Alma escrita por WriterM


Capítulo 3
Vazio


Notas iniciais do capítulo

Olá a todos. Já se passaram duas semanas desde a última atualização desta história. Não era a minha intenção demorar tanto, pois eu pretendia postar esse capítulo na última sexta-feira, mas infelizmente eu não pude terminá-lo a tempo. De qualquer maneira, antes tarde do que nunca, e aqui está ele. Desejo a todos uma excelente leitura.

Espero que gostem! xD



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A tempestade desabou por horas até finalmente começar a minguar.

Uma garoa fina e gelada caía lentamente do céu cinza escuro, tremulando sempre que o vento marinho soprava com rajadas repentinas vindas do sul. A paisagem fantasmagórica de Alba tornara-se ainda mais soturna devido à tormenta. O branco encardido que tingia as numerosas construções da cidade havia escurecido, encharcado pela água, e uma névoa pálida começava a desprender-se do chão chafurdado, anuviando o já desolado cenário. A visão era sorumbática quando vislumbrada do topo da escadaria, e a garota sentiu um calafrio desconfortável ao vê-la.

Crow pulou até o degrau mais próximo, espirrando água empoçada ao pousar na pedra molhada. O corvo sacudiu as penas arrepiadas e ajeitou-as com o bico; depois, contemplou a cidade por um breve instante antes de direcionar um olhar demorado para o céu. Ela pôs-se ao lado dele, permitindo a si mesma respirar um pouco de renovado ar fresco. O vento sibilava como uma serpente, trespassando a atmosfera úmida com os seus melancólicos assobios, e não muito longe dali ela podia ouvir as ondas quebrando no porto, agora muito calmamente, como se o temporal tivesse apaziguado a fúria das águas. À exceção disso, o silêncio imperava no restante do mundo.

— Vai continuar garoando por um tempo – disse Crow. – Mas o pior já passou. É seguro partirmos agora.

— Como sabe disso?

— Instinto. Os pássaros sabem. – E voou escada abaixo.

A garota observou, plácida, a misteriosa ave falante descrever um mergulho íngreme até pousar no tanque do imenso chafariz aos pés da colina, quinze metros abaixo. Crow crocitou para ela, o grito soando tão alto como o rugido de um monstro naquela quietude imperturbável. Ela começou a descer, cuidadosa, uma vez que a chuva havia transformado os degraus em perigosas armadilhas escorregadias. Enquanto bamboleava escada abaixo, reparou que o horizonte ficava um pouco mais escuro a cada minuto. O ocaso logo estaria sobre eles, e depois, a noite. Aquele pensamento não era nada reconfortante.

A tempestade havia transbordado o chafariz, fazendo o excesso de água lodosa jorrar para fora. A garota inclinou-se sobre o tanque; e pela primeira vez, contemplou o próprio reflexo no vazante.

— Então essa sou eu – sussurrou, estendendo os dedos para tocar a imagem refletida. Recolheu-os no mesmo instante, sentindo a água gelada agarrar-se à sua pele enquanto as ondulações se espalhavam pela superfície, transformando o reflexo num trêmulo borrão. – Os meus olhos são cinzentos. E o meu cabelo…

Ela tomou uma mecha prateada entre o polegar e o indicador e estudou-a por um segundo. Está errado, percebeu de súbito, meu cabelo não devia ser desta cor.

— Algum problema?

— É estranho. Estes fios são prateados, mas o meu cabelo é… era… diferente.

— Diferente, você diz. Apenas isso? Nenhuma cor lhe vem à cabeça?

Ela franziu o cenho, pensativa, os olhos fixos na mecha.

— Castanho – exclamou. – O meu cabelo devia ser castanho.

— Interessante. Não consigo imaginar uma razão para essa diferença, mas se você foi capaz de percebê-la, então talvez isso seja um indicativo de que as suas memórias estão vindo à tona.

Crow chilreou baixinho e voou até o topo da bica, vasculhando as redondezas com os seus incandescentes olhos vermelhos. A garota largou os fios que segurava e comprimiu a boca, lançando uma última olhadela para o reflexo. Ele parecia indistinto agora, como se espelhasse o rosto de uma outra pessoa ao invés do seu. Quem sou eu? Questionou-se, e, novamente, não encontrou a resposta que procurava.

— O caminho até a entrada da cidade fica por aqui – Crow anunciou. – Vi que o portão estava fechado quando entrei, mas pode ser que haja uma brecha por onde você possa passar. Siga-me.

Andar por Alba era como atravessar um deserto, a garota percebeu; uma travessia solitária e silenciosa, sem nenhuma alma viva além deles pelo que podia notar. As largas ruas de paralelepípedos da cidade eram espaçosas o bastante para comportar o fluxo de centenas, talvez milhares de pessoas, mas tudo o que ela encontrou durante o trajeto foi uma quantidade infindável de poças d’água paradas e buracos rasos que rasgavam o chão em diversos trechos do caminho. A garota estranhou estes últimos. À ela, parecia que o lugar havia sido bombardeado com catapultas, mas não havia nenhum vestígio visível para sustentar tal hipótese. Pode ser que o tempo os tenha dissolvido, pensou, ou então eles foram removidos pelas pessoas daqui.

Contudo, também não havia sinais de pessoas. Casebres modestos e mansões, estalagens, ferrarias, tabernas, adegas, lojas de especiarias, templos e até mesmo um ou outro bordel escondido amontoavam-se ordenadamente até onde ela podia ver, ladeando tanto as ruas espaçosas quanto os becos e vielas sinuosos que serpenteavam por entre as construções, mas todos se encontravam vazios. Muitos e ainda mais estavam pelo menos parcialmente destruídos, outros tantos não eram mais do que ruínas. Os inúmeros canteiros que outrora enfeitaram a cidade jaziam mortos e esquecidos, e boa parte das esculturas que a garota encontrou em sua caminhada havia perdido a garbosidade; depredadas ou completamente destruídas. As estátuas eram numerosas em Alba, ela logo aprendeu. De dragões, wyrms e serpentes marinhas, à cavaleiros de armadura montados em corcéis de guerra e até as figuras misteriosas que encontrara no templo, tais ícones despontavam nas praças, pátios e átrios como rochedos no meio do mar. Encontrou-se imaginando por qual razão a cidade tinha tantas delas. Talvez os habitantes de Alba vissem algum significado especial nessas imagens. Ou apenas achavam-nas bonitas peças de decoração. Seja lá qual fosse o motivo, era estranho haver mais figuras de mármore do que pessoas em um lugar tão grande.

Já estava andando há quase uma hora, orientando-se apenas por Crow, que voava logo acima dos telhados para indicar o caminho. O firmamento gris havia ficado mais escuro, e conforme a noite se aproximava, a mudez lúgubre começava a passar do desconfortável para o insuportável. A garota involuntariamente apressou o passo, o manto negro balançando suavemente com o trote. A imagem daquele vermelho encardido voltou à sua cabeça. Não há uma única pessoa por aqui, pensou, mas aquela cor estava por toda parte. Ela não conseguia deixar de pensar no que seria aquela cor. Era um tom agourento. Fiquei arrepiada só de vê-lo, e o vi por não mais do que alguns segundos. Lembrou-se do que Crow lhe dissera horas mais cedo: “O mundo está em desequilíbrio, e a cor vermelha é a responsável por isso”. Mas como? O que, de fato, era tal vermelho? Odiava não saber a resposta. Foi quando sentiu um arrepio levantar os pelos da sua nuca. Não consigo enxergá-la agora, mas a cor está aqui. Estou caminhando através dela.

Sua mão dominante encontrou o colar debaixo do manto. Não sabia porque fizera aquilo, mas sentir a prata gelada beijar a pele dos seus dedos aquietou-a um pouco. “Não tenhas medo, nós estamos com você”. A voz que ouvira no templo ainda ecoava em seus ouvidos, outra pergunta sem resposta.

Menos de vinte minutos depois, as construções desapareceram. Uma praça espaçosa, cujo chão esburacado exibia tijolos arranjados em um padrão circular, separava a imensa muralha da cidade resguardada por ela. Um largo canteiro redondo marcava o núcleo do lugar, mas nele havia apenas terra molhada, as flores há muito desaparecidas. Crow crocitou do alto; descreveu um círculo no ar e desceu até ela, pousando em seu ombro direito. Boquiaberta, a garota caminhou até o meio da praça, olhando de baixo a cima as paredes maciças que assomavam à frente tal como um gigante emergindo das profundezas da terra. A muralha tinha cerca de trinta metros de altura; os merlões e as ameias tão numerosos na extensão de seu topo como árvores numa floresta, assim como eram as seteiras estrategicamente posicionadas abaixo destes. Da mesma forma que o restante da cidade, a imensa fortificação era ebúrnea, todavia, a sua cor exibia uma feia tonalidade desbotada e meio escurecida pela tempestade. Na altura do solo, a muralha era contornada pelo canteiro mais comprido que a garota já vira, um alfobre soturno de pequenas árvores sem folhas, arbustos desfolhados e uma variedade enervante de flores murchas, de violetas à rosas. O enorme portão resguardava a entrada de Alba, localizado bem no centro da muralha sob um arco semicircular com metade da altura das paredes que o rodeavam; um austero entrelaçado de grossas vigas de madeira terminadas em pontas cônicas e afiadas como os dentes de um dragão.

Uma flâmula enorme e esfarrapada pendia sobre o arco, oscilando ao vento; o símbolo com a corrente e as três esferas destacando-se no fundo esverdeado do tecido. Logo abaixo, ladeando a entrada da cidade por ambos os lados, estavam as mesmas estátuas que a garota havia visto no templo, estas, porém, possuíam o dobro do tamanho daquelas. Essas aí também parecem me vigiar, pensou, desconfiada.

— Esse símbolo está por toda parte – estreitou as orbes cinzentas para a flâmula. – As estátuas também. Vi algumas delas espalhadas pela cidade.

— Imagino que o ciclo tenha sido venerado nestas terras. Lhe asseguro que esse não é o último que vamos encontrar. Creio que o mesmo valha para estas estátuas – Crow olhava para as esculturas de mármore com um olhar indecifrável. – Sinto como se conhecesse estas figuras, embora eu não tenha nenhuma lembrança delas.

— Tenho o mesmo sentimento em relação a este símbolo – ela apertou o colar. – Queria saber porque tenho um desses comigo.

— As respostas virão. Elas sempre vêm.

Mesmo? Se sim, quando?

A garota balançou a cabeça, soprando as dúvidas para longe; e aproximou-se lentamente do portão, os olhos semicerrados estudando a muralha de ponta a ponta. A primeira coisa que reparou foi na ausência de guardas patrulhando o topo, mas aquilo não a surpreendeu muito. Em seguida, os numerosos danos espalhados pelas paredes captaram a sua curiosidade. Mesmo com as suas proporções titânicas, a muralha não fora isentada da desolação que assolava o restante de Alba. Depredações de diferentes tamanhos e formas esburacavam aqueles altos muros de pedra, ao passo que rachaduras espalhavam-se em abundância por eles, riscando o fundo branco tal qual raios num céu tempestuoso. A princípio, ela pensou que aquilo fora causado por um ataque inimigo – provavelmente com o uso de catapultas ou trabucos –, mas não tardou a descartar tal teoria. Se aquele fosse o caso, não fazia sentido que tais avarias estivessem na face interna das paredes. 

— Crow, quero que me responda uma coisa. Enquanto eu estava dormindo, aconteceu alguma guerra nesse país?

— Não. Como eu disse, todos os dias parecem iguais por aqui, então nunca testemunhei nada fora do habitual. De qualquer maneira, não me parece que tenha restado pessoas o suficiente para travar uma guerra. Por que a pergunta?

Ela franziu o cenho, analisando com desconfiança as avarias da muralha.

— Tudo está em ruínas. Uma muralha desse tamanho é feita para ser resistente, a fim de aguentar desde assaltos inimigos até a própria força da natureza, mas veja como ela está danificada. Se nada aconteceu durante o meu sono, então pode ter sido antes disso, mas se não for esse o caso… Não consigo imaginar outra razão plausível para explicar isso. A cidade também está arruinada, e duvido que todo esse estrago tenha sido causado por uma tempestade, ou mesmo por uma dezena delas. E vinte anos não é tempo o bastante para assolar estruturas desta maneira. O que você acha?

— Você não está errada – disse, observando as altas paredes da base ao topo. – Penso que aquela cor vermelha possa estar relacionada de alguma forma. Recordo-me dela desde os meus primeiros dias e, às vezes, tenho a impressão de que ela está mais intensa hoje do que há uma década. Além disso, toda essa destruição não se limita à Alba. Há outras vilas e cidades em igual estado por todo o país de Ventus.

— Então… acha que isso foi causado por algo antinatural?

— É possível.

Surgem mais dúvidas a cada minuto. Ela andou até a muralha e estendeu uma mão até ela, sentindo a pedra úmida sob a ponta dos dedos ao alisá-la.

— Se é assim, então como…

Uma rachadura espalhou-se repentinamente por baixo de sua mão, abrindo uma laceração na rocha que não estava ali um segundo antes. A garota levantou as sobrancelhas, surpresa, e pressionou o local com a palma aberta. Um som de esmagamento ecoou em seus ouvidos quando uma cratera rasa abriu-se na parede, derrubando frágeis fragmentos de pedra molhada que dissolveram-se no chão ao tocá-lo. Espantada, ela recolheu a mão e flexionou os dedos. Mesmo Crow parecia surpreso.

— Você tem uma força descomunal.

— Não fui eu – outra rachadura projetou-se do buraco, ramificando-se como uma teia de aranha. – A muralha está frágil como papel velho.

— Como se ela estivesse apodrecendo?

— Sim. – Anuiu. Um pequeno bloco de pedra se soltou da área danificada e caiu no chão, fragmentando-se em uma dúzia de pedaços menores.

Crow ficou silencioso por um momento. Para ela, ele parecia pensativo.

— Talvez esteja mesmo – o pássaro falou. – Ela e todo o resto.

— Mas como…

— O mundo está em desequilíbrio. Lembre-se disso. – Uma lufada fria fez as penas de Crow se arrepiarem. – A noite está quase sobre nós. É melhor partirmos depressa, já perdemos tempo demais aqui. Veja, há uma brecha entre as vigas do portão.

A passagem não era mais do que um fresta estreita no canto oriental do arco, onde pedaços iguais de madeira e pedra haviam ruído e aberto um caminho grande o suficiente para uma pessoa pequena passar. A garota precisou se espremer por ela, mas, uma vez feito, estava fora da cidade. A muralha encontrava-se tão danificada do lado de fora quanto estava por dentro, com uma camada viscosa de musgo crescendo próximo do solo. Estreitou os olhos para ela uma última vez, escabreada, e seguiu Crow para as dunas.

A estrada que saía de Alba era uma floresta de ervas daninhas meio soterrada por areia soprada pelo vento, traçando o seu caminho para o norte por uma centena de metros até desvanecer em um traiçoeiro declive arenoso. Atravessar aquelas dunas não teria sido muito mais fácil caso a areia estivesse seca, mas a tempestade transformara o percurso em uma frágil armadilha natural. Cada passo da garota afundava no chão fofo, e ela tropeçou uma dezena de vezes até aprender como se manter estável; agarrando-se nos montantes de vegetação costeira que brotavam da areia sempre que o solo se soltava sob os seus pés. A névoa cinzenta que obscurecia o firmamento tornara-se quase negra; e embora a garoa tivesse cessado, ela sentia-se encharcada, o frio crescente penetrando em seus ossos como finas agulhas de gelo. A baixa luminosidade corroborava para tornar o caminho ainda mais perigoso. Vai ser uma noite muito gelada, pensou, preocupada. E escura também. Crow disse que não há mais estrelas.

A garota arrastou-se através de areia molhada e flora litorânea morta por cerca de quatrocentos metros até avistar as primeiras árvores despontarem na paisagem; troncos velhos com galhos nus rasgando a terra fofa. Duzentos metros adiante, ela precisou fazer a primeira parada para recuperar o fôlego perdido na subida. O solo ali em cima era um pouco mais firme que as dunas abaixo, e ela começava a sentir um cascalho pontiagudo sob as suas solas. Apoiada em um tronco seco e curvado como um abutre, com o peito subindo e descendo devido a respiração desregulada, ela olhou por cima dos ombros; vista dali, Alba era uma mancha invisível escondida na penumbra. O céu atrás da cidade havia desaparecido. Aquela visão fê-la sentir um arrepio, e assim que recuperou parte das forças, a garota voltou a subir.

Crow sempre ia à frente para mostrar o caminho. Os olhos luzidios do corvo eram faróis vermelhos em meio a escuridão emergente, os únicos guias confiáveis com os quais a garota podia contar naquele momento. Trezentos metros após a última pausa, eles pararam. Ela mal conseguia enxergar mais do que um palmo diante do rosto, mas pôde discernir com dificuldade o contorno de uma extensa parede de árvores assomando na frente deles. Crow crocitou e pousou no galho de uma delas. A garota engoliu seco. Se já quase não enxergava ali fora, em terreno aberto, entre as árvores estaria completamente cega.

— Não acho que seja uma boa ideia continuarmos, Crow. Está escuro demais para eu enxergar qualquer coisa aí dentro.

— Não se preocupe, eu serei os seus olhos. Lhe mostrarei o caminho.

Ela não estava convencida.

— Talvez possamos passar a noite aqui fora.

— É perigoso demais – Crow insistiu. – Aqui estamos expostos ao vento e à chuva, e qualquer uma destas coisas pode te arrastar para baixo se não tomar cuidado. Além disso, o frio será severo essa noite. Há cavernas nesses bosques. Podemos nos abrigar em uma delas até o raiar do dia.

A garota mordiscou o lábio inferior. Ela sabia que Crow estava certo. Mesmo assim, a ideia de mergulhar às cegas naquele arvoredo sombrio a fazia sentir-se perturbada. Sentiu um calafrio ao se lembrar, repentinamente, do que Crow havia lhe dito mais cedo; algo sobre monstros grotescos que perambulavam por aquelas terras. Pensar naquilo deixou-a ainda mais desconfortável. De repente, as árvores pareciam maiores e mais aterradoras.

— Aqueles monstros que você mencionou antes – tartamudeou para o pássaro. – Eles estão aí dentro?

— Eles estão por toda parte. Vamos rezar para não encontrarmos nenhum.

E sem dizer mais nenhuma palavra, Crow voou bosque adentro, deixando-a sem demais alternativas senão segui-lo. A garota tateou o colar prateado em busca de alguma coragem no momento em que atravessou a barreira arbórea. A escuridão era total, mas mesmo sem enxergar ela sabia que as árvores avultavam sobre si, irrompendo do subsolo como as presas de um demônio. As orbes escarlates de Crow eram tudo o que ela podia ver, dois pontinhos minúsculos flutuando entre os galhos.

— Há uma raiz à sua frente – ela ouviu a voz dele alertá-la. Levantou os pés e deu uma passada larga para frente, aterrissando em uma pilha de folhas mortas. – Continue em linha reta agora. Oh, tem um carvalho caído logo adiante. Salte-o ou dê a volta, não faz diferença. O caminho está livre depois dele.

Ao menos ele cumpre com o que promete, pensou enquanto passava por cima do grande carvalho. Sentia-se grata por aquilo. Não fosse por Crow, ela teria sido obrigada a tatear cegamente por entre as árvores. Ainda assim, a orientação advinda do corvo não era suficiente para fazer com que a sua marcha fosse menos lenta, uma vez que a ausência de luz a forçava a calcular cada movimento com extrema cautela. Um único passo em falso e ela poderia terminar com um tornozelo quebrado.

A vegetação densa reduzia a ventania do litoral à uma brisa suave, mas o frio aumentava a cada minuto. O cheiro de terra molhada impregnava o ar; e o farfalhar das folhas, bem como os seus passos desajeitados pisando na terra úmida, eram os únicos sons audíveis. Tal como em Alba, o silêncio, ali, era enlouquecedor. A calmaria permaneceu sólida como uma rocha por quase uma hora, até que um ruído distante sutilmente a quebrou. Ela parou de andar e prendeu a respiração, toda a atenção posta no barulho. A distância o tornara indistinto em um primeiro momento, entretanto, não demorou para que ela o identificasse.

Água, pensou, sentindo a boca se encher de saliva. Só então ela reparou no quanto estava sedenta.

— Há água por perto – ela disse. – Um riacho, talvez.

— Sim – confirmou Crow. – Posso vê-lo daqui de cima. Uns cem metros ao norte, ou tão próximo disso que não faz diferença. Venha, vou levá-la até lá.

Não tardou para que o som de água corrente explodisse nos ouvidos da garota, tornando-se mais alto à medida em que ela se aproximava de sua origem. No momento que sentiu os dedos dos pés afundarem em lama, ela soube que havia chegado. Agachou-se, tateando o solo até encontrar a água. Permitiu-se sentir a fraca correnteza passar através dos seus dedos por um breve momento antes de fechar a mão no formato de uma concha, enchendo-a o máximo que podia. A garota levou o líquido até os lábios e o sorveu prazerosamente; uma parte dele escorrendo do queixo ao manto para encharcá-lo ainda mais. Aquela água tinha um sabor terroso, mas ela não poderia ter desejado nada mais delicioso. Bebeu outros três goles até dar-se por satisfeita e só então enxugou a boca com as costas da mão.

Crow havia se empoleirado num galho debruçado sobre o riacho.

— O seu coração ainda está acelerado. Descanse um pouco.

Ela tocou o peito e encontrou o órgão batendo lepidamente sob a carne. Respirou profundamente a fim de aquietá-lo, uma, duas, três vezes. Com o vento fazendo os arbustos sussurrarem uns para os outros e o som molhado do riacho acalentando o silêncio, repousar naquelas margens lamacentas foi, por um efêmero momento, uma experiência quase relaxante. Até que uma coruja piou.

A garota teve um sobressalto com o grito estridente da ave. A mudez sucedeu o piado um segundo depois. Então ainda restaram alguns animais, pensou, alarmada.

— Não estamos sozinhos, pelo jeito.

— Não mesmo – o tom de Crow estava anormalmente sombrio. – Aquela coruja voou para longe. Alguma coisa a assustou – o som de galhos se quebrando alertou a ambos, vindo do outro lado do riacho. – Garota, saia de perto da água, o mais silenciosamente que conseguir.

A água explodiu com uma pancada violenta. A garota arregalou os olhos com o susto, mas conteve o grito. Sentia os pelos da nuca eriçados, tão arrepiados quanto as costas de um porco-espinho. Houve uma segunda pancada, e uma terceira, cada uma mais próxima que a anterior. Não pensou duas vezes e apressou-se a se arrastar de volta para os arbustos. No galho sobre o riacho, os olhos de Crow olhavam em sua direção, arregalados com seja lá o que estivessem vendo.

Suas costas encontraram um largo tronco coberto de musgo. Sem saída. No mesmo instante, as pancadas alcançaram a lama. São passos. Tem alguma coisa se aproximando. Nunca sentira tanta falta da capacidade de enxergar como agora. Ela mordeu os lábios, tão forte que sentiu o gosto do sangue invadir a boca. Seu coração palpitava tão intensamente que o som devia estar levando Crow à loucura. Mais um passo e um calafrio percorreu o seu corpo da cabeça aos pés. Involuntariamente, ela fechou os olhos…

… e quando os abriu um segundo depois, o vermelho estava de volta. O mundo ganhou forma ao seu redor, as árvores, os arbustos, as margens enlameadas e o riacho; todos eles maculados pela mesma tonalidade encardida que testemunhara mais cedo no templo em Alba.

A criatura diante de si era a aberração mais terrível que já havia visto. O seu corpo era humanoide e cadavérico, escuro como a noite, tão magro e ressecado que ela conseguia vislumbrar as costelas sob a pele enegrecida; e oscilava como se fosse feito de fumaça. Da caixa torácica para baixo, a coisa não possuía nada além de um fragmento quebrado da coluna e tiras esfarrapadas de pele. Seus braços compensavam a ausência de pernas, no entanto; dois membros extremamente finos e longos com pelo menos dois metros de comprimento, terminados em mãos amplas com cinco dedos ossudos e compridos como garras. A criatura olhava diretamente para ela, mas sua cabeça era apenas um crânio descarnado com orbes vazias onde deveria haver olhos. A mandíbula havia desaparecido, e os dentes da arcada superior pendiam como presas, sorrindo um macabro sorriso incompleto.

Ela soube imediatamente que estava olhando para um dos monstros que Crow mencionara. A visão daquele encheu-a com um terror tão profundo que ela sentiu vontade de gritar, mas a voz tinha sumido de sua garganta. Olhou para Crow em busca de ajuda, mas o corvo apenas olhou-a de volta com o pânico estampado em seus olhos. E o que ele poderia fazer para ajudá-la, afinal? Aquela coisa era muito maior e mais temível do que o seu pequeno pássaro guia. O monstro ficou imóvel como uma pedra. Durante um minuto angustiante, nada aconteceu.

Até que, como se finalmente tivesse notado a sua presença, ele inclinou a cabeça para ela e soltou um grito terrível que penetrou no fundo dos seus ouvidos. O som era grave e rouco, tão próximo e desagradável que obrigou-a a cobrir as orelhas com as mãos. Quando o monstro parou de rugir, um zumbido irritante ressoava em sua cabeça, e ela teve a certeza de que não esqueceria aquele barulho tão cedo. A criatura pousou os olhos nela, expirando um último rosnado.

E então atacou.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado por lerem até aqui. Se possível, por favor, deixem um comentário dizendo que acharam, o feedback de vocês é valiosíssimo para mim.

Nos vemos no próximo capítulo. Tchau! xD



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