EndGame escrita por Helly


Capítulo 3
Nível II. Fácil


Notas iniciais do capítulo

Oiii. Eu vim mais cedo essa semana porque vou ter que ir resolver as papeladas do meu estágio.
Espero que goste :)

PS: Eu AMO a capa desse capítulo.

OBS: Isso aqui (»×«), é uma leve quebra de tempo.



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“Sei que ela tem coragem, mas está presa dentro dela

Tem medo de falar, mas ela não sabe por quê...

...Corra muito rápido e você vai arriscar tudo

Não se pode ter medo de cair.”

Little Me – Little Mix

 

REY

 

SOU um ser humano horrendo! Os deuses dos jogos Online devem estar me julgando pelo pecado capital de vasculhar a conta de outro jogador sem ele saber. O inferno me aguarda. Irei despencar no ostracismo e o baque ecoará pelo mundo todo.

Observo a tela do computador e a mensagem ali contida. Ainda não o respondi. Talvez porque, depois que cheguei em casa, me senti mal por invadir suas anotações. Agora a reflexão é: Eu fui invasiva? Por que me deixei levar pela curiosidade? Por que fui impulsiva? Ele teria feito o mesmo? Se fosse eu em seu lugar, ficaria com raiva disso que ele fez? Foi tão grave assim? Ou eu estou aumentando o tamanho do problema? É uma torneira na  minha cabeça e eu estou dizendo que é uma tormenta?

Gostaria tanto de voltar no tempo e tocar em meus ombros e dizer uma única frase: "Amiga pare, assim não tem como eu te defender”.

Pela décima quinta vez – só hoje e, sim, estou contando – me sinto mal de novo e fecho o jogo. Desligo o computador como de costume, sempre desligo antes de ir para o trabalho.

A minha rotina matutina é assim, acordo às cinco da manhã, ligo o computador, responde Supremo Líder, jogamos um duelo particular, faço a minha higiene básica e vou para o bairro da faculdade; tomo o café da manhã em uma padaria na frente da faculdade e vou assistir a minha aula, que é a última que falta para terminar tudo. Na volta só deixo as coisas do curso em casa, troco de roupa, respondo as mensagens dele antes de sair para trabalhar e pego a bolsa do trabalho, que já está com tudo que uso no dia a dia. 

Durante o dia eu o respondo quando possuo um tempo vago, porém, sempre converso e respondo após o meu almoço, às cinco da tarde, quando estou saindo do trabalho, quando paro em um sinal até chegar em casa e quando chego em casa, que é quando converso sem parar com Supremo Líder. Ele está mais inserido na minha vida e na minha rotina diária do que os meus pais e o meu padrinho.

Eu contei a ele meus medos sobre meus pais biológicos voltarem e destruírem a minha vida com os meus pais adotivos, sobre a constante pressão que eu me imponho para não soar ingrata com os outros, do quão perfeita eu tenho que ser por medo deles me renegarem, que aceitei fazer outra faculdade para agradar meu pai e o meu padrinho, sobre o ambiente nojento do trabalho, que às vezes procuro uma pós em Engenharia mecânica, a minha primeira formação acadêmica; que estou tão desesperada em agradar a todos e esconder como isso me faz mal às vezes. Lhe mostrei minhas cicatrizes profundas e ele não as criticou, me apresentei de forma crua, com demônios e tudo, e ele me aceitou, me respeitou, me acolheu e me compreendeu. Supremo Líder fez algo que nem mesmo eu fiz, me aceitar como eu realmente sou.

Somos algo muito além de amigos de jogo, até muito além de melhores amigos. Por isso fiquei empolgada e impulsiva para conhecê-lo. No começo conversávamos mais sobre os jogos, de repente nos aprofundamos e viramos confidentes cheios de segredo um sobre o outro. É uma curiosidade natural a que me abateu ao vê-lo e ter acesso mais físico e realístico. São anos nessa relação cheia de intimidades, segredos e verdades duras demais para contarmos para outras pessoas além de nós. Eu o queria aqui, na minha frente, onde posso ouvi-lo e vê-lo e eu só percebi que queria isso ardentemente quando vi a oportunidade na minha frente.

Não me entenda mal, eu me arrependo de ter invadido o seu território com os dois pés na porta – mesmo que sem querer. Me sinto péssima e quero dizer tudo a ele, só que tenho medo de sua reação e de um possível afastamento dele. Supremo Líder é a única companhia que me fornece a sensação de não estar sozinha em um mundo cheio de pessoas amorosas e outras cuzonas – claramente estou citando 99% do meu setor. Isso me leva ao ponto de: Se eu tiver uma visão do homem fora do jogo, como desejei no começo e lá no fundo ainda quero, poderei saber como dizer isso sem perder as nossas conversas, sem perder ele. Saberei um jeito de dizer tudo sem machucá-lo ou ofendê-lo e ele continuará na minha vida, no meu círculo íntimo – onde a quantidade de habitantes é ele e ele. É esse vestígio que alimenta o meu lado obscuro da força.

Diferente de ontem, que agi por impulso, hoje estou nesse dilema moral sobre o que devo fazer de forma certa e nada impulsiva. Nossa, que moral longa. Esse pequeno vestígio do que fiz me assombra acompanhada da culpa, porque sei que olhar as suas anotações foi errado – mesmo que não tenha lido as mais íntimas, eu acho.

Mamãe costuma dizer que coloco os bois na frente do carro e depois de levar uma paulada, me arrependo amargamente. Informei que o ditado estava meio estranho e misturado com outros, e ela me deu um bolinho de carne a menos na janta. Outro ditado, que duvido que seja real, que ela costuma dizer que se enquadra a mim, é que eu transformo uma torneira em uma tormenta. Eu não sei nem de onde que ela desmembrou para forma esse “ditado”. Pelos menos, agora, posso dizer que estou começando a crer que ela tem razão.

Deixo meus livros do curso e meus cadernos em cima da mesinha que há atrás do meu sofá verde. O professor disse que iria encaminhar um e-mail informando o dia da prova, mas que possivelmente seria entre amanhã e daqui a três dias. Amo o comprometimento dele em ferrar com a minha vida, nunca teve notas baixas neste quesito. Tiro meu estojo e jogo no sofá, a mesinha está lotada e eu só coloquei umas seis coisas.

Meu apartamento não é enorme e parece essa mesinha em um sentido filosófico. A diferença é que essa mesinha é bem localizada na casa, o oposto do apartamento que não é bem localizado como os condomínios chiques do centro da cidade.

Minha casa não é aquilo que sempre idealizei e, enquanto morava com os meus pais, tive. Uma casa enorme, com mais de cinco quartos, uma cozinha gigante, um quintal maior do que a casa, uma lareira acolhedora, uns vaso sanitários chiques e brilhantes, espelhos enormes que vão do chão ao teto, inúmeros banheiros com banheiras gigantes, sótão com coisas velhas cheias de memórias e uma porão que é na verdade mais um cômodo de jogos.

 Muito pelo contrário, minha casa é um apartamento pequeno, confortável e adorável. Com um quarto que só dá a cama de casal, uma cômoda com ursinhos de Star Wars em cima dela, duas mesinhas de canto ao lado da cama, um baú retangular grande, que também é um pufe e fica em frente à janela, e, do lado oposto a janela, um buraco na parede que chamo de guarda-roupa. Utilizo uma cortina, feita por mamãe, como “porta do guarda-roupa” e só utilizo porque ela me intimou a botar a cortina.

As únicas decorações que possuo no quarto são as cortinas azuis, meus quadros com fotos e mais fotos da minha família na parede e um na mesinha de canto, ursinhos de Star Wars, dois quadros do jogo, dois abajures brancos nas mesinhas, as almofadas azuis e verdes no pufe retangular cinza, uma samambaia entre o pufe e a cama e os tapetes vermelho e marrons que ganhei de papai assim que me mudei, e que veio do país que ele nasceu – é praticamente uma herança familiar passada de pai para filha. O chão é elevado, devido algum problema que houve antes que eu morasse aqui, e para entrar preciso subir dois degraus de uma escada de madeira. O quarto é em tons de azul marinho, principalmente nas roupas de cama, a maioria dos móveis são em cores claras e só a parede que é neutra – cinza claro.

O final da sala fica de frente para a porta dupla de vidro que dá para o quarto e liga a casa toda, só por ela dá para acessar os cômodos. A sala é o maior cômodo da casa e nela ficam a minha estante de livros, uma poltrona pequena e macia perto da janela, uma bancada cheia de flores e plantas variadas; essa parte fica de frente para o meu quarto e é separada do resto da sala pela a mesa do computador. O resto da sala é comum, uma TV grande presa à parede, uma mesinha de centro redonda, um sofá grande com almofadas de cores variadas, uma enorme mesinha atrás desse sofá e mais outros dois sofás em tom de azul desbotado e pequenos. O chão é de madeira, diferente do quarto.

A cozinha fica logo atrás do sofá grande e da mesinha, mamãe diz que é uma cozinha americana; já que não há parede ou divisórias separando a sala da cozinha. Os móveis são nos tons de azul marinho e branco, cheio de bancada devido ao fato de não ter onde colocar mesa. E os eletrodomésticos todos na cor cinza chumbo.

Sendo franca, a parede da casa toda é cinza claro e o chão varia de cómodo. O da cozinha é um piso que imita madeira, a sala de madeira, o quarto um superfície lisa em um tom desbotado de azul escuro e o do banheiro são quadradinhos branco.

O meu banheiro é todo branco, me sinto em um hospício quando entro. Até as bancadas e decorações são todas brancas. Se bobear sou louca devido ao fato do banheiro recriar um quarto de hospício.

Só há quatro janelas, que possuem cortinas nos tons de azul e verde. Uma se localiza no quarto e pega a parede toda do chão ao teto, botei a cortina azul espessa para combinar com a cortina que mamãe me deu. E as outras três ficam na sala e são diferentes da do quarto, não vão do chão ao teto e deixam um espaço de três palmos do teto e cinco do chão, são quadradas e coloquei cortinas verdes transparente.

Meus pais amaram a casa e o padrinho Han também, até o tio Lando amou. Uma resposta oposta da reação do tio Luke, um dos tios que mais me acolheu, que me ensinou esgrima e é o meu tio favorito. Ele odiou tudo, disse que era muito pequeno e ficava em um bairro perigoso, chegou a insistir para que me mudasse para os prédios chiques do centro. Han implicou com ele dizendo “Você não entende das coisas porque veio de berço de ouro” e assim mais uma cena de embate deles começou, mas sempre com um clima leve e implicâncias entre irmãos.

Eu amo a minha casinha e até acho que o bairro é só um bairro normal como os demais. Ok que não possui ronda de hora em hora da polícia; só que dá para o gasto. Dá para eu, Rey, ter uma vida tranquila e pagar as contas com o meu dinheiro.

Não posso dizer, ou sequer cogitar dizer, que sou classe média, não quando meus pais compraram o apartamento e possuem uma situação financeira considerável – para não dizer que eles são ricos. Eles possuem inúmeras fazendas, vinhedos e papai é sócio do padrinho Han na fábrica de automóveis dele. Só que são eles, mesmo eu sendo herdeira, o dinheiro é deles e o trabalho duro é deles, não é meu suor ou meu esforço.

Por eles, vivia no centro da cidade, em um bairro caríssimo na minha concepção, ou em um condomínio chique da área rica da cidade. Mas eu não quis. Quero viver uma vida modesta sem ostentação, me virando com o dinheiro que recebo no trabalho, suando pelo meu próprio dinheiro, dando meus pulos para conseguir as coisas que quero sem depender deles e carregando, pelo menos, um traço bom do meu passado, a minha garra em persistir diariamente mesmo quando tudo está horrível.

Não quero carregar somente feridas do meu passado. Quero ser que nem as mulheres do setor de Marketing, inteiras emocionalmente, sua própria fonte de renda e confiantes. É isso que acho extremamente belo nelas, e não a aparência de modelos da Vogue.

Saio de casa com as chaves do carro na mão. Diria que me acostumei a subir e descer todos os dias quatro lances de escada, de certa forma é terapêutico e me acalma.

Devido a ser um apartamento bem antigo, não há um estacionamento digno. Todo dia devo andar até o lote que há dois apartamentos depois do meu. O dono foi esperto ao criar esse estacionamento em uma rua onde não há local seguro para guardar o carro.

Caminho contando os passos, para não pensar nele, nos meus atos e no fato de que, pela terceira vez consecutiva, estou indo trabalhar com uma blusa de O Iluminado que roubei do meu pai. Se eu tivesse uma reputação, ela seria uma das piores.

Cumprimento o vigia do estacionamento e logo estou no meu amado fusquinha tom de creme. Mamãe disse que era um carro soft e fofinho demais para uma garota que quebrou o dedo brincando de soquinho com um cara maior do que eu. Concordo.

Assim que entro no fusca, abro as janelas para arejar e não morrer no calor, espero a esfriada gostosa das brisas para poder ligar o fusca. Como de praxes, tenho uma luta contra o rádio para poder ligá-lo. Depois de um minuto de luta, consigo ligar e colocar nas músicas de Coruscant. Fico feliz quando percebo a música que está tocando, é a música da única série que a madre superior nos deixava ver. Ela achava que era uma série sobre órfãos em uma escola e que o foco era a música. Tadinha, ninguém nunca contou que Rebelde é o oposto disto.

— Te encuentro despierto. – canto enquanto dirijo para fora do estacionamento.

Hoje é o meu dia de sorte, a música está no começo. Pensamentos positivos atraem coisas positivas.

 

»×«

 

Caminho a passos rápidos para a entrada da empresa. Eu acho muito chique que a empresa literalmente comprou o prédio ao lado para fazer de estacionamento dos funcionários e ao mesmo tempo possui um estacionamento no subsolo do prédio da sede.

Como no dia da aula chego um pouco tarde, meio dia e no mais tardar meio dia e dez, às vagas que pego estão do sétimo andar para cima. Mas nos dias normais, sem aula, costumo botar no estacionamento do prédio que trabalho, é até mais rápido para bater ponto.

Minha vida profissional se resume em pegar elevadores para poder me locomover e inseguranças originadas de um ambiente tóxico. As únicas exceções a esse padrão tóxico é esta passarela, que estou andando, que liga o estacionamento com o primeiro andar da sede; e a garota gentil do meu departamento. Como não vejo as gêmeas da recepção com frequência, elas são um pulsar de uma luz bem fraca e chocha.

Passo em menos de um minuto a passarela. Geralmente nesse horário não há o formigueiro, uma quantidade enorme de funcionários seguindo o mesmo caminho lentamente como se fossem uma horda de zumbis. Eu amo o horário de meio-dia.

De costume penso que o dia será bom assim que entro no enorme prédio cinza, não gosto quando fico extremamente abatida como ontem – mesmo quando tenho motivos de sobra. Ando até as catracas procurando o meu crachá. Respiro aliviada, não esqueci de novo. Aproximo da máquina e a portinha abre, acho tão fofa essa máquina e ao mesmo tempo a acho assustadora e por causa disso passo correndo.

— Rey! Rey! – paro no meio do caminho para o elevador e espero Korr Sella chegar toda afobada em mim. – Rey, não é? – concordo com a cabeça, pelo menos a forma que gosto que me chamem está pegando. Ou então deu merda, ele descobriu tudo e vou ser demitida por justa causa. – Bem, muito obrigado por ontem, Rey que não é mais estagiaria.

Ou não. Por essa não esperava. Sei nem o que fazer nesse instante, sei lá, eu dou dois tapas nas costas dela? É algo bem raro aqui. Sem ser a garota gentil e as gêmeas da recepção, ninguém aqui agradece nada que faço. Geralmente Korr Sella me dá "boa noite" antes de ir embora. Se bem que costumo ficar mais tempo do que ela ao atualizar o seu computador. Depois de ontem achei que ela era como os outros, mas não. É bom estar errada às vezes.

— De nada. – respondo-a acanhada.

— Ontem nem deu para agradecê-la direito, ele estava impaciente para ir embora.

— Tudo bem. Espero que você não tenha se ferrado por causa de ontem.

— Que nada, Leia conseguiu elaborar uma história melhor do que a minha.

— Ele… – olha, ela parece conhecê-lo pessoalmente, não custa nada saber mais sobre ele por meio dela e eu nem preciso falar a verdade. É só para saber o que está me aguardando. – Esse homem é sempre assim? Sabe, com temperamento curto após um deslize.

— Na maioria do tempo, mas com algumas pessoas, como Leia, ele geralmente é mais inofensivo que uma criança de quatro anos.

— Então ele é? – tento instigá-la a me dizer mais, mas sou péssima nisso.

— Diria que sim. Mas não se preocupe, como disse, Leia me salvou.

— Fico feliz por você. Qualquer coisa me procure. 

— Muito obrigado mesmo. – Sella me abraça forte. – Se precisar de qualquer coisa, me procure sem pensar duas vezes. Conte comigo para tudo. Você é a minha nova pessoa favorita daqui.

— De nada. – nunca sei exatamente o que dizer nesses momentos. 

— Tchau, querida. – todo o seu rosto se ilumina, deixando-a mais magnífica do que já é. Retribuo seu aceno de despedida.

Então quer dizer que ele possui o mesmo temperamento volátil do jogo e ao mesmo tempo é outra pessoa com aqueles que são mais chegados a ele. Bom saber.

Como ele me trataria? Seria da mesma forma que a das nossas conversas? Ou também receberia aquilo de ontem? Será que ele irá agir de uma maneira pior quando descobrir o que fiz? Por que ainda quero saber mais dele? É algum tipo de abstinência das nossas conversas?

Ela esperava mais informações e ganhou mais dúvidas e curiosidades, entenda o caso de Rey.

Caminho até o último dos nove elevadores, esse lugar é gigante e cheio de andares – uns 60. Espero uns bons sete minutos até o elevador chegar para o sentido certo. Esse é o único elevador que passa em todos os andares, por isso ele é bastante restrito para alguns setores; mesmo assim fica lotado.

Encosto no canto do elevador, possuo muito medo dele despencar. Desço, aliviada por ainda estar viva, no meu andar em poucos minutos e sigo para o meio do corredor, onde fica o equipamento para bater ponto. Foi uma tortura até aprender a passar de forma rápida, as vezes chegava atrasada só por causa dessa maquina estúpida.

Vou para a minha mesa depois de vencer, morrendo, a luta contra a máquina. A maioria do meu setor já chegou e a outra metade saiu para o almoço.

— Oi, Rey. – a menina gentil acena para mim do outro lado da enorme sala. Sua mesa é cheia de fios, enfeites e fotos; é a mesa mais humanizada.

— Oi. – respondo-a igualmente empolgada.

Isso é algum tipo de pegadinha? É um universo alternativo? Uma fanfic criada por uma fã de Star Wars? O elevador despencou e eu morri? Isso aqui é o paraíso? Não fui para o inferno depois de roubar várias blusas do meu pai e calças moletons da minha mãe? Se bem que não é roubar, eu só pego emprestado e esqueço de devolver.

— Relatório do que fez ontem. – e o momento de paz e felicidade chegou ao fim.

Não, é a realidade massacrante de trabalhar com Unkar Plutt. Incrível como ele cria uma bolha infernal onde vai. É tipo um buraco negro de infelicidade e tudo que há de ruim na sociedade.

— Tudo bem, só irei ligar o computador e já lhe entrego.

— Já era para ter ligado.

Aperto o botão com cuidado, eu quebrei uma vez devido a um momento igual a esse. A raiva era grande, não consegui evitar descontar no pobre botão. Tive que tirar dinheiro do meu bolso para consertar.

Veja o lado bom da coisa, irei fazer um relatório sobre o que eu fiz. Quase não faço relatórios, até porque passo metade do meu tempo sendo um tipo de faz tudo.  É estranho, porque a maioria aqui odeia, mas fico feliz por fazer um relatório.

A tela fica azul e em seguida preta. Droga, tá travando de novo. Digito os comandos que costumam destravar tudo, mas nada. Esquisito. Continuo tentando cada uma das coisas que aprendi para sair da tela azul. Por fim, faço a coisa mais amadora do mundo, desligo e ligo o computador na CPU. Papai Chewie me agrediria se visse este amadorismo, seria deserdada.

Tento de todas as formas possíveis que sei e só uma segue adiante do iniciar. O ruim é que necessito das senhas de comando e só duas pessoas as têm, o anjo e o demônio. Com certeza vou pedir a ela, odeio ter que falar com aquele outro ser horrendo que vaga pela terra.

Como se invocado, e isso só aumenta minha tese de que ele seja um demônio, Unkar Plutt surge perto de mim. Seu odor de perfume barato e óleo velho denuncia sua chegada. Odeio tudo nesse homem.

— Aconteceu algo insignificante para você estar a quase meia hora encarando esta tela ao invés de fazer o relatório? – sua voz asquerosa soa perto do meu rosto, seu hálito de cebola com alho me causa enjoo.

— O computador não liga. – respondo-o prendendo mil xingamentos na garganta.

— Sai. – ele empurra minha cadeira para o lado e digita praticamente esmagando meu teclado. Engraçado que se quebrar, quem tem que repor com o próprio dinheiro sou eu. – Vou trabalhar hoje aqui, a estagiária fez merda.

— Eu posso resolver, só preciso dos comandos e das senhas.

— Como se uma mulher conseguisse fazer isso. – os xingamentos que engulo descem queimando a minha garganta. Sua mão balança em direção a garota gentil antes de soltar outro ataque. – Vai sentar perto da xing ling, vai.

Criatura asquerosa nojenta do caralho. Fecho minhas mãos em punho e me esforço em não socar a cara imunda dele. Odeio quando usam essas palavras racista com mamãe, com a garota gentil não seria diferente. Ela é a melhor pessoa nesse setor infernal e não merece passar por esse tipo de humilhação.

— Rey! – sua voz alegre me chama pacientemente.

— Não ouviu a asiáticazinha? Sai.

Mordo meus lábios e levanto. Pego minha bolsa e me seguro nela para não pular em cima desta criatura.

— Rose, de as papeladas do relatório para ela fazer de forma manuscrita. Vamos ver se ela consegue fazer o mínimo. – no fundo sabia que o que fiz ontem, o ato de respondê-lo, geraria problemas e ainda consegui temperar com a cagada do computador.

— Sim, senhor. – a garota gentil responde calmamente.

— Senta lá até que eu resolva sua merda, sarnenta. – seu dedo roliço aponta para uma mesinha ao lado da supervisora gentil.

Sarda! Sarda! São sardas no rosto! E isso não me torna uma sarnenta suja, como ele ama dizer que sou. Ontem o dia foi até calmo em relação aos demais, que são um show de horrores como hoje.

O curto caminho até sua mesa me dá mais olhares piedosos do que quando ele me utiliza como escrava. É como sair de um encontro com o próprio demônio e ir para as mãos de Jesus. É assim que me sinto ao chegar perto da garota gentil, que agora possui um nome.

— Rose? – ela concorda com a cabeça. – Nome bonito.

Seus olhos brilham quando ela sorri, para dizer a verdade, todo o seu rosto se ilumina com o seu sorriso. Rose é um amorzinho e tem uma energia tão boa que afasta, por segundos, toda a energia podre deste setor. Todo dia chega com um sorriso radiante e contagiante, possui um humor sagaz e não repete a mesma roupa por três dias seguidos como eu. Suas roupas são adoráveis, fiquei apaixonada na blusa do Poderoso Chefão que ela usou uma vez.

— O seu também, o completo e o Rey.

Ah, os meus pais, como explicar eles?

Padrinho juntou algumas letras do nome dos irmãos de coração para formar o nome do filho dele, ao qual eu nunca descobri porque eles nunca falaram o nome dele esses anos todo. Parece que ele e o filho brigaram e dizer o nome dele machuca o meu padrinho, por isso ele só se refere ao filho pelo apelido carinhoso de “Garoto”, a versão feminina do meu apelido “Garota”. Meu padrinho é tão criativo para algumas coisas, mas para outras... Só o criador na causa.

Meus pais acharam legal a forma que Han e a esposa escolheram o nome do filho, então decidiram homenagear o padrinho, por ter nos juntado, e quiseram manter o nome ao qual eu era chamada no orfanato, Rey. Desse modo surgiu Reyhan, um nome que realmente existe e vem de Naboo. Curiosamente existe uma série desse país chamada Yemin, onde o nome da personagem principal é Reyhan.

Ainda possuo dois outros nomes, um escolhido por mamãe e outro por papai. Mas, como vivi quatorze anos sendo chamada de Rey, gosto que me chamem somente de Rey.

— Obrigado, meus pais são criativos.

— Você sabia que existe uma série em que a personagem principal se chama Reyhan?

— Yemin, não?

— Sim, uma das minhas séries prediletas.

— É boa? Está na minha lista de séries para ver.

— O relatório! – Unkar grita do outro lado.

— Aqui. – pego os papéis que ela estende. Rose é a que mais lida com Plutt no cotidiano, então suas reações são sempre rápidas e bem controladas. E com controladas estou dizendo que sua raiva e a vontade de mandar tomar no cu nem são perceptíveis, eu sei que falho nisso. – E é uma série incrível, mega recomendo.

— Obrigado. – aponta para a mesinha perto dela. – Estou ali, qualquer coisa.

Sua cabeça movimenta-se em confirmação. Rose, que conhece a série com o meu nome; Rose, que possui uma moral e ética perfeita; Rose, que não xinga mesmo tendo inúmeros motivos e razão para xingar; Rose, que não deve xingar Unkar Plutt em outra língua e dizer que estava rezando – é a melhor lembrança que tenho neste trabalho e não me arrependo de ter feito. Agora que sei seu nome, posso tentar uma aproximação amigável. Nossa, mais uma aproximação amigável para a minha lista. Se bem que essa é mais fácil.

Sento na cadeira e deixo a minha bolsa na mesa, tiro o bloquinho da bolsa e pego o caderninho que costumo utilizar na hora de fazer compras. Traço uma linha do tempo até a hora que fui embora e sublinho os principais. Estalo meus dedos e movimento meu pescoço, que o castigo do tinhoso comece.

O computador viria a calhar agora, tinha que ter dando merda justo hoje. Não posso dizer que foi do nada, porque ele é lento e quando algo acontece não percebo exatamente por ele ser lento. Às vezes consigo evitar essas cagadas colossais, fazendo um backup ou resetando ele todo. Mas costumo fazer isso quando lembro das atualizações de software, o ruim é que eu quase não lembro e não atualizo há cinco meses.

Pelo menos Unkar terá que fazer todo o trabalho por mim, até que não é um castigo tão ruim assim. Eu poderia me preocupar com o fato de não ter desinstalado os aplicativos e o jogo. Só que estou ficando igual a Rose, respostas rápidas e assertivas. Direi que precisei instalar para desbloquear o celular. Curta e direta.

Termino a parte da manhã em uma folha só. Ótimo, agora só falta escrever as outras sete horas. Creio que irei necessitar de mais uma folha. Vou até a mesa de Rose e por precaução pego mais duas folhas. Meu otimismo caiu um pouco, mas ainda persiste contra a chuva; mesmo quando suspeito que isso seja algum tipo de castigo kármico para o que eu fiz com o Supremo Líder. Talvez quebrar a sua confiança virtual tenha sido um crime enorme para o ser divino responsável pelos jogos.

Dou uma resumida entre os acontecimentos que não são importantes, revisões e cálculos, e só cito o nome e o que era as pastas que revisei; tudo em duas linhas cada. Balanço minha mão depois da dor latente em meus dedos.

Escrever o incidente do celular é como pôr a mão em uma roseira; às vezes toco pétalas, mas na maioria do tempo espeto meu dedo em um espinho afiado.

Ocultar os acontecimentos tóxicos de ontem, como ter a atenção chamada por não pronunciar uma palavra como todos desse país, um nome de um objeto que mal tenho contato; que deveria voltar para o meu país subdesenvolvido, parar de roubar o emprego das pessoas deste país, que não sei absolutamente nada visto que vim de um país pobre que não possui estrutura educacional para criar profissionais de verdade e que isso é surpreendente visto que sou filha de uma asiática. Unkar realçou que sou um espécime raro, porque sou a primeira filha burra de uma asiática que ele já viu e que isso deve ter origem no fato de ser adotada e não uma asiática de verdade como minha mãe; segundo ele, a inteligência dela não conseguiu passar por osmose para mim. Eu só errei a pronúncia de uma palavra.

É bem difícil alguns dias aqui, por isso questiono-me se é realmente isso que quero fazer para viver. Creio que sim na maioria do tempo, na outra sinto uma insegurança absurdamente grande sobre o meu futuro – porque sei que irei lidar frequentemente com homens assim. Tento combater esse tipo de pensamento ao me convencer de que fui contratada por algum motivo, tirando a recomendação de Han é claro, alguém viu algo em mim. Sou destinada a algo grande e logo todos irão me ver como uma profissional e não como a estagiária faz tudo. Isso é o que me motivou a vir trabalhar, a esperança do reconhecimento e dignidade básica.

Em dias como ontem tudo que mais quero é acabar com tudo e ir embora para os braços dos meus pais, algo que me assusta muito. Eu cresci contanto só comigo, em momentos horrendos, como os ofendimentos gratuitos de ontem e de hoje, recorria para uma válvula de escape, como os livros de cursos e depois Star Wars. Quando digo que a minha vida mudou drasticamente para melhor, estou dizendo que substitui os livros de cursos pelos braços amorosos e acolhedores dos meus pais. Diria que Star Wars também foi substituído por uma pessoa ao decorrer dos anos, que só venho passando bastante tempo no jogo por ser um meio de chegar nele. É apavorante para mim que pessoas tenham virado o meu porto seguro. Dá ultima vez que pessoas foram o meu porto seguro, eles me abandonaram quando eu tinha seis anos e agora sou uma adulta cheia de cicatrizes oriundas do ato deles.

Engulo a tristeza e encaro meu trabalho de frente, sou uma guerreira imparável. Reviso umas cinco vezes antes de decidir que está tudo perfeito e sem um único erro. Três folhas e uma hora e meia depois de começar meu castigo, finalmente termino de escrever. Minha cabeça me incomoda, minhas costas doem, meus dedos estão com calos, não suporto escrever a palavra “Revisão” e estou disposta a empurrar aquele asqueroso no poço do elevador.

Alongo meu corpo antes de levantar. Meus passos até a minha mesa são lentos e dolorosos, só não dói mais que a ferida pulsante e feia que é ver esse filhote das trevas sujando toda a minha mesa e teclado. Amanhã terei que passar água benta junto a álcool 70 em tudo para me livrar de sua energia infernal e seus germes imundos e nefastos.

Deixo a papelada na minha mesa e fico parada tamborilando impacientemente a caneta no meu braço. Unkar adora que os seus subordinados fiquem parados, em pé, até ele se dignar a responder e averiguar o trabalho.

Espero pelo feedback de Plutt repassando novamente o mesmo texto cansativo e inseguro sobre a minha vida profissional ser horrenda, exaustiva, que sou uma fraude e que às vezes não consigo me ver fazendo isso por mais um ano. Também repasso meu texto motivacional, adoro ver a luz no meio das trevas.

Não posso fazer nada além de esperar o grande babacão ordenar, visto que não possuo um trabalho fixo ou computador. No mínimo, meu trabalho hoje é revisar o português e cálculos dos outros integrantes do escritório. Ala o mesmo texto chato que me atormenta. Queria poder fugir desses pensamentos, só que para isso teria que entrar no jogo e conversar com Supremo Líder e estou evitando isso.

Quando meu relatório vira o foco de sua atenção, vez ou outra ele bufa impaciente. Engraçado como homicídio é crime. A vontade de pular em cima dele e deitar ele no soco é grande, mas a vontade de trabalhar e honrar os meus pais e Han é maior. Eu suporto mais um segundo, conseguirei suportar por mais tempo.

— O homem possui nome. – ele joga meu relatório de três páginas e meia na mesa.

— Sim.

— Isso não foi uma pergunta, foi uma afirmação. Coloque o nome dele na papelada.

— Mas eu fiz em nome de Korr Sella e da senhora Organa. 

— O nome.

— Ok, irei pedir para a secretária da presidente.

— Tanto faz a quem você tenha que pedir. Só refaça tudo com o nome dele. – filho da puta, mordo meus lábios para prender os xingamentos. – Rose, dê mais papéis a ela. A estagiária fez merda de novo, para a sorte do setor foi no papel e não em outro computador.

Não há necessidade disto, não há o porquê de tanto escândalo e foco no meu computador. Mas ele é uma criatura nefasta oriunda do cerne do mal. Está fazendo isso de propósito, para me humilhar e se vingar.

Pego a papelada e aperto forte para não socar ele. Cada passo que dou, imagino um chute na sua região inferior. Não quero gastar o meu réu primário com ele, não de maneira tão rápida, fácil e indolor.

— Aqui. – o sorriso de Rose quando chego na mesa é tranquilizante. Custava ela ser a minha chefe? Tinha que ser o tinhoso? – Ei, vai dar tudo certo, tá? Se quiser, eu te libero para ir até a cobertura para perguntar o nome e comer um lanche da máquina. Aí quando você voltar, mais calma e relaxada, você refaz o relatório.

— Muito obrigado mesmo, você é um anjo.

— Que isso, só estou aqui para ajudar. – no céu existe um lugar só para ela e os anjos cantarão com a sua chegada. Se bobear ela vira santa. – Leva esse relatório já feito, para eles verem que você realmente fez e deixa esses papéis – Rose balança os papéis que ela tinha estendido e eu ainda não tinha pegado. – aqui comigo, onde eles não podem amassar.

— O céu tem um lugar especial só para você. – por medo de repetir algo ruim que já vivi, me repreendo por dizer isso. Esperava a mesma reação ruim e grossa que tive quando brinquei com uma garota da escola, mas ela não vem. Rose só ri cheia de vida e bondade.

— Te dou um convite e você vai poder entrar nessa área comigo. – é, eu quero ser amiga dela. – Vou te dar cobertura, Rey.

Saio para o corredor esmagando o papel em minhas mãos e um sorriso bobo em meu rosto. Ainda estou furiosa com aquele pequeno pedaço de merda ambulante, mas Rose deixou o clima mais leve. Só que não elimina meu ódio todo e o pedaço que fica, está em uma constante criação de perguntas que nunca saberei as respostas.

Como que ele deita a noite? Como ele dorme? Como ele come se a boca dele passa todo tempo bostejando? Como ele esconde os cascos dele? Como ele se sente humano ao se olhar para o espelho? Como ele descansa depois de torturar as pessoas por diversão? Como ele consegue dormir tendo o ódio de todos deste setor? Ele raspa e lustra os chifres dele todo dia? A família possui o antídoto do veneno dele em casa? Como ele saiu do inferno?

Unkar Plutt inferniza todos sem piedade e desde que cheguei, creio eu, virei seu passatempo favorito. São coisas mínimas que levam para humilhações públicas. Até pensei em fazer uma denúncia contra ele no RH, mas duas coisas me desmotivaram.

A primeira coisa foi que fiquei amiga de Connie e percebi que há bastante relatos e alguns casos que ela estava resolvendo eram de meses antes. O segundo fator foi que ninguém fazia nada e alguns estavam ali há anos, todos ficam calados quando ele dá seu show de horror. Eu mesma já fiquei calada e engoli sapos. É como viver um relacionamento abusivo com o trabalho e não tem como sair ou se libertar.

Conto até dez mais de vinte vezes, só paro quando o elevador chega. Preferiria ficar contando até dez do que ter que pedir um favor a Korr Sella, não tem nem três horas que ela falou que eu podia contar com ela.

O que eu digo? Como irei perguntar sobre o nome do Supremo Líder? Ele se import...

Perguntar...

        O nome... 

              Do Supremo Líder...

Oh, meu Deus do céu iluminado. Ah meu Deus! A ficha caiu! Saberei o nome dele assim que a porta deste elevador abrir! Estou esperneando internamente.

Agora mesmo preciso saber o que dizer, caso ele pergunte depois sobre como descobri seu nome. Outra ficha despenca ao meu lado, eu ainda quero conhecê-lo e lhe explicar tudo que aconteceu.

Eu passei praticamente o dia todo com medo de como ele reagiria quando eu contasse sobre o que fiz. Em momento algum pensei em outra coisa além de: Me encontrar com ele pessoalmente.

A verdade é que eu quero tanto ser próxima dele fora do jogo, quero conversar diariamente com ele por telefone ou pessoalmente; quero ouvir sua voz e sua risada e não imaginá-las, quero olhar em seus olhos enquanto desmorono ao contar um segredo que me machuca e quero ver a compreensão, que suas palavras expressam, em seus olhos. Eu só o quero ainda mais na minha vida e rotina. E o fato dele não estar presente neste dia e possivelmente no futuro me assusta e me deixa insegura, o que me deixa cega para as coisas que estão bem óbvias na minha frente.

Sou empurrada para a parede de ferro no trigésimo sexto andar; cruzes, estou parada aqui há um bom tempo e a porta fechou e o elevador já desceu e agora está subindo de novo. Tenho que parar de pensar nele e focar no que dizer para Korr. Sair do mundo da lua.

Olá. Meu nome é Rey.

 Não, ela já sabe disso. E também que não sou mais estagiária.

Oi.

Um bom começo. Mas curto e nada direto, nem dá para entender.

Satã decidiu sair do inferno e trabalhar para esta empresa e agora ele quer que eu escreva o nome do Supremo Líder em um relatório, ao qual estarei fazendo pela segunda vez. Você poderia dizer o nome daquela muralha humana que estava aqui ontem e duvidou da minha pessoa?

É uma boa opção para se fazer. Mas me renderia uma demissão por justa causa. Han até pode ficar feliz pelo meu ato de se rebelar contra esse sistema opressor, em contrapartida, sua imagem ficaria suja, uma vez que ele teria recomendado uma pessoa instável.

A porta do elevador abre-se e pela primeira vez, não consigo admirar a paisagem devido ao nervosismo. Dou um tchauzinho com a mão para as gêmeas da recepção, que retribuem sorrindo. Um segredo que só o Supremo Líder sabe: Eu não sei diferenciar elas, só pela cor da roupa. Parando para pensar, as gêmeas que ele disse conhecer e também não sabe diferenciar devem ser elas. Esse mundo é imprevisível.

Caminho para a sala de espera da presidência pensando no que irei falar.

Oi, desculpe o incomodo. Mas eu preciso saber o nome do homem que estava aqui ontem para por no meu relatório. É uma exigência do meu chefe. Se você quiser, pode olhar esse relatório que fiz e descartei.

Perfeito. Direto e curto. Por via das dúvidas, farei a sonsa e fingirei que não conheço o gigante de ontem e que estou sendo obrigada a refazer tudo. Deixarei tudo restrito ao trabalho.

Paro na frente de sua mesa com o coração a mil. É agora ou nunca. Um grande passo na minha vida.

— Oi. – aceno acanhada para ela novamente.

— Olá, Rey. Posso ajudá-la em algo? – hoje seu tom de voz está caloroso, ou quem sabe sempre foi assim e eu só percebi hoje porque conversamos mais do que conversamos em todo esse tempo que trabalho aqui.

— Oi. – esqueci o que ia dizer. – O meu supervisor está pegando no meu pé por causa de ontem, mas eu já consegui resolver metade do problema, só que ele cismou com o nome do homem e eu preciso botar no relatório.

— Você está brincando, certo? – Korr pergunta risonha. Nego com a cabeça e mostro o papel para ela. – Que cuzão!

— É, ele é.

— Deixa eu ver o relatório. – passo para ela a papelada, que lê atentamente cada linha. Esqueci de dizer que era um rascunho. O suco em sua testa volta e meia aparece e desaparece, mesmo assim ela continua belíssima. – Completamente desnecessário tudo isso. Mas, já que ele quer tanto. O homem se chama Kylo Ren.

Com o coração a mil, tamborilando uma sinfonia ansiosa, e minha barriga abdicando de cada calor possível, contorcendo-se como uma árvore em uma tempestade; o nome dele reverbera por mim, me afetando mais do que gostaria.

É empolgante finalmente descobrir o nome dele, que é mil vezes melhor do que Supremo Líder.

Kylo Ren. Nome diferente.

Kylo Ren. Até que é um nome marcante.

Kylo Ren. Soa bom.

Kylo Ren. Melhor do que o seu nickname.

Kylo Ren. Parece meio psicopata.

Kylo Ren. De onde será que esse nome surgiu?

Kylo Ren. Por que será que os pais dele escolheram esse nome?

Kylo Ren. Nome chamativo, que nem o homem que o possui.

Kylo Ren. Nome bonito para um homem bonito.

— Tudo bem para você?

— Tudo. – respondo por instinto. Droga! Me distraí.

— Tá bom, já volto. – arregalo os olhos quando ela levanta e entra na sala da CEO. O que exatamente eu concordei?

Necessito urgentemente parar de me perder em meus pensamentos enquanto estou resolvendo problemas. Além de ter que aguentar os olhares críticos quando peço para repetirem, ainda há a impaciência na voz. 

A porta demora até abrir novamente, chutaria de cinco a dez minutos. Ponho um sorriso no rosto para não ficar evidente o meu nervosismo e parecer uma pessoa normal, que não chama o chefe de projeto descartado de diabo. Para a minha completa surpresa, quem sai não é Korr Sella. Bem, pelo menos não só ela. É ele! Supremo Líder. Ah, agora sei seu nome verdadeiro, Kylo Ren. Creio que deveria parar de chamá-lo pelo seu nickname e passar a utilizar seu nome quando me referir a ele. Kylo fala algo com Korr Sella e a senhora Organa. Mas estou tão absorta nele, que mal ouço suas vozes.

É como aqueles sonhos que tinha em que eu o conhecia pessoalmente; aqueles de que quando eu dizia a ele nas conversas, tudo que ele fazia era rir e dizer que não possuía tatuagem ou moicano. Não, os homens dos meus sonhos não chegam perto da sua fisionomia marcante.

Kylo Ren é impressionantemente alto, aparentemente bato na altura do seu peitoral e o topo da minha cabeça raspa na base do seu ombro. Seus cabelos são tão escuros, que se iguala às sombras, e longos, chegando no meio do pescoço. Seu rosto possui uns pontinhos pretos, não sei ele tem sardas como eu ou se são pintas, não consigo diferenciar desta distância e desta altura. Seus lábios são carnudos e um pouco rosados. Ele não possui barba, algo que ele já havia comentado comigo, mas há um leve rastro de barba crescendo. Seu queixo é marcado e seu rosto longo, é uma bela combinação. Seu nariz é pontiagudo e grande, estranhamente é harmonioso com seu rosto em geral. Mal consigo ver a cor dos seus olhos, mas creio que sejam castanhos.

— Tudo bem, só toma cuidado para não esquecer em outros lugares. – o jeito zeloso que ele se dirige a Leia nesse instante, é o mesmo jeito que ele me trata no jogo.

Não posso evitar de perceber a sua afeição com a senhora Organa. Há tanto carinho em seu olhar e no seu tom de voz. Bem diferente do homem de ontem e ao mesmo tempo parecido com o Supremo Líder que conheço. É dois homens em um.

Seu olhar recai em mim somente uma vez. Minhas cordas vocais abdicam de seu trabalho e não consigo ter coragem de falar para ele quem eu sou e o que fiz. Fico agindo que nem uma criança assustada, ou seja, só o vejo partir e supro a vontade de acenar em despedida para ele. Ainda não é a hora para isso, eu mal contei as coisas a ele. Se me despedisse assim, poderia assustá-lo e parecer uma doida.

— Leia, Rey; Rey, Leia. – Korr nos introduz como se fossemos suas amigas que se encontram pela primeira vez.

Foque no presente momento, não no futuro incerto.

— Olá Rey. – sua voz é tão calma e suave. Ela poderia me mandar refazer o relatório e eu iria ficar zen devido o seu tom de voz.

— Oi. – para ela eu aceno e saiu um tipo de chiado como cumprimento.

— Korr me informou sobre o seu relatório e, assim como você, tratei de resolver pessoalmente com um empenho incrível. – a ardência que surge nas minhas bochechas denunciam, pelo menos para mim, que devo estar corada. – Eu liguei para o seu supervisor e lhe disse que por se tratar de algo íntimo e não do trabalho, você não necessita pôr o nome no relatório. Nem refazer o relatório.

— Obrigado. – curvo metade do meu corpo para ela. Ainda bem que não menti.

— Eu que agradeço, você fez um trabalho incrível. – grito internamente quando sua mão suave de biliões toca a minha mão magricela cheia de calos de tanto escrever hoje. – Korr irá escanear e enviar o relatório para o seu supervisor.

— Obrigado novamente.

— Han tinha razão, você é uma garota bem educada e inteligente. – fico sem ter o que dizer. Engulo o choro junto com a vontade de desistir de tudo que ando sentindo.

Padrinho acredita em mim, ele sempre viu algo em mim e por isso conversou com ela. Não posso sair daqui sabendo que Han disse isso para a criadora da empresa e do conglomerado. Seria tão ingrato e pode manchar sua imagem. Padrinho literalmente me tirou do nada e acredita em mim de uma forma que eu mesma não acredito. Guardo isso para outra hora, não posso chorar copiosamente na frente da minha inspiração.

— Eu fico feliz de poder provar para a senhora o que Han disse. – mordo meu lábio inferior para prender o choro.

— Ele quase não erra. – sua mão solta a minha e leva consigo o calor acolhedor. – Bem, foi um prazer revê-la Rey de Jakku. – meu santo pai amado e louvado, a mulher sabe quem eu sou e de onde vim. – Obrigado por ter consertado o celular do meu menininho.

E agora? Ela chama ele de meu menininho por ele ser filho dela? Ou ela faz que nem Han e chama de menino por ser algo carinhoso e um apelido preguiçoso? Por que quero saber por ele o motivo dela chamá-lo assim? Por que quero saber disso? Por que só foquei nisso?

— O prazer foi meu.

Leia entra em sua sala sorrindo serenamente. Essa mulher não deve se estressar nunca, deve ser zen todo instante. Se ela me explicar um jeito de consertar a minha vida, como me apresentar e dizer a Kylo Ren o que fiz, tenho certeza que entenderei tudo.

Korr sorri para mim de um jeito que não consigo entender ou denominar.

— Quero ver seu chefe ser um idiota agora. – fico com dó de dizer que ela só tacou mais gasolina no circo em chamas.

— Obrigado. – dou dois passos antes de parar e decidir retribuir seu favor. – Posso te dar uma dica?

— Pode sim. - responde Korr Sella, animada. Sinto que serei portadora de notícias boas e ruins.

— Aquele problema do celular surge quando tentam desbloquear ele inúmeras vezes e não consegue.

— Esquisito. Eu realmente não toquei nele até ele começar a vibrar com aquela mensagem.

— Estranho. – nunca vi um caso assim e pela forma que ela diz, convicta e inocentemente, não há margens para duvidar de suas palavras. – Deve ser algum erro do celular então.

Deve ter sido algum vírus que passou para o computador, por isso deve ter dado problemas para mim hoje. Eu odeio aquele homem, mas não tem como negar que Unkar Plutt é muito bom resolvendo problemas como malwares e vírus no computador. Meu computador vai ficar novinho em folha e bonzinho.

— E eu só tive o azar de estar por perto. Agora que sei como esse erro surge, compreendo os olhares zangados dele. – Korr Sella coça a nuca sem graça. – Ren odeia pessoas intrometidas. – ferrou tudo para mim. Literalmente tinha superado meu dilema e resolvido contar tudo a ele. E agora meus temores sobre a minha escolha tornaram-se reais. – Mesmo ele sendo intrometido às vezes. – ou talvez não.

— Talvez, se você explicar, ele a perdoe.

— Duvido muito, Ren leva coisas assim para o coração. – ou talvez sim.

— Ele é rancoroso? – pergunto, movida pela curiosidade.

— É mais complicado do que aparenta ser, então não há uma resposta certa. Diria que ele em si é complicado e denominá-lo disto seria mais complicado ainda. Só Leia mesmo para descomplicar ele, mas é compreensível sabe? – concordo com um movimentar de cabeça, mesmo não sabendo.

— Vou indo. – espero que ela não tenha notado a dor e sofrimento na minha voz. – Obrigado por tudo.

Disfarço e caminho até o elevador entrando em algum tipo de devaneio. Complicado, não é só ele que é, a minha situação também é. Não sei se o fato dele ser “complicado” possa ser ruim para mim, principalmente se levar em conta que ele é intrometido, algo que eu já sabia devido as nossas conversas. Como disse, o medo me cega.

Se Supremo Líder, perdão, Kylo Ren é considerado rancoroso e ao mesmo tempo não é rancoroso, o que o leva a cada extremo? O meu incidente despertaria sua raiva?

Entro no elevador e fico no canto. Pelo que sei, devido às nossas conversas, Kylo Ren realmente é assim; nos jogos e nos segredos que me contam. Mas eu acreditava que ele não seria assim vinte quatro horas por dia.

Eu tenho a concepção de que Kylo Ren é um homem utilizando uma máscara fria e intimidante, ao qual ele ostenta a cada segundo nessa empresa. Porque o homem que vi hoje e ontem, não parece ser o mesmo homem com quem converso. Muito pelo contrário, me lembra mais aquele jogador que enchia a minha paciência e era um personagem. Depois que o conheci mais intimamente, esse personagem morreu para mim e surgiu ele, o meu grande sei lá o que.

Eu conheço intimamente Supremo Líder, mas desconheço Kylo Ren. Só preciso saber qual dos dois reagirá ao que eu fiz; o amoroso, implicante e divertido do jogo ou o ranzinza, com ar de superioridade e o homem que conhece uma mulher extremamente influente e importante como Leia Organa.

Nos meus sonhos lúdicos, conhecê-lo pessoalmente não era tão difícil assim. Era só um “oi” e, bum, as conversas do chat viram algo real com voz e risadas. Geralmente quem passa por esses momentos difíceis, são pessoas normais com relacionamentos normais. Mas Supremo e eu nunca tivemos algo normal, possivelmente porque não somos normais.

Saio do elevador e ando para a minha mesa acompanhada do silêncio, parece até um apocalipse zumbi. Estranho, normalmente se escuta a voz estridente de Unkar Plutt ofendendo ou reclamando dos direitos humanos que as pessoas possuem.

— Oi, Rey.

— Oi, Rose. – por puro costume observo ao redor. Todos estão em silêncio, vidrados na tela do computador. – O que aconteceu? – sussurro desconfiada.

— A senhora Organa ligou e falou algo com Plutt. Ele ficou estressado e deu um show e depois simplesmente se calou do nado e foi para o seu computador.

Vai dar merda para mim, sinto isso no meu âmago. Nunca que Unkar perdoaria o que aconteceu hoje, ele vai revidar e eu não sei quando.

— Eu não sei se isso é bom para mim.

— É bom sim. Ele desconta toda a raiva em ser O Melhor do setor no seu computador e nem vai ligar se você tiver algo no computador. Sabe o porquê? Porque isso o torna menos que o melhor e ele não suporta ser menos que o melhor. – sua mão segura a minha. – Vai ficar tudo bem, não há com que se preocupar.

Rose é a segunda no poder, falam que ela está aqui desde que estava no terceiro período da faculdade e estava fazendo estágio não obrigatório. Se há alguém em que posso confiar no julgamento, é ela.

— Valeu. – encosto nas costas da cadeira e observo minha bolsa em cima da mesa.

Vou ficar caladinha na minha, esperando o meu serviço e o surto raivoso dele.

Trinta minutos se passam e ele não ordena nada.

Uma hora se passa e nada.

Saio para o almoço e volto trinta minutos depois e nada.

Mais uma hora se passa e nada acontece.

Esse trabalho por si só já é ruim, quando não há nada para fazer é pior ainda. Porque tudo que reina é o silêncio desconfortável gerado por um ser insuportável.

Batuco na mesa impaciente. O silêncio e a sensação de algo terrível vindo me pegar, aumenta o meu nervosismo. É como estar em uma floresta escura de noite e a fama do local é de viveiro de cobras venenosas. Que sensação ruim e sufocante.

Irei tirar os aplicativos e deixar o computador do jeito que ele me entregar até o momento em que o seu bote acontecer. Depois volto com a minha rotina de contenção normal. Não sei se consigo suportar trabalhar aqui sem minhas válvulas de escape, certeza que surto em algum momento e xingo Unkar de A à Z em todos os idiomas que existiram, existe e existirão.

Acho que minha inquietação com o perigo iminente está bem gritante. Dado que Rose me dá o trabalho de cortar as margens de folhas de arquivos.

— Ei, tá tudo bem? – depois de outro momento de silêncio, Rose pergunta genuinamente preocupada.

Não, não está nada bem e eu não sei se suporto guarda tudo isso para mim.

— Você passaria por cima de inseguranças e medos para conhecer uma pessoa que você conversa todo dia? – ok, talvez não devesse fazer essa pergunta a ela, mas preciso de uma resposta hoje. Estou decidida em tomar minha decisão sobre Supremo Líder hoje. – Eu... Eu meio que conheço uma pessoa, mas fiz uma cagada enorme e tenho medo dele me rejeitar. Eu não gosto de ser rejeitada. – sussurro a última parte.

Pisco para afastar as lágrimas. Supremo Líder, Kylo Ren, meu nêmesis, seja o que for; ele vai me rejeitar como aqueles casais. Dessa vez a rejeição possui uma explicação, mesmo assim odeio e sinto a mesma dor. Não queria ser rejeitada por alguém que possuo um sentimento enorme por tantos anos.

— Claro que se deve enfrentar medos e inseguranças. – Rose responde após alguns segundos de silêncio. – Qualquer grande passo se sucede depois de um momento de medos e inseguranças. Somos programados a sentir esses dois sentimentos antes de qualquer grande decisão. Sobre o seu erro, só tenho duas perguntas, você reconhece seu erro? – concordo com a cabeça. – Você voltará a repetir tal ato? – nego. – Então acho que você deveria ir em frente e conhecer essa pessoa. Os primeiros passos você já deu, o que a está prendendo agora são medos normais de consequências.

— Meu maior medo é ele me rejeitar sem sequer me ouvir. Isso me sufoca e trava.

— Ai será uma consequência de seus atos, que você deve arcar. No entanto, o que pode ser uma cagada enorme para você, pode não ser o mesmo para ele. Com isso estou dizendo que existe uma chance de 50% dele te perdoar e não te rejeita e vocês serem grandes amigos. Há a grande chance dele não te rejeitar de cara, ninguém rejeita alguém logo de cara.

— Você ficaria assustada com a porcentagem grande de pessoas que rejeitam outras logo de cara. – digo por experiência própria.

— Nessa situação atual, existe uma porcentagem grande?

Kylo Ren eu não sei. Mas Supremo me ouviria e tentaria entender tudo para resolver de forma rápida, fácil e boa. A porcentagem de Kylo eu desconheço. Já a de Supremo seria de 30%,  eu o conheço bem o suficiente para saber que é uma porcentagem baixa.

— Não. – respondo-a meio em dúvida por causa de Kylo, meio afirmativa por causa de Supremo.

— Então ela não existe e é fruto da sua cabeça. – uol, ela é franca e direta. – As vezes criamos monstros e espíritos onde só há roupa. Tenho a leve impressão que você está assim. – ela está certa nesse ponto. – Sabe o que se faz nesses momentos?

— Liga a luz?

— Exato, liga a luz na coragem para descartar que seja espírito e monstros; porque bem lá no fundo sabemos que não é tudo isso e sim medo do escuro. – Rose aproxima o rosto e sussurra sorridente. – Ligue a luz, Rey, eu sei que você é corajosa o suficiente para isso.

— Obrigado. – nossa, sei nem o que dizer. Realmente é um conselho bom. – Muito obrigado mesmo.

— Qualquer coisa, só basta me perguntar. Minha irmã Paige costuma dizer que sou muito boa aconselhando e ajudando outras pessoas.

— Ela está completamente certa.

Voltamos para os momentos anteriores, creio que Rose se cala para que eu possa refletir e pensar sobre o que ela disse. E o silêncio e os movimentos repetitivos de cortas as margens das folhas para por no fichário, realmente me faz pensar que devo parar com inseguranças em relação a Kylo Ren. Em relação ao trabalho a insegurança e medo é até compreensível, basta ver o ambiente tóxico e o terror psicológico que aquele psicopata nos impõe.

Mas até isso mudou. Sei que posso suportar mais, uma hora ficarei que nem Rose e não me machucarei mais; não sei se isso é bom para mim ou mais um nível do meu relacionamento tóxico nesse ambiente. Me agarro na esperança de que um dia tudo isso vai passar e vai ficar tudo bem, por oito anos eu fiz isso e, veja, agora eu tenho uma família. Sei que encontrei e depois fui rejeitada e devolvida de muitas famílias antes de achar a minha, mas, uma hora eu encontrei a minha, não? Aposto que, caso eu conte a ele, Kylo Ren diria que estou sendo ingênua e que estou me enganando para ver o lado bom da coisa, o que possivelmente não existe – às vezes ele é bem realista. Mas sabemos que quando decido algo vou até o final.

Sempre que meus pensamentos se encaminharem para os de ontem, exaustão e inseguranças, me lembrarei do que a senhora Organa disse sobre Han e que as coisas podem mudar neste setor, minha interação com Rose é um suspiro de alívio após tanta pressão.

Padrinho será a minha motivação diária para persistir, seja na minha tentativa de ser amiga de Rose, seja a voz que me impede de socar Unkar Plutt. Provarei a todos, nesse mausoléu, que padrinho nunca erra e quando diz que sou inteligente, é um fato e não um elogio. Serei sol no meio de inúmeros vampiros.

Agora sobre Kylo Ren. Seria magnífico mantê-lo na minha vida, especificamente o homem com quem converso diariamente nos últimos nove anos, indo para dez em poucos meses; isto é um fato. De forma peculiar e inesperada, Kylo Ren é o meu porto seguro.

Eu sei que errei, eu tenho pavor dele me rejeitar como todos e odeio imaginar não conversar com ele. Essa é a minha trindade do prejudicial e é isso que me trava e me lota de insegurança.

Padrinho costuma falar que sempre tento ver o belo em um mundo horrendo e eu via, eu era como Rose, e esse lugar me destruiu e me deixou insegura. E eu continuaria assim se não fossem os últimos dois dias. A possibilidade de finalmente conhecê-lo e o que a senhora Organa me disse sobre Han, me deu o que meu padrinho chama de “Pegar um gás”, um momento em que me fortaleço e vou para a luta.

Não há porque continuar sendo cabeça dura nesses dois tópicos e ficar voltando neles cada vez que me sentir insegura e com medo. Na maioria do tempo é o medo berrando na minha cabeça, me afogando na escuridão, e eu não quero mais ficar na defensiva quando possuo a possibilidade de dar golpes precisos que me levam a vitória. É isso.

— Rose. – chamo ela baixinho. – Rose.

— Oi Rey. – ela responde no mesmo tom.

— Eu posso ir comprar um lanche na máquina? Vai ser rápido.

— Pode sim, e tá tudo bem você demorar um pouco. – seu indicador aponta discretamente para Unkar. – Te dou cobertura.

— Obrigado. – antes de levantar, digo algo que sempre quis dizer a ela. – Você quer almoçar comigo amanhã?

— Eu ia adorar. – Rose diz com um sorriso sincero.

— Tudo bem. Antes de sair te chamo.

Ando para a porta sorrindo boba com essa nova possibilidade de felicidade. Minha vida entrou em um caminho bom e creio que as coisas irão mudar para melhor, sinto isso no meu cerne, e não é a minha impulsividade, que está tinindo desde que conversei com Leia, que está dizendo. Algo em mim sabe que finalmente os meus dias melhores chegaram e eu só terei que envolver os meus braços bem forte nesta nova era feliz.

Eu não sei se é porque estou feliz e decidida, ou o fato de que o elevador está relativamente vazio, se levarmos em consideração que cinco pessoas é o mesmo que nenhuma nesse elevador, e com isso a possibilidade dele cair é pequena e a de subir rapidamente é enorme; mas chego rápido na cobertura e dou de cara com as pessoas que eu mais queria ver.

— Bom dia Rey. – as gêmeas da recepção me cumprimentam em uma sincronia de dar inveja.

— Bom dia meninas. – como não parecer desesperada? – Sabe, eu gostaria muito de saber algo e creio que só vocês podem me ajudar.

— Claro. – dá um calafrio essa sincronia da fala delas. Isso é tão legal e fica melhor com a dicção boa delas.

— Gostaria de saber quando e que horas aquele homem alto vem aqui. Sabem, aquele de cabelo bem preto e muito, muito mesmo, alto.

— Ah, o senhor Ren. – só queria alguém para falar em sincronia, com uma dicção impecável, comigo.

— Sim. – respiro fundo, peguei o gás. – É que eu consertei o celular dele e gostaria de saber... Como que está. – oh a desculpa boa que desenvolvi.

— O feedback da Rey. – a gêmea lilás ri travessa para a gêmea rosa.

— O claro feedback da Rey. – a gêmea rosa faz a mesma coisa.

— O que é isso? – coço a nuca nervosa. 

— Você é sempre zelosa com o seu trabalho. – lilás fala sorridente.

— E com o pós também. – Rosa a completa com a mesma postura e o mesmo tom. É como se tivessem botado um espelho na frente de uma delas e a outra é seu reflexo.

— Mesmo sem necessitar, você vem aqui verificar se está tudo ok com a gente e o computador. – as duas falam ao mesmo tempo. – Um amorzinho.

— Isso é bom? – pergunto evitando sorrir, mas sinto minha boca formar um leve repuxar nos cantos.

— Muito bom.

— Fico feliz então.

— Ficara mais feliz em saber que o senhor Ren costuma vir aqui por volta das onze ou meio dia. – rosa sorri gentilmente para mim.

— Diariamente antes da hora do almoço da senhora Organa. A gente manda uma mensagem, pelo sistema, para você assim que ele chegar. – lilás termina a frase da irmã.

Vai dar tempo de subir e esperar ele descer sozinho, então eu conto tudo a ele. Creio que ele entenderá tudo se eu contar sem gaguejar. Conheço ele há anos, sei que ele irá me perdoar e me entender.

— Muito obrigado mesmo, meninas. – caminho para o elevador a passos curtos e lentos. – Eu não sei o que seria de mim sem o feedback de vocês.

— De nada Rey Rey. – ah, meu criador. Eu tenho um apelido legal!

Aceno para elas sorrindo boba. Eu finalmente estou ganhando respeito e espaço, tem até uma ação que todos ligam a mim e eu ganhei um apelido, um apelido fofo! E não foram os meus familiares que me deram.

O dia passa com mais shows de racismo e machismo. O clima só fica leve graças a ela. Rose tem um dom incrível de deixar o inferno como um dia escaldante em um deserto, o calor não incomoda tanto. E há ele, se não fosse pela sua presença e o que ela significa, hoje estaria que nem ontem – perdendo a esperança e a capacidade de aguentar essas merdas todas. Também me incentivo pensando no padrinho e em como xingar Unkar em outra língua sem ele saber que estou xingando-o de “Porco imundo que deve possuir gozo precoce”, sou praticamente um anjo.

Rose vai até a minha mesa e conversa rapidamente com Unkar. Ela volta com um sorriso estonteante.

— Adivinha?

— Vou ser liberada cedo? – brinco como quem não quer nada.

— Ah, meu criador, sim!

— O que?

— Você acertou, eu conversei com Unkar e como ele não terminou com o seu computador e você não tem nada mais para fazer, falei para te liberar cedo e ele aceitou.

— Por quê? – quando rico dá muita esmola, o pobre desconfia.

— Eu que a liberei. Só o avisei sobre a minha decisão e, como ele está concentrado no conserto do seu computador, Unkar a liberou sem mais ceninhas. Também não teria como ele negar, porque hoje você estava sendo supervisionada por mim e as decisões vinham de mim; a negação dele complicaria as coisas para ele.

— Já falei sobre o seu lugar especial no céu?

— Já. – Rose senta em sua mesa rindo. – E eu já falei que você está convidada para esse lugar especial.

— Obrigado. – são muitas coisas que ela fez hoje, é um obrigado por tudo.

— Estou aqui para ajudar como eu posso. – sua cabeça indica a porta. – Agora vai, se não vai pegar um trânsito horrendo.

Hesito após pegar a minha bolsa e levantar. Rose ainda ficará aqui até depois do expediente, sei disso porque eu fico as vezes.

— Vou ficar aqui até você ir embora. – volto a sentar na cadeira.

— Não precisa, irei ficar preenchendo alguns relatórios de supervisora e só Unkar pode me ajudar e ele não gosta dessa parte. Então fica tudo para mim. – e eu me achava a pessoa mais judiada daqui. Com Rose é a mesma coisa, se não pior.

— Vou ficar para ajudá-la.

— Você não pode, por isso te liberei. Tá tudo bem, pode ir.

— Mas.

— Tchau, Rey. – Rose me interrompe rindo.

— Você me ajudou o dia todo, quero te ajudar.

— Eu sei e eu agradeço, mas, se você me ajudar hoje, eu e você perdemos o emprego amanhã.

— Ninguém saberia.

— Unkar.

— Entendi. – levanto da mesa na mesma hora. Ele vai atacar ela se isso significa me atacar.

— Tchau Rey.

— Tchau Rose. – retribuo seu aceno. – Boa sorte.

— Já possuo imunidade contra esse veneno.

— Me dá um pouco.

— Irei amar compartilhar com você amanhã. – o almoço ainda está de pé!

Prendendo os gritinhos histéricos, rumo para o elevador feliz que ela ainda quer almoçar comigo mesmo depois do alvo enorme nas minhas costas. Rose é uma mulher forte, diria a mais forte desse setor. Irei observá-la mais para poder aprender a como sobreviver a esse setor sem morrer um pouco por dentro.

Meu celular vibra quando já me encontro na passarela. Estranho o fato dele me ligar hoje, é só aos finais de semana que nos falamos.

— Oi fiel, aconteceu algo?

— Você está bem?

— Estou, por quê?

— Sei lá. Você anda meio sumida.

— Eu trabalho diretamente com Satã, né Finn. Aconteceu algo?

— Nada aconteceu, só estava achando você sumida. Dia péssimo de novo?

— Quando não é? Mas até que hoje foi tolerável. Conheci uma garota muito legal, o nome dela é Rose.

— Eu espero, de verdade, que vocês virem amigas.

— Eu também. – fica um silêncio do outro lado da linha.

— Rey, você sabe que pode contar comigo para tudo, certo?

— Certo. – concordo enfática.

— Se aconteceu algo que a deixou triste, é só me dizer.

— Eu sei, priminho. – faz tempo que não o chamo assim.

— Lá vem você com essa droga de priminho. – Finn repete a frase que usou durante toda a adolescência, digamos que, aos dezesseis anos, eu estava ultrapassando ele no quesito altura e jogava este fato na sua cara diariamente.

— Fica calmo, priminho.

— É normal um homem ter essa altura, tá? Eu pesquisei.

— Tá bom. – gargalho alto para ele saber que estou rindo.

— Vou falar para a tia Maz.

— Ela não vai te atender.

— Vai sim, diferente de você, sua mãe é boa e nada preconceituosa com a altura alheia.

— Que criancinha birrenta, ein.

— Por essas e outras que sugeri a tia Maz que te exorcize. Só quero que você saiba disto.

Finn é uma das melhores coisas que me aconteceu. Não esperava ter um primo doido e estressado deste tamaninho. Ele e Jannah, sua irmã mais velha e mais alta que ele, foram meus primeiros amigos e nossa relação evoluiu muito rápido de primos para irmãos implicantes. Sempre serei grata ao tio Lando pelos feriados e férias em que ele deixou que os filhos passassem comigo.

Nossa família é uma grande cola de pessoas abandonadas que se uniram e formaram um megazord doido e disfuncional.

— Sabia que usei este mesmo motivo com o tio Lando? – pondo em prática o plano maligno que surgiu na minha cabeça preciosa, adiciono Jannah na ligação. – Até a Jannah apoiou o seu exorcismo da liberdade virgem.

— Claro, Judas está sempre tentando trair.

— Como é que é Finn? – a voz melodiosa de Jannah soa extremamente ofendida.

— Foi a Rey que começou.

 

»×«

 

Não foi um dia normal e eu amei isso. Amei vê-lo novamente, amei descobrir sobre o que o padrinho disse, amei conversar com Rose, amei que ela aceitou almoçar comigo amanhã, amei ser mais decidida sobre meus atos e amei conversar com Finn e Jannah hoje.

Como o dia foi estranhamente bom, de um jeito menos tóxico, decidi fazer algo que não faço a muito tempo e sinto saudades de fazer. Primeiro iria fazer esgrima, mas durante a minha volta para casa começou a chover forte e, como alaga bastante o bairro que o ginásio se localiza, optei por fazer algo simples em casa; mas com certeza irei treinar essa semana. Como a primeira opção foi barrada pela natureza, decidi fazer outra coisa que não faço há meses, ler um livro.

Nada como ler um bom livro a luz de vela, bebendo um café delicioso e ouvindo o som da chuva mesclado com a minha playlists de músicas no aleatório.

Deixo a vela em cima da mesa de canto perto da janela, a mesa dos meus vasos de plantas e flores. A vela fica perto o suficiente para iluminar a área da janela e distante o bastante para o cheiro não me incomodar e longe o suficiente para não começar um incêndio por meio das minhas preciosas plantas.

A luz da vela dá um ar tranquilo e de vídeo clipe Indie para o meu apartamento. A música sofrida cria uma vibe fim de episódio de uma série romântica, mas que está na parte dramática e sofrida na vida da mocinha.

Boto a caneca fumegante em cima da mesa e sento na poltrona que dá para a janela e observo a chuva e a vida do lado de fora, são raros esses momentos e eu gosto. O silêncio do meu caos, sendo agraciada pelo som da chuva, da música e banhada pelo odor das minhas plantas.

— Extrañarte es mi necesidad. – é impossível não cantar Salvame, até o fio da meada se perde com os primeiros segundos da música. – Vivo en la desesperanza. Desde que tú ya no vuelves más.

Voltando a meada. Mamãe pode estar certa e realmente pode ser bom me desligar e ficar longe do jogo e focar em outras coisas, como fazer amigos fora do jogo. Se bem que um desses amigos é do jogo.

Aposto que a esta hora Kylo Ren deve estar criando mil teorias sobre o meu sumiço e cogitando que surgirei em algum ataque surpresa mirabolante contra a equipe dele.

É a primeira vez que algo consegue superar Star Wars, é estranho, porém, gostoso. Não sei se estou descrevendo o momento em que vivo, ou o olho do furacão Ren.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado, até domingo que vem!



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