O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 6
Capítulo 5




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 A princípio, a idéia de voltar para casa aterrorizou Adam. Após tanto tempo longe, o fato de que teria que assumir os negócios de seu falecido pai e confrontar cenários e pessoas ligadas a seu passado o deixava extremamente receoso. A perspectiva de que lembranças sobre a morte de sua família o atingiriam como tapas na cara o deixava simplesmente em pânico. No entanto, não podia se dar ao luxo de fraquejar. Seu pai sempre mantivera a fama de um homem firme e decidido, e ele buscou alguma forma de criar essa mesma imagem sobre si. Encontrou-a assistindo ao filme Kingsman: Serviço Secreto.

A certa altura da história, enquanto o agente secreto interpretado por Colin Firth instruía o jovem aprendiz vivido por Taron Egerton, a frase “O terno é a armadura do cavaleiro moderno” surgiu, e foi ela que inspirou Adam em sua mudança pessoal. Antes adepto de um visual jovial, linguajar descuidado e carros esportivos, decidiu retornar ao Brasil com aparência e postura completamente diferentes, mais amadurecidas e imponentes. Aprendeu a nomear e escolher diferentes tipos de sapatos sociais, ternos e gravatas, vinhos e perfumes caros. Aprendeu a falar de maneira suave, sem alterar o tom de voz para evitar demonstrar o que pensava, e a andar de forma mais ereta e elegante. Construiu sobre si a melhor aparência de executivo implacável que lhe foi possível. Iria enfrentar o futuro — ainda que incerto — como um cavaleiro moderno.

E então, quando ele já se sentia seguro o suficiente para encarar o que estivesse por vir, Fernanda surgira. Como um presente enviado pelos Céus, ela havia aparecido mais uma vez na vida dele. Após voltar para sua antiga casa, rever os cômodos lotados de lembranças envolvendo seus pais e seu irmão e manobrar o antigo carro de seu avô para fora da garagem, topar com Fernanda ali, parada na calçada a observá-lo, havia sido um refrigério enorme. Sem saber ao certo o que sentir ou o que expressar, ele havia se aproximado dela e puxado assunto, e, para sua total surpresa, ela havia correspondido.

E então, houve o convite para o jantar. Havia sido um impulso, ele admitia para si mesmo, mas que o ajudara de uma forma que nem mesmo meses de consulta com os melhores terapeutas do mundo teria sido capaz. Desde a notícia da morte de seu pai, o sentimento de solidão que o afligia era torturante, e nem toda a preparação pela qual ele passara havia diminuído aquele sentimento cruel. Todavia, Fernanda surgira como um bálsamo para aliviá-lo.

Por fim, durante o jantar, ele havia percebido que não apenas ele, mas ela também nutria algum sentimento a respeito deles. Ao dizer que havia sentido falta dela, naquela tarde de domingo, ele havia sido sincero. E pelo que ele pôde perceber durante aquela noite, ela também. Ainda havia muita água para rolar por baixo desta ponte. Mesmo após tanto tempo afastados um do outro, ainda havia química entre eles. E ele esperava, até mesmo com uma certa ansiedade, que essa química se tornasse física após tanto tempo.

Foi pensando nisso que Adam seguiu para a Transportes Peixoto naquela terça-feira. Parou seu Fiat Toro na vaga que outrora havia pertencido a seu pai, na parte extrema do estacionamento, e desceu, seguindo para sua sala no segundo andar. A meio caminho foi interpelado pela recepcionista, que lhe informou que os acionistas haviam solicitado uma reunião para o primeiro horário para discutir a construção de uma nova filial.

Deixando apenas sua pasta em sua sala e pegando seu notebook, Adam seguiu para a sala de reuniões. Ele sentia que aquela reunião em específico seria bastante tensa. Todos os demais acionistas eram homens mais velhos, na casa dos cinquenta anos para cima, que haviam criado certa expectativa de assumir a empresa com a morte de Antônio Peixoto, o que fazia com que o retorno de Adam fosse uma surpresa desagradável para eles.

O gerente chegou e abriu a porta, notando que todos os acionistas e os dois supervisores da filial já se encontravam lá.

— Bom dia. — Adam cumprimentou, adiantando-se e assumindo seu lugar na ponta da mesa.

Ele foi respondido com um “bom dia” frio pelos demais, que ostentavam um ar severo. Sem se deixar intimidar, ele abriu seu notebook e adiantou o assunto.

— Senhores, eu gostaria que esta reunião fosse extremamente objetiva. Ainda tenho que me encontrar com os gestores de alguns setores operacionais antes do almoço.

Os homens concordaram e se puseram a debater os assuntos propostos. Carlos, gerente da filial de Juiz de Fora, era um dos que mais se pronunciava.

— Como você sabe, Adam, Juiz de Fora não está conseguindo atender a todos os prazos de entrega da região sul do estado. Por isso, havíamos levantado a idéia da construção de uma nova filial na cidade de Poços de Caldas para atender todo o sudoeste de Minas Gerais. — Ele estendeu uma porção de papéis para Adam — Já mandamos uma equipe do setor de planejamento para avaliar a cidade, e há um terreno interessante entrando no mercado. Se você gostar, podemos financiá-lo.

Adam pegou os papéis e estudou-os por um momento. Era um terreno de quinze mil metros quadrados num bairro nobre, com fácil acesso às principais rodovias que cortavam a cidade.

— Quanto vai custar? — Ele perguntou.

— Já fizemos os cálculos. Terraplanado e preparado para receber um prédio de cinco mil metros quadrados e um pátio asfaltado, sairia em torno de cinco milhões de reais.

Adam assobiou baixinho.

— O valor me assusta. — Ele levantou os olhos — Vocês querem financiar todo esse valor?

— É um investimento necessário, Adam, e você sabe disso. — O gerente da filial de Montes Claros emendou — No mundo empresarial, é assim que se joga.

Adam fez que não com o dedo indicador.

— Não necessariamente. Neste caso, estamos tratando um negócio imobiliário. E no mundo imobiliário, o negócio é tomar emprestado. A maioria das construtoras de hoje quase não usam seu próprio dinheiro para construir. Podemos usar este raciocínio aqui também.

— Estamos ouvindo. — Carlos resmungou.

— Temos um armazém ocioso na região de Curvelo. — Adam consultou uma planilha em seu notebook — Minha idéia é alugá-lo ou revendê-lo por um valor suficiente para pagar pelo terreno e cobrir uma parte dos custos da construção do novo prédio. É como uma pirâmide invertida, que pode ser desenvolvida com um investimento inicial mínimo.

Os acionistas se empertigaram. Não esperavam que Adam fosse tão... perspicaz. Pelo menos não assim, de cara.

— Simples assim? — Um deles perguntou.

— Não. Precisamos tomar cuidado, é claro. Se alguma coisa sair errada e o valor que conseguirmos pela propriedade de Curvelo não cobrir a compra do terreno novo, teremos que aumentar o valor financiado. E se a demanda da nova filial não gerar lucro suficiente para cobrir o financiamento, teremos que dar alguma outra propriedade como garantia.

Carlos esboçou uma resposta, mas permaneceu calado. Os demais homens se entreolharam. Folheando os papéis em sua mão mais uma vez, Adam rubricou um deles e devolveu-os ao gerente de Juiz de Fora.

— Quero simulações de financiamento em dois bancos diferentes dando o valor obtido pela venda do terreno de Curvelo como entrada até a semana que vem. — Ele ajeitou a gravata e levantou os olhos novamente — Mais alguma coisa?

Os acionistas permaneceram calados por um momento, mas logo começaram a revirar seus documentos.

— Eu queria falar sobre nossa frota de linehauls, Adam. — Rogério, um dos supervisores, puxou assunto. Linehauls eram os carros que faziam rotas regulares entre as maiores filiais do estado.

— Ok. — Adam assentiu.

— A idade da nossa frota atual já é de quase dez anos, e precisamos começar a pensar em veículos novos.

— Com qual modelo rodamos hoje? — O gerente perguntou.

— Atualmente usamos o Axor, da Mercedes-Benz. Pensamos em trocá-lo pelo modelo novo.

Adam cruzou os braços sobre a mesa e segurou o queixo com dois dedos, num gesto pensativo.

— Os caminhões da Scania e da Volvo têm fama de rodarem mais antes de precisar de manutenção. Algum modelo dessas marcas foi cotado?

— Não. — Rogério respondeu depressa.

O gerente franziu a testa e digitou algo em seu notebook.

— Quem é o atual gestor da nossa frota?

— O Bruno. Aquele rapaz que trabalha lá no fundo do armazém.

— Certo. — Adam consultou seu notebook novamente — Quero que ele levante os dados do Scania R420 e do Volvo FH12 e os compare com o do Axor 1933. Conversaremos sobre o que nos oferecer um melhor custo-benefício a longo prazo. Peça a ele que me mande um e-mail quando conseguir essas informações. — Ele olhou para todos novamente — Mais alguma coisa?

Os demais o encaravam sem dizer palavra. A facilidade com que Adam despachava assuntos relativamente complicados era embasbacante e lembrava muito a forma com que seu pai geria a empresa. E ele sabia que isso contribuiria apenas para que o corpo acionista da empresa criasse ainda mais antipatia por ele.

Como ninguém se manifestou, Adam fechou o notebook e se levantou.

— Senhores, se não formos tratar mais nenhum assunto, eu peço licença. Ainda preciso organizar meu dia.

Colocando o notebook debaixo do braço, o gerente retornou para sua sala. Sentou-se à mesa, abriu o computador novamente e começou a ler seus e-mails. Enquanto isso, ligou o aparelho de televisão que havia em sua sala e sintonizou no noticiário local. Teria passado a manhã inteira sem prestar atenção em uma notícia sequer, se o nome Geraldo Lacerda não tivesse chamado sua atenção. Largando o notebook de lado, Adam percebeu que estavam noticiando a morte e o funeral do delegado mais uma vez.

A televisão exibia o cortejo fúnebre do delegado e um repórter falava sobre sua “honrosa” carreira militar.

— O delegado Lacerda tinha planos de se candidatar a vereador nas próximas eleições e já tinha grande aceitação por parte dos moradores da região do Eldorado. — O repórter estava dizendo — No entanto, seus planos foram tristemente interrompidos por esta tragédia.

O olhar que Adam direcionava para o aparelho era frio como o de uma víbora. Em sua mente, a voz do delegado ecoava num tom vazio:

Não temos provas suficientes para acreditar que tal ato tenha sido proposital. Sendo assim, os jovens serão sentenciados à prestação de serviços sociais.”

Aqueles vermes haviam matado seu irmão sem motivo algum. Alan e ele haviam sido vítimas de um ódio gratuito e sem sentido, e seus opressores haviam sido inocentados por aquele homem que agora jazia dentro de um caixão coberto pela bandeira do estado de Minas Gerais.

E apesar de ter lutado consigo mesmo todos aqueles anos para esquecer o que havia acontecido, ele não conseguiu evitar a satisfação rancorosa que o invadiu naquele momento.

 

o—o—o

 

A mais de 20 quilômetros da transportadora, Arthur estava frustrado. Após insistir por quase um mês, havia conseguido com que Júlia finalmente aceitasse ficar com ele. E pelas duas semanas seguintes, tudo havia corrido aparentemente bem. Agora, no entanto, ela havia terminado com ele sem um motivo plausível.

Ele não se importava de verdade com isso. O que realmente o incomodava era que Júlia pagava um boquete como poucas. Não que isso fosse o fim do mundo. Na universidade em que estudava, era fácil conseguir bons boquetes. Mas o que Júlia pagava era fantástico. Ela manuseava o membro dele com tanta expertise que o deixava com as pernas bambas.

Foi a frustração por essa “perda” que levou Arthur a parar o velho Fusca marrom de seu pai naquele lugar tão ermo para se masturbar. Estava às margens da velha estrada de entrada para o parque estadual da Serra do Rola Moça, pouco antes da fábrica de cimento Precon. Apesar de o sol da tarde ainda clarear bem, o local era tão deserto que ele não precisava se preocupar em ser flagrado naquele momento.

Tomando a precaução de trazer uma flanela consigo para não sujar o estofamento do carro de seu pai, Arthur abaixara a calça e ocupava-se em friccionar seu membro para cima e para baixo, fantasiando a boca de Júlia a chupá-lo. A sensação era incrivelmente prazerosa, e o vento frio que entrava pelas janelas e roçava o pescoço dele lhe proporcionava um êxtase a mais. Estava quase gozando quando um som grave chegou aos seus ouvidos. Um som de motor.

Rapidamente puxando a cueca e a calça para cima e ajeitando-se no banco do motorista, Arthur esperou. Sua frustração naquele momento estava ainda maior. Não podia nem bater uma punheta em paz.

E então, ele viu.

Reluzindo sob a luz do sol como um gigantesco rubi cuidadosamente lapidado, um enorme sedã aproximou-se pela traseira do Fusca lentamente e encostou uns vinte metros mais atrás, do outro lado da rua. Seus vidros escuros não permitiam fazer contato visual com o motorista, quase como se não houvesse ninguém ao volante. Sua lataria comprida e de linhas fluidas, pintada numa elegante cor bordô e recentemente polida, brilhava de forma desafiadora, como se o veículo tivesse acabado de sair da linha de montagem.

Era um Ford Landau. E seu motor continuava ligado.

Um frio estranho correu pela espinha de Arthur. Ele não esperava encontrar nenhum outro veículo por ali, muito menos um que carregasse um ar tão estranho. Ficou ali, observando o Landau pelo retrovisor, esperando que ele seguisse adiante ou simplesmente retornasse e fosse embora. No entanto, o enorme veículo continuou ali, parado como um enorme crocodilo às margens de um rio, com o motor ainda emitindo seu rugido grave. Arthur já havia lido sobre maníacos assim. Eles ficavam lá parados, sem esboçar reação, deixando que apenas sua presença intimidasse suas vítimas.

Ou talvez ele estivesse se precipitando em seu julgamento. Talvez se tratasse apenas de algum casal que também buscasse um lugar deserto para uma boa transa outdoor, ou algum desinformado que acabara se perdendo e entrara pela rua errada. No entanto, aquela gigantesca grade dianteira cromada, brilhante como um sorriso sádico, parecia dizer a ele que não era nada daquilo. Aquele carro carregava um ar fúnebre, e Arthur não ia ficar ali parado, apenas observando.

Fechando o zíper da calça e pegando uma chave de roda debaixo do banco, o rapaz desceu do Fusca e encarou o outro veículo.

— Ei, você! — Ele gritou, apontando para o veículo.

O Landau permaneceu imóvel, seus faróis duplos virados para o rapaz como se o encarassem. Além do vento que soprava, o som borbulhante e baixo de seu motor era o único outro ruído que se ouvia.

Arthur contornou o Fusca e deu dois passos para o meio da rua, engolindo em seco.

— O que você quer? — Ele tentou de novo.

Mas o vultuoso sedã permaneceu como estava, sem a menor alteração. Mais uma vez, suor frio correu pela espinha do rapaz. Dando mais dois passos na direção do Ford, ele levantou a chave de roda e repetiu sua pergunta anterior num grito:

— O que você quer?

O súbito som do motor aumentando sua rotação veio primeiro, como se o próprio Godzilla tivesse se materializado ali. O som seguinte foi o dos pneus traseiros do Landau cantando e soltando uma nuvem de fumaça. A traseira do veículo abaixou sobre as rodas, como um animal que se agacha sobre as patas traseiras para atacar, antes de ele ganhar a rua e apontar diretamente para Arthur.

Tudo aconteceu numa questão de menos de dois segundos, e o único reflexo do jovem foi largar a chave de roda e pular de lado, rolando pelo asfalto. O sedã passou rugindo a poucos centímetros dele e foi chocar-se contra o Fusca marrom logo atrás. O pequeno Volkswagen foi empurrado contra a vegetação do acostamento e dobrou-se como uma mísera lata de sardinhas, suas janelas explodindo e as portas saltando para fora das molduras.

Levantando a vista, Arthur viu as luzes de ré do Landau acendendo-se e ouviu os pneus chiarem novamente, mas o veículo não recuava para a rua. O Fusca havia, de alguma forma, se enganchado ao para-choque dianteiro do Ford e agora era penosamente rebocado por este de volta à rua. Era a chance do rapaz escapar. Virando-se de costas para o misterioso veículo de cor bordô, correu pela rua o mais depressa que pôde. Havia perdido completamente o senso de direção, mas sabia que acabaria saindo no mirante da serra ou na portaria do parque estadual, ambos contando com policiamento constante.

Mais atrás, os pneus do Landau cantavam seu ódio, e uma nova nuvem de fumaça se erguia enquanto os mesmos, pouco a pouco, iam ganhando tração. Quando as rodas dianteiras voltaram a tocar o asfalto, o volante do veículo foi girado para a esquerda e o mesmo ganhou mais velocidade para recuar. Com uma guinada brusca de direção, o Fusca foi atirado de lado como uma carcaça podre e o sedã acelerou rua acima, na direção para onde Arthur fugira.

O jovem já estava longe, mas ouviu o som da aceleração do Ford sendo trazido pelo vento. Olhando rapidamente à sua volta, percebeu uma pequena estrada de terra à direita, frequentada quase sempre por praticantes de motocross. A via não era estreita o suficiente para impedir a entrada do Landau, mas era bastante inclinada e, com toda certeza, não permitiria que o veículo manobrasse para retornar.

Vendo o sedã apontar na curva mais abaixo, Arthur correu para a estrada de terra sem pensar. Não deu cinco passos e tropeçou numa pedra, rolando morro abaixo. Bateu a cabeça várias vezes em pedregulhos e galhos soltos, até parar no início de uma curva ampla à direita, sentindo-se atordoado, com dores por todo o corpo e o nariz sangrando.

Ouvindo a marcha do Landau ser reduzida e o escapamento espocar ante o súbito aumento de giro do motor, o jovem levantou a cabeça e se virou para olhar. E sua última visão em vida foi a do Ford Landau entrando pela estradinha de terra em altíssima velocidade, levantando vôo no alto do morro e vindo aterrissar sobre ele com o eixo cardã parecendo girar em câmera lenta.


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