agora mesmo e você vai tomar pelo menos o caldo – tia Betty deu o veredicto, marchando em direção à geladeira para pegar as sobras num potinho.

Emi não resistiu em soltar uma divertida risadinha, que fez o amigo afagar distraidamente uma das mãos que ela permanecia deixando sobre seu ombro. Loukás os observava quietinho lá do seu posto diante da pia. Não resistiu em soltar a clássica frase:

— Vocês são um casal muito fofo – toda trabalhada na inocência.

O risinho de Emi ganhou um toque meio tímido, enquanto Benjamin se limitou a o encarar.

— Oh, nós não somos... – ela respondeu, se perdendo nas palavras – não somos... não estamos...

— Somos amigos – o rapaz a acudiu.

— É. Isso!

Benjamin tornou a desviar o olhar. Não estava interessado em assuntos do tipo.

— Nossa, sério? – Loukás voltou a sorrir – pois eu podia jurar...

— Ah, não, não, não, não. Mas tudo bem, é erro comum.

O humano balançou a cabeça lentamente, repuxando as pontas dos lábios para baixo. Caramba, “não, não, não, não”? Quádrupla negativa, uau.

— Bom, em todo caso... – prosseguiu o anjinho, aconselhado pelo irmão a não insistir por enquanto – espero que estejam prontos para ir ao hospital amanhã.

— Hospital?! – Foi só aí que Benjamin reagiu.

— É, hospital! – Tia Betty apareceu de repente, colocando o prato de sopa fumegante diante dele – ou você acha que as pessoas vivem assim, caindo duros no chão o tempo todo, e depois fingindo que nada aconteceu?

— Eu literalmente só desmaiei uma vez.

— Capaz de estar até com anemia – Loukás ensaiou se aproximar, estendendo uma mão – deixa eu só...

— Não toque em mim!

Ele recuou a mão rapidinho. Elisabete olhou feio para o sobrinho.

E aí começou a saga do tentar convencer aquela amostra grátis de pura teimosia concentrada em formato humanoide.

Ele estava mais do que resolvido de que não colocaria os pés naquele postinho novamente. Ah, mas nem que lhe pagassem! Tinha certeza que alguém tinha tirado uma foto dele e da tia e pendurado em um painel com uma tachinha vermelha em cima, onde, nos horários de folga, os funcionários aliviariam o estresse atirando dardos nas suas caras.

Tia Betty disse que aquilo era um absurdo. Paris disse que todo mundo ali era um absurdo. E a nova briga anunciada só foi interrompida quando Loukás conseguiu soltar um:

— Por que não vai com a Emiko? – que todos eles puderam ouvir.

Elisabete estava pronta para protestar contra a ideia quando a própria moça decidiu:

— Eu posso ir com você – E, sorrindo para o amigo, concluiu – pode ser?

Ele juntou as sobrancelhas, diante de um impasse. Não, definitivamente não queria voltar àquele fatídico postinho e correr o risco de ser expulso pelos seguranças com uma bela bota no traseiro – mas também não queria discutir com ela. De todos ali presentes, Emiko era a última pessoa a quem sua consciência pesada queria negar alguma coisa.

— Certo... – rendeu-se então, finalmente – mas só por vier das dúvidas... eu vou arrumar um disfarce.

 

* ☕ *

 

Loukás se recolheu de volta para seu quartinho dos horrores acompanhado pela figura invisível do irmão lá para as quatro da manhã.

Tudo bem que não tinha sido o seu começo dos sonhos no meio daquela casa – mas, pelo menos, tinha sido um começo. E daí que tinha apagado o seu humano, feito ele acreditar que estava maluco, acordado todo mundo de madrugada, e no final de tudo nem mesmo tinha conseguido comer alguma coisinha?

Pelo menos já estava tudo encaminhado: tão logo amanheceu direito o dia, Emiko e Benjamin partiram juntos para o hospital. Não era lá o programa mais romântico do mundo, é verdade, mas pelo menos a moça estaria lá, sendo o tipo de apoio que rapazes solitários tendiam a valorizar. O tipo que fortalece laços, cria memórias afetivas e tal. Essas coisas.

Pela fresta da porta, o anjinho tinha visto o casal de humanos prontos para sair – Emi toda bem vestida e penteada, contrastava com Benjamin e seu “disfarce” consistindo no cabelo espremido na metade por uma durag roxa de veludo, e uns óculos escuros vagabundos enfiados no rosto. Ele viu a moça torcer o nariz e abrir a boca para reclamar. Depois o rapaz se adiantar em enfiar as mãos nos sovacos, erguer o queixo e fazer uma pose comicamente séria que a desarmou numa risada.

Emiko desistiu dando um empurrãozinho no ombro dele e murmurando um “vamos, bobão” antes de desaparecerem pelo corredor.

— Você acha que eu deveria ir junto? Sabe... Como cupido? – Loukás perguntou baixinho a Paris, fechando a porta atrás de si e caminhando até o colchão.

Tinha tirado aquela camisa incômoda, ficando só com aquela calça tão incômoda quanto, e uns pares de meia até que não tão incômodas assim. Ah, que saudades que sentia de reclamar das túnicas e suas bundas de fora, pelo menos batia um ventinho legal de vez em quando...

— Não – respondeu o irmão, sério. – Acho que você já fez o suficiente por uma temporada inteira. Se conseguiu apagar o moleque em plena casa dele, tenho até medo do que faria em um lugar com tantas agulhas, bisturis, e pisos escorregadios como um hospital.

— Já disse que foi um acidente.

— Que poderia ter sido evitado se você me escutasse.

— Meh – ele enfim se jogou de costas na cama, espreguiçando o corpo inteiro – você se prende demais ao passado, garoto.

— Já disse pra não me chamar de garoto – Resmungou. Loukás fez uma careta para ele e se embolou mais nos lençóis. – Humpf... em todo caso, acho que preciso ir agora. Tenho que dar um jeito em algumas missões antes de voltar à nossa pesquisa. Quero ter algo para mostrar se Eros resolver aparecer mesmo na Revista dessa vez.

— Nós dois teremos! – Ele sorriu para o irmão. Este revirou um pouco os olhos. – Vá lá. Eu seguro as pontas por aqui.

— Não faça mais nada estúpido.

— Nem se for estupidamente genial?

— Não. Eu disse nada estúpido.

— Tááá... nada estúpido! – Jogou o travesseiro desleixadamente no ar. Ele caiu bem na sua cara. – Vou ser o anjo mais chato, quadrado e careta de todos os tempos. Pode deixar.

O velho anjo suspirou. Bateu as asinhas rapidinho para o portal da janela, hesitando um pouco ao passar pela moldura. Olhou sobre os ombros – Loukás estava em uma espécie de euforia particular com a maciez daquela cama, remexendo as pernas para lá e para cá e se afundando em algo parecido com um redemoinho crescente de lençóis azul-celeste, sob a vigia incansável das bonecas do anticristo. Era nas mãos daquele bobalhão que aqueles pobres humanos iriam estar agora, e sem ninguém para interceder pelas suas tristes almas indefesas.

“Afrodite tenha piedade” pensou. Voltou-se então para a rua, espichou as asas e alçou voo de volta ao Paraíso.

Porém nem ele e nem o irmão haviam notado um par extra de olhos os observando entre os brinquedos do quarto... uma risadinha malévola soou e sumiu entre os móveis como um sussurro levado pelo vento.

No segundo seguinte ambos não estavam mais ali.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Descobri que tenho a síndrome dos dedinhos nervosos - quando eu menos espero, eles fogem do meu controle e aí é tec tec tec tec tec até o capítulo ficar gigantesco!
Talvez eu deva começar a escrever com chá ao invés de café :(

A você que chegou até aqui, meu muito obrigada pela leitura, e espero te ver mais vezes ♥
pode avisar se estiver cansativo também, tá? Eu me empolgo, eu sei.

Enfim. Fui!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Errar é Divino" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.