Alma escrita por WriterM


Capítulo 2
Despertar


Notas iniciais do capítulo

Desejo a todos uma boa leitura.



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O mundo era um vazio tomado pela escuridão, um mar de sombras tão profundo que nenhuma alma jamais poderia escapar dele. A consciência era a única coisa que lhe dava a certeza de estar viva; à deriva pelas águas escuras daquele oceano, arrastada para longe, para lugar nenhum. Um calor suave irradiava de algum lugar dentro de si, tão brando que era quase impercebível.

A dor foi a sua primeira sensação. De repente, aquele calor aconchegante tornara-se uma pira infernal que a consumia de dentro para fora, incendiando todo o seu ser, da carne ao osso, do osso às cinzas. A dor era agressiva, cruel e insuportável. Era como se estivesse sendo mergulhada em óleo fervente. Instintivamente, quis gritar e despejar toda a sua agonia para fora, mas, quando procurou a voz para fazê-lo, descobriu que a sua boca estava tão silenciosa quanto um túmulo.

A dor não era nada, comparada ao que veio depois.

O silêncio sepulcral que revestia o breu fora estilhaçado quando as vozes ergueram-se das profundezas. Poucas, no começo, mas logo multiplicaram-se em dezenas, centenas, milhares; um turbilhão avassalador que violava os seus ouvidos da mesma forma que o calor devorava todo o resto de si. Algumas sussurravam, segredando-lhe murmúrios indecifráveis que ela não compreendia. Outras, choravam, expressando as suas tristezas num pranto tão soturno que ela própria sentia vontade de unir-se à elas. Muitas além destas gritavam, ensandecidas, cegas de raiva e de ódio. A algazarra era ensurdecedora e enchia o seu peito de angústia. Parecia-lhe que o som perfurava a carne de seu coração e expulsava o ar dos seus pulmões, sufocando-a até o desespero. Ela queria gritar. Queria chorar e fundir a própria voz às infindáveis outras que a cercavam, mas seus lábios não proferiram nem mesmo o menor dos ruídos.

Cada voz parecia dizer uma coisa diferente; nenhuma delas era inteligível, pelo menos, a princípio, cada uma vociferando um lamento próprio que se perdia em meio aos outros. Passou-se muito tempo até que os seus ouvidos, finalmente, começaram a se adaptar ao coro e a discernir o que ele dizia. As vozes não estavam em desacordo. Todas elas diziam, uníssonas, uma única frase: Salve-nos.

De repente, estava acordada.

Seus olhos se abriram, devagar, duas orbes cinzas como o céu de inverno olhando para um teto baixo povoado por teias de aranha. No começo, enxergava o mundo embaçado, como se o visse através de neblina, mas bastou algumas piscadelas para que o foco retornasse a sua visão. Sentiu um último espasmo de dor abrasiva percorrer o seu corpo e arfou. Ali, o ar era seco e cheirava à poeira e mofo.

Onde estou? A garota se perguntava, desnorteada. O lugar era escuro e apertado, selado por paredes de pedra espessas e empoadas. A única luz parecia vir debaixo de onde estava deitada, uma cintilação tênue que oscilava do branco ao preto, e retornava do preto ao branco. Tentou se levantar, apoiando-se nos braços, mas encontrou-os tão fracos que ela quase cedeu ao próprio peso. Sua cabeça pesava uma tonelada, e o esforço fê-la girar, deixando-a tonta. O resto do corpo parecia engessado, com cada articulação respondendo aos movimentos mais simples de maneira lenta e desajeitada. Foi só quando ela, por fim, ergueu um pouco o torso, que percebeu a presença do corvo.

— Você finalmente despertou. Eu estava à sua espera.

O pássaro negro estava empoleirado em seu colo, afundando as garras no manto preto que lhe cobria o corpo enquanto a observava através de dois olhos vermelhos. A garota fitou-o, atônita, com a boca semiaberta em uma exclamação muda de surpresa.

— Imagino que esteja confusa – o corvo continuou. – Não se preocupe, eu irei esclarecer tudo o que você precisa saber.

Sem tirar os olhos do pássaro, ela esforçou-se para se endireitar sobre o altar, sentando-se ereta. Os cabelos prateados caíram como uma cascata sobre o dorso, destacando-se completamente das vestes escuras que usava. O chão irregular era duro e desconfortável sob os seus pés.

— Você fala. – Disse, monocórdia, sentindo as palavras roçarem através dos lábios secos. A própria voz soava estranha em seus ouvidos.

— Sim – o corvo anuiu. – E tenho muito a dizer.

— Isso… Como isso é possível?

— Creio que o meu criador julgou o dom da fala necessário para que eu pudesse cumprir o meu dever. – Explicou.

Uma expressão consternada desenhou o rosto da garota. Nada daquilo fazia sentido para ela.

— Eu não entendo.

— Tudo a seu tempo, garota. – Ele inclinou a cabeça para ela, olhando-a com incerteza. – Pode me dizer qual é o seu nome?

Ela ponderou durante algum tempo, franzindo o cenho.

— Eu… não sei. Não consigo me lembrar – disse, sentindo um arrepio. – Eu não me lembro de nada.

Ela comprimiu os lábios, um gosto amargo impregnando a boca, indesejado e desgostoso, ao passo que suas mãos fecharam-se num aperto nervoso. A única memória que possuía era a do calor estalando em seu corpo, enchendo-a de dor, e das vozes implorando por ajuda. Por que não se lembrava de mais nada? Nenhum nome lhe vinha à cabeça quando procurava por ele, e também não se recordava de como fora parar ali, deitada sobre um rudimentar altar de pedra em uma câmara escondida na penumbra. Quem sou eu? Indagou-se. O que está acontecendo?

O corvo crocitou, atraindo a atenção da garota para ele.

— Por favor, acalme-se. O seu coração está ensurdecedor agora.

Ela levou uma das mãos ao peito, confusa, e sentiu o órgão palpitar tão furiosamente que parecia prestes a sair pela boca. Sua respiração vinha na forma de arfadas rápidas e irregulares, fazendo o peito subir e descer. Adrenalina corria por suas veias, fluindo através do corpo, furiosa, como um rio transbordando depois de uma chuva. Só então ela percebeu o quanto estava assustada. Precisou de um minuto para se acalmar; e quando o fez, perguntou ao corvo:

— Você pode ouvir o meu coração?

— Sim. Ouvi-o bater de muito longe, e as batidas guiaram-me até você. – Ele explicou. Seus olhos brilhantes destacavam-se no escuro, pensativos. – Parece que você está com amnésia. Pode ser que as suas memórias voltem com o tempo. Até lá, explicarei tudo o que eu puder. Consegue andar? Você já passou tempo demais confinada nesse subsolo, é hora de sair daqui.

Ela não tinha certeza – nem se podia andar, nem de todo o resto – mas assentiu e arriscou ficar de pé. Suas pernas estavam trêmulas, e pareciam, para ela, perigosamente instáveis. A garota descobriu que estava certa assim que deu o primeiro passo. Caminhar era estranho. Os membros inferiores vacilaram, como se nunca tivessem sido usados antes, e ela caiu de joelhos, apoiando-se com as mãos no chão para evitar desabar de bruços na rocha. Pareço uma criança que não sabe andar, pensou, frustrada, enquanto se reerguia com um esforço infernal. De pé, com o canto dos olhos, ela reparou brevemente no símbolo brilhante sob o altar, a única luz no recinto, mas não atentou-se muito a ele. Repetiu o processo, desta vez, conseguindo bambolear como um bêbado por uns dois metros até tropeçar e cair com um baque surdo, arranhando as palmas das mãos ao tentar amortecer a queda. O corvo observava a experiência, impassível como só uma ave conseguia ser. Somente na terceira tentativa ela obteve êxito. Seus passos continuavam desajeitados, mas, pelo menos, conseguiam fazê-la andar com alguma eficiência.

O corvo crocitou com aparente satisfação, bateu asas e voou, adentrando na escuridão por um corredor estreito. Não fossem os seus olhos, ele teria se tornado invisível na penumbra. Sem outra alternativa a não ser segui-lo, ela fez o mesmo percurso, tomando todo o cuidado possível para não tropeçar nos próprios pés ou bater a cabeça no teto. Uma escada a esperava no fim do caminho. Os degraus não eram dotados de grande extensão – tinham, no máximo, quatro metros da base ao topo – mas subi-los foi tão desgastante quanto escalar uma montanha. Fora do subterrâneo, a garota inspirou profundamente, ofegante, e encontrou o corvo às suas costas, esperando-a, empoleirado em um altar muito mais requintado do que aquele em que estava ainda há pouco. As orbes flamejantes do pássaro cintilavam na negritude do ambiente, sinistras na baixa luminosidade. Ela viu-se momentaneamente intrigada por elas. Olhos vermelhos, pensou, mas corvos não tem olhos dessa cor. E não falam como humanos.

— O caminho é por aqui – disse e saiu voando.

O salão era incrivelmente grande, uma imensidão cavernosa embebida em trevas. A única luz disponível era pífia e advinha das fileiras de janelas altas que estendiam-se pelas paredes; dedos fantasmagóricos que penetravam sorrateiramente no breu. Ela precisou se esforçar para obter algum vislumbre dos seus arredores. A primeira coisa que reparou foi o símbolo desenhado no chão, a enorme corrente circular interligando duas esferas de cores opostas, uma branca, outra preta, oscilando ao redor de uma terceira, cinza e muito maior, no centro do círculo. As estátuas de mármore captaram sua atenção logo em seguida. Ela caminhou até o símbolo, cambaleante, fazendo o som dos seus passos ecoar por todo o salão. Parou sobre a esfera grande, no exato ponto onde as maciças esculturas olhavam uma para a outra, como guardas resguardando os portões de um castelo. Observando o símbolo sob os seus pés com mais atenção, ela percebeu que ele era, curiosamente, idêntico àquele na câmara logo abaixo. Parecia-lhe familiar de algum modo, mas ela não compreendia o porquê. Ergueu os olhos e lançou olhares perplexos para as estátuas, demorando-se em cada uma delas.

As figuras entalhadas no mármore vigiavam-na, austeras, tão diferentes como o dia e a noite. Uma era branca e pura de tal modo que faria inveja à um jardim de lírios; a outra, soturna como a escuridão que a cercava, principalmente, devido à foice monstruosa que carregava consigo. A presença delas era tão intimidadora que a fez sentir-se pequena. Contudo, aquelas estátuas também proporcionavam algum tipo de paz, como se o simples fato delas estarem ali fosse um indicativo de que tudo ficaria bem. Ela era grata àquela sensação. Tudo lhe era estranho e desconhecido. O coração em seu peito estava dúbio, transbordando com uma crescente inquietação que ela não conseguia controlar. Havia apenas névoa em sua cabeça, tão densa que obscurecia quaisquer lembranças que ali se escondessem. Nem sequer sei o meu próprio nome. O pensamento era triste e frio, mas ela agarrava-se ao efêmero conforto que as estátuas transmitiam. Talvez eu precise dele.

A voz gutural chegou repentinamente aos seus ouvidos, vinda de lugar nenhum:

Não tenhas medo. Nós estamos com você.

Tão rápido quanto surgiu, a voz desapareceu, uma brisa ilusória soprada para longe. Assustada, ela espreitou os arredores em busca da sua origem, mas tudo o que encontrou foi escuridão. As estátuas mantinham a sua eterna vigília, assim como faziam há meio minuto. Um trovão rugiu, quebrando a súbita calmaria, mas o som fora abafado pelas densas paredes de pedra. Um pensamento absurdo passou por sua cabeça. Posso estar delirando, pensou, mas elas parecem estar olhando direto para mim.

A ideia esvaiu-se como cinzas ao vento quando o corvo gritou, estridente, parecendo vir de algum lugar lá fora. Ela seguiu o som, mas não sem antes dar uma última olhadela desconfiada em cada uma das estátuas. De costas para elas, a garota as sentiu vigiar cada um dos seus trôpegos passos.

Ela precisou se espremer pela fresta estreita entre as colossais portas de madeira escura para sair do salão. O mundo externo era uma monocromia cinzenta. Uma longa galeria coberta despejava-se à sua frente, ladeada por uma vintena de colunas altas e grossas. O corvo a esperava no fim do caminho, minúsculo àquela distância. A garota caminhou até ele, cautelosa, enquanto o vento soprava furiosamente; fazendo os seus longos cabelos prateados dançarem no ar e esvoaçando o manto negro que a protegia do frio. Assim que ela se pôs ao lado do pássaro, uma rajada forte fê-lo abrir por um momento. Por baixo do manto, tudo o que ela vestia era uma túnica de linho branco que descia até os joelhos, presa à cintura por um fino cinto preto de seda. Um colar pendia do seu pescoço, até então despercebido por ela. O adereço era simples, porém bonito, constituído por um cordão de cânhamo terminado em um símbolo de prata…

…o mesmo símbolo que jazia ilustrado no piso do salão às suas costas, e que estava sob o seu altar na câmara subterrânea. Aquilo era uma surpresa. Curiosa, ela tomou o colar entre os dedos da mão direita, sentindo o metal frio contra a sua pele. A prata refletia em suas íris cinzentas como o sol nas águas de um lago. Surpreendeu-se quando o corvo pousou em seu ombro direito, as penas eriçadas por causa do vento.

— Esse símbolo de novo. – disse enquanto olhava para o colar. 

— Você sabe o que ele significa? – Ela perguntou.

— Sei – sacudiu as penas. – O ciclo básico e absoluto que rege esse mundo: Vida, Morte e Renascimento.

Ela estava perplexa.

— Vida, Morte e Renascimento – murmurou as palavras, como que para gravá-las em sua própria voz. Uma outra lufada arrancou-lhe um arrepio e instigou-a a fechar o manto, puxando o capuz por cima da cabeça a fim de mantê-la protegida. Depois, ela olhou para a paisagem à sua frente. – Que lugar é esse?

— A cidade chama-se Alba – disse o corvo. – É a localidade mais ao sul do país de Ventus. Sente o cheiro de sal no ar? Estamos no litoral, com o oceano bem atrás de nós.

Ela sentia, e também conseguia ouvir o som das ondas rebentando à distância, inquietas com o vendaval. Fora isso, o vento e os trovões eram os únicos barulhos audíveis. A garota achou aquele silêncio estranho. Mesmo perante a tempestade iminente, uma cidade como aquela deveria ser mais ruidosa.

— Por que tudo está tão quieto?

Antes que o corvo pudesse fazer qualquer menção de responder, um relâmpago iluminou os céus, riscando a escura imensidão cinza com um lampejo cegante de luz violeta. Ela deu um passo para trás, assustada; fechando os olhos com força enquanto o trovão estrondava de maneira ameaçadora. O corvo crocitava em seus ouvidos, tão atordoado quanto ela. Quando abriu os olhos, tudo estava vermelho.

Alba recebera o seu nome devido à tonalidade da sua arquitetura, ela toda branca ou ebúrnea, motivo pelo qual a enorme cidade era tão alva quanto a neve. Agora, porém, a garota não enxergava nada níveo ali. O branco fora substituído por um feio vermelho encardido, tão impregnado como ferrugem no aço. O que diabos é isso? Perguntou-se, pasma. A cor não estava presente apenas nos múltiplos prédios ou no chão paralelepipedal de Alba; encontrava-se, também, no céu, nas colunas ao seu redor, e até o vento parecia ter se tornado visível com aquele tom agourento. Está tudo vermelho. É como se o mundo tivesse sido banhado em sangue. Um segundo depois, ela piscou e as cores voltaram ao seu normal. As primeiras gotas d’água despencaram do céu, gordas e pesadas, e logo a chuva desatou a cair.

— O que foi isso?

O corvo olhou-a de soslaio.

— Isso o quê?

— Você não viu? Estava tudo vermelho há um segundo.

— Oh – ele parecia recordar-se de algo. – Então é isso. Também já tive essa visão algumas vezes. Não é uma vista bonita.

— Não – ela anuiu. – Mas você não respondeu a minha pergunta. O que foi isso? Por que tudo ficou vermelho de repente? – Sentia o coração acelerar dentro do peito, os questionamentos surgindo um após a outro. Ela sentou-se no chão meio depredado, abraçando os joelhos. O corvo pulou de seu ombro e pôs-se a seu lado. – O que está acontecendo?

A ruidosa queda da tempestade era a única barreira que impedia o domínio do silêncio. Ficaram taciturnos pelo que pareceu, para a garota, uma eternidade; enquanto a água escorria pelo telhado abobadado como as lágrimas de uma mulher. As dúvidas tamborilavam em sua cabeça, nublando os pensamentos. Finalmente, o corvo tomou a palavra:

— Lá embaixo, eu disse que esclareceria tudo à você. Bem, receio que haja muito que eu mesmo não saiba, mas cumprirei com o prometido. Por onde quer que eu comece?

Ela pensou por um segundo antes de responder.

— Quem, ou o quê, é você?

— Sou o seu companheiro. Não… creio que guia seja uma definição mais adequada.

— Guia? – Arqueou as sobrancelhas.

— Sim. Em minha memória mais antiga, eu recebo uma missão de meu criador. “Quando a hora chegar, leve-a até a Montanha do Alvorecer. Ilumine o seu caminho e dê-lhe a sabedoria necessária para seguir em frente. Seja os seus olhos no céu, o norte que indica a direção. Não importa o que aconteça, faça com que ela chegue à montanha”. – Ele recitou. – Eu esperei por muito, muito tempo, para guiá-la nessa jornada.

— Muito tempo… Antes, você disse que estava à minha espera – um frio glacial tomou conta das suas entranhas. – Corvo… por quanto tempo eu estive dormindo?

— Eu não sei se “dormindo” é a palavra certa. Hoje foi a primeira vez que ouvi o seu coração bater, então, da minha perspectiva, é como se você tivesse acabado de nascer. – Explicou. – Quanto ao tempo que se passou, é difícil ter certeza. Todos os dias parecem iguais por aqui. Entretanto, vi as estações mudarem várias e várias vezes, ainda que elas sejam quase idênticas entre si e o cenário permaneça imutável quando elas transitam. Não é uma estimativa muito precisa, mas creio que seja algo em torno de vinte anos.

Os olhos da garota ficaram arregalados; a boca, entreaberta. Impossível, pensou, descrente, isso não pode estar certo.

— Sei que é difícil de acreditar – o corvo continuou, como se lesse os seus pensamentos. – Mas é a verdade. Quando ouvi o seu coração bater mais cedo, pensei que estivesse delirando, pois passei tempo demais escutando o silêncio. Felizmente, eu estava errado. Você é bem real. Não sei se isso serve de algum consolo, mas eu estou satisfeito em vê-la.

Suas mãos estavam trêmulas. Logo, todo o seu corpo estava tremendo. Ela abraçou os joelhos com mais força, não demorando para que estes começassem a ficar dormentes com o aperto.

— Vinte anos… isso é… inacreditável – balbuciou em um tom quase inaudível. – Por que eu? Por que estive dormindo todo esse tempo, e como cheguei até aqui? Por que preciso ir até essa tal montanha? O que me espera lá?

— Lamento. Meu criador não concedeu-me essas informações. Tudo o que sei sobre este assunto é que devo levá-la até o local.

— E quem é o seu criador?

O corvo ficou taciturno, e isto foi resposta o suficiente para ela.

— Você não sabe, não é? – Indagou. – Parece que você precisa de ajuda tanto quanto eu.

— Talvez – ele concordou. – Ouça, posso não saber as razões para ir até a montanha, nem a identidade daquele que me criou, mas tenho alguma noção do que está acontecendo. O mundo está em desequilíbrio. O céu é encoberto por uma perpétua névoa cinzenta, nunca faz sol e está sempre frio. As noites são escuras e sem estrelas, e monstros disformes caminham por onde deveriam haver criaturas vivas. As coisas não funcionam mais como deveriam, e a cor vermelha que você viu agora há pouco é a responsável por isso. Aquilo está por toda parte. Eu não sei o que ela é, mas não devia estar aqui.

Ela ouviu a tudo calada, atenta a cada palavra. Não duvidava de nenhuma delas. Bastava uma olhada rápida para que ela soubesse que ele dizia a verdade. Sabia desde o silêncio anormal que algo estava fora do lugar. Mas por quê? A garota queria saber. Por que logo eu despertei neste mundo quebrado?

Uma montanha, e um guia para conduzi-la até ela. A informação de que dispunha era escassa, mas era a única luz que possuía no momento. Arriscou perguntar:

— Acha que nós podemos descobrir o que está acontecendo se chegarmos na montanha?

— É uma possibilidade.

Ela refletiu em silêncio por um instante.

— Onde fica essa Montanha do Alvorecer?

— No extremo norte de Ventus, do outro lado do país.

— E nós estamos no extremo sul – maravilhoso. – Você sabe como chegar lá?

— Já fui até as proximidades da montanha, uma vez, enquanto investigava esse país desolado. Isso já faz muito tempo, mas eu tenho de saber o caminho. Afinal, a minha função é levá-la até lá.

— E quanto tempo levaríamos para chegar nesse lugar, se partíssemos agora?

— Isso é incerto, mas asseguro que não será uma viagem rápida. Sobrevoei Ventus por anos a fio à espera do seu despertar, e nesse meio tempo, descobri que este país é repleto de florestas, bosques e pântanos. Há algumas áreas abertas também, mas a maior parte do terreno não é de fácil locomoção. Além disso, há os monstros. Eles estão por toda parte e são perigosos. Acredito que, na melhor das hipóteses, demoraríamos algumas semanas. Na pior, alguns meses.

— Nesse caso – disse enquanto se levantava. – Eu torço para que sejamos abençoados com a primeira opção. – A tempestade ruía impiedosamente, ocultando a cidade com uma impenetrável cortina de água.

O corvo parecia surpreso.

— Não imaginei que ansiasse por essa jornada.

— Não anseio. Mas, se chegar a essa montanha me trouxer respostas, se isso me ajudar a recuperar as minhas memórias, me fazer lembrar quem sou eu, então eu quero fazer isso. – Exclamou. Pela primeira vez desde que acordara, as suas palavras soaram firmes e obstinadas. – Vou precisar da sua ajuda.

— É claro – ele crocitou. – Farei com que chegue até a montanha.

Ela anuiu, meio aliviada, até que uma questão importante lhe veio à mente.

 — Posso lhe fazer uma última pergunta?

— Estou à sua disposição.

— Você tem um nome?

— Um nome? Não, nunca tive um.

A garota o estudou com um olhar indecifrável. Então, ela disse:

— Sendo assim, eu vou chamá-lo de Crow.

Ele inclinou a cabeça, intrigado.

— Você não precisa me dar um nome. Sou apenas o seu guia.

— Pelo menos um de nós deve ter um nome. Por favor, aceite esse.

— Certo… Crow, então.

Ela esboçou uma sombra de sorriso, uma curvatura tão tênue em seus lábios que a diferença mal era visível. Crow, pensou, não é muito criativo, mas vai servir. Mas e quanto a mim? Quem sou eu?

A chuva não dava sinais de que iria abrandar tão cedo. Enquanto vigiava o aguaceiro, com as dúvidas pairando sobre a sua cabeça anuviada, as águas caíam, confinando os seus questionamentos em um gélido caixão de silêncio.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem até aqui. Vejo vocês na próxima. Tchau! xD



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