Anamnese escrita por Mandalay


Capítulo 1
Anamnese — capítulo único




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Quando seus olhos se abriram para observar o que havia ao seu redor tudo o que viam era uma escuridão sem fim nem começo, um lugar onde nenhum som ecoava e tão pouco a voz poderia se propagar entretanto, ele notara a umidade abaixo de seus pés, como se caminhasse pela lama conjurando forças para dar o próximo passo.

Suas roupas também pareciam diferentes.

E ele se lembrava vagamente de não ter estado descalço quando subira naquela cadeira, o cômodo onde estivera nem de longe conseguiria ser tão escuro...

Então ele conseguira!

Ele finalmente conseguira!

Estava morto.

Ele, Osamu Dazai, finalmente alcançara seu tão sonhado objetivo.

A morte.

E este provavelmente era o outro lado.

Ele só não contava que estaria sozinho ali, gostava de se ludibriar pensando que haveriam outros como ele naquela mesma situação, em passagem, mas não permeavam seus ideais estar mais uma vez solene em sua própria companhia e fora assim até que uma figura enfim surgisse diante das sombras que o cercavam, e se sua memória não estivesse confusa por completo dado ao estado em que se encontrava, ele se lembrava daquele caminhar.

Dos sapatos ao traje que vestia quando chegou próximo a ele.

Aquele rosto era inconfundível.

— Odasaku.

Seu velho amigo lhe sorrira com as mãos nos bolsos mas não por muito tempo, quando seu caminhar mudara de modo sutil, se tornara mais lento, languido e demorado, como se cada passada de pernas fosse uma dança captando sua atenção mais uma vez aos pés, que agora estavam descalços como os dele e não pareciam nada masculinos. Subindo seus olhos ele notara a sutil alteração de gênero no corpo, com muito mais curvas e menos vestes, conforme chegava na altura do colo ele percebera o distinto brilho dourado ao canto de sua vista, tal como as longas madeixas negras e a forca que se encontrava solta sobre seus seios, como se fosse um colar.

Uma de suas mãos segurava o restante da corda - o brilho dourado sendo o acessório em ouro que decoravam seus pulsos - como se ela posasse para uma pintura.

Os olhos da mulher a sua frente faiscaram ao vê-lo em sua forma completa.

— Então enfim nos encontramos, meu Pequeno Pacifista.

Algo se agitou em sua consciência e desceu para onde seu coração estava no momento em que aquelas duas palavras foram ditas, como se elas formassem uma linha invisível porém firme ao redor do órgão, o puxando para frente, trazendo seu ser ao centro e acordando seus sentidos mais primitivos antes adormecidos.

Um sorriso triste se formara para adornar a faceta melancólica deste.

Aquele era seu nome.

Quem diria que os egípcios estavam certos quando diziam que alma se dividia em pequenas partes, sendo que uma delas ninguém, nem mesmo a pessoa abrigando tal âmago, realmente conhecia. Apenas os deuses.

Aquela personificação divina acabara de dizer seu verdadeiro nome.

— É um prazer poder estar em sua presença, Ixtab.

— Não preciso de reverências nesse momento, mas agradeço o gesto Pequeno Pacifista.

Ele sorriu.

Seu peito se contraíra diante de tamanho impacto que aquelas palavras causavam sobre seu corpo.

Algo comprimia lhe a garganta, tal como sua habilidade para a fala.

Ixtab lhe estendera a mão que não segurava a corda e ele a pegou, segurando firme enquanto caminhava ao lado dela rumo a um lugar que ele desconhecia.

— Por que se enforcou?

— Porque sabia que uma bela dama me aguardaria do outro lado.

Ela rira, o som ecoando largamente pelo espaço por onde caminhavam.

— Diga a verdade, Pequeno Pacifista.

— Uma morte indolor parecia tão impossível quanto conseguir alguém que me acompanhasse por ela, por sorte conheci você, Ixtab, então se não conseguisse morrer junto de uma bela dama, que ao menos encontrasse uma depois do processo.

As passadas cessaram por um momento e ela se voltara para ele, a altura da divindade rivalizando com a dele próprio, se não fosse pelo compadecimento em seu semblante enquanto o observava.

A mão que segurava a corda se firmou em seu gesto.

— Não existe uma perda que não doa Pequeno, não há uma morte que não cause sofrimento.

— Eu sei.

Ixtab suspirara por fim, voltando seus passos e o levando consigo.

— Me desculpe por usar a imagem de seu amigo, queria que você não se sentisse estranho diante de minha figura.

— Não imaginava que veria um rosto amigo uma última vez, obrigada por isso.

Outro suspiro.

— Enquanto meu povo ainda existia, homens não eram enforcados, eles morriam pela honra e pela glória de suas batalhas mas me surpreendeu vê-lo aqui, um escritor japonês, um detetive promissor, abdicando de sua vida mesmo tão jovem.

— Odasaku costumava dizer que o vazio que existia em meu peito não poderia ser preenchido por nada em terra, vivo, imaginei se morto encontraria o que busco.

Ela o olhou, em seus olhos duas abobadas celestes se iluminavam.

— E encontrou, Pequeno Pacifista?

Sua mão se agarrara a dela com força, sentindo algo além do que ele poderia compreender como mero tato, seu corpo estava leve demais, desacostumado demais aquela nova sensação, seu interior parecia entrar em combustão a cada passo dado.

E ele nunca se sentira tão completo.

Ele soubera disso no momento em que seu nome fora chamado por aquela beldade em forma de divindade, que o guiava pela escuridão certa tão serenamente.

Não havia lugar para arrependimentos ali, ele tivera uma boa vida, vivera com bons amigos e morrera, acompanhado de seus tormentos não solucionados, se é que eles poderiam ter sido solvidos em vida.

Enquanto uns riam outros choravam e ele torcia para que aqueles com quem cruzara em terra estivessem rindo da dor que sua morte poderia tê-los causado.

— Sim Ixtab, eu encontrei.

Um sorriso largo se mostrou a face decorada por maçãs necrosadas.

— Então seja bem vindo, Pequeno Pacifista, ao vosso paraíso.

Ao seus pés, o negro viscoso brilhara como um céu estrelado e uma luz estonteante o cegara para dar espaço a uma vastidão tão bela quanto o cartão postal mais bonito de Yokohama.


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Notas finais do capítulo

Ixtab é a deusa Maia para aqueles que cometem o suicídio por enforcamento e pelo que pesquisei, é cogitado que ela seja uma divindade fabricada mas honestamente, meu motivo aqui era escrever uma morte para o Dazai e ela me pareceu muito atraente para tal ideia, já que ele enquanto personagem adora dizer que gostaria de cometer suicídio a dois com uma bela mulher. O que mórbido por si só. E isso de "verdadeiro nome" é algo que os egípcios chamavam de "Ren", uma das nove partes em que a alma era dividida

Sei bem que misturei duas culturas politeístas bem diferentes numa oneshot só mas no final ficou interessante, não? Aliás, Dazai me parece ser alguém bem estudado a ponto de conhecê-las, só detesto essa obsessão dele por querer morrer, sério, tem como ele ser menos enervante?!



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