O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 4
Capítulo 3




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Monotonia definiu o domingo de Fernanda. Ou quase.

A encarregada acordou cedo e, após tomar um café da manhã reforçado, tratou de arrumar a casa. Lavou a louça, a cozinha e o banheiro, varreu a casa e o quintal, lavou as roupas da semana e tirou a poeira dos móveis. Quando já era quase meio-dia, saiu para fazer as compras semanais e aproveitou para almoçar no Big Shopping. De volta em casa, tratou de reorganizar seu guarda-roupas e sua prateleira de livros e aproveitou para lavar e encerar seu Idea Adventure.

Já passava das quatro horas da tarde quando ela finalizou suas tarefas. Cansada, tirou um tempo para assistir televisão e comer um bom brigadeiro de colher sentada no sofá, até que se lembrou de ir à padaria para comprar pão para o dia seguinte. Terminando de comer o brigadeiro e dando apenas uma leve penteada nos cabelos, Fernanda pegou suas chaves na mesinha da sala, calçou os chinelos e seguiu na direção da padaria, na rua de baixo.

Até que, lembrando-se que iria passar diante da casa da família Peixoto mais uma vez, pegou-se pensando em Adam. Se ele ainda estaria por lá ou se teria preferido ficar em algum hotel da região. Mas para surpresa – ou não – de Fernanda, ele estava lá. Havia manobrado o monolítico Ford Landau para o pátio diante da porta de entrada e agora encontrava-se debruçado sobre o compartimento do motor. Com o capô erguido, aquele carro enorme lembrava uma baleia com a boca aberta para fora d’água. De onde estava, Fernanda podia ouvir os clings clangs de uma ferramenta sendo batida contra a estrutura do sedã.

Como o portão de entrada estava aberto, ela debateu consigo mesma se deveria seguir seu caminho ou se aproximar dele e puxar assunto, e não viu por que não optar pela segunda opção. Aproximou-se silenciosamente e cumprimentou-o.

— Oi, Adam.

O gerente se assustou e levantou o corpo por puro reflexo, batendo com a cabeça no capô.

— Porra! — Ele soltou, massageando a cabeça e se virando – Ah, oi, Fernanda.

E apesar da expressão sisuda no rosto dele, ela se segurava para não rir.

— Me desculpe por chegar assim. — Ela disse, cobrindo a boca com a mão para não deixá-lo ver seu sorriso — Mas eu estava passando e vi você por aqui, então...

— Ah, não. Tudo bem. — Ele mesmo abriu um sorrisinho debochado — Isso estava demorando mesmo a acontecer. Não levo o menor jeito para mecânica.

E enquanto ele falava, Fernanda aproveitou para olhá-lo melhor. Com músculos proeminentes, usando uma calça jeans e sem camisa, com uma ou outra mancha de sujeira ao longo do abdômen e dos braços e algumas gotas teimosas de suor rolando por sua testa, Adam parecia um modelo diretamente saído do calendário de alguma fabricante de peças automotivas. Com toda certeza, havia dedicado um bom tempo aos exercícios físicos no período em que estivera distante.

— ... para colocá-lo em ordem. — Ele estava dizendo, e Fernanda foi tirada de seu devaneio.

Sem dar por si, havia involuntariamente dado aquela secada em seu ex. Pedindo a Deus para não estar tão vermelha quanto um hidrante, ela cruzou os braços e tentou disfarçar sua confusão.

— Eu... Hã... Não entendi.

Mas Adam abriu um sorriso enigmático, notando que algo a havia tirado do normal. E o gesto que ele fez de pegar uma flanela no bolso de trás e secar a testa quase em câmera lenta contribuiu apenas para distraí-la ainda mais.

— Eu disse que o carro não está tão ruim quanto eu imaginava, mas ainda vai levar algum tempo para colocá-lo em ordem novamente. — Ele apontou para o Landau atrás de si.

Sem tem o que dizer, Fernanda mais uma vez decidiu usar o carro como pretexto para puxar assunto.

— Ah, sim. E o que ele tem?

O gerente se virou para o veículo, encarando o motor e recostando o corpo contra o para-lama.

— Bom... — Ele suspirou — Pelo tempo que ficou parado, o motor está até muito bom, na verdade, mas tem uma ou outra coisinha para consertar. O bloco está rachado, o afogador parece não estar funcionando direito, o alternador também não está cem por cento, os filtros, buchas e velas precisam ser trocados... Enfim, coisas simples de se resolver. O V8 302 da Ford era quase um motor de trator. — Ele deu uma risadinha — O interior e a capota é que devem dar mais trabalho para serem refeitos.

Ela assentiu, mas não havia entendido uma vírgula sequer. E enquanto limpava as mãos na flanela que segurava, Adam continuou o assunto.

— Mas e você? Para onde estava indo? — Ele perguntou.

Fernanda acenou levemente com a cabeça na direção da rua.

— Na padaria. — Ela respondeu e se calou novamente.

Ele fez um gesto de aquiescência, coçando o cavanhaque.

— Ah, sim. Olha, Fernanda, pode até ser muita ousadia da minha parte, mas... — Ele disse, de uma forma levemente forçada — Que tal você vir jantar comigo hoje? Sabe como é, eu estou sozinho aqui.

A pergunta a atingiu como uma chinelada. Ele havia dito que a convidaria para fazer alguma coisa juntos qualquer dia, mas ela não esperava que fosse tão rápido. E ela devia estar com uma tremenda cara de idiota, pois ele se empertigou e enterrou as mãos nos bolsos.

— Olha, eu não quis... Tipo, eu não... — Ele começou a dizer, visivelmente embaraçado.

Mas Fernanda se forçou a sair de seu estado de torpor, balançando a cabeça e fazendo um gesto negativo com a mão.

— Não, não. Tudo bem. — Ela se apressou a responder, tentando não pensar muito — Quer dizer, eu aceito, sim.

O sorriso que coroou o rosto dele foi tão reluzente que a encarregada quase entrou em um novo devaneio. E os dois segundos de silêncio dela foram suficientes para que ele se aproximasse ainda mais, o suficiente para que ela sentisse o cheiro que ele exalava: uma mistura de perfume Paco Rabanne com suor, fuligem automotiva e o próprio aroma natural dele. Tudo isso somado à visão do corpo perfeitamente definido dele perigosamente próximo de si fez com que as pernas de Fernanda bambeassem.

Adam, no entanto, estava concentrado nos olhos dela.

— Que bom. — Ele disse, num tom comedido — E sem nenhuma segunda intenção, ok?

Ela fez que sim, sem ter muita certeza do que responder. Sua cabeça girava como uma máquina de lavar, seu cérebro incapaz de focar um único pensamento com clareza. De repente, vendo-o ali de pé diante dela com toda aquela atitude galante, ela sentiu como se ele nunca tivesse se ausentado.

Adam, que continuava observando-a, alteou uma sobrancelha e estreitou a boca.

— Se me lembro bem, você não costumava ser assim, tão calada.

Cretino, ela pensou, de forma divertida. Porque algo no que ele sempre havia sido bom era em desarmá-la.

— Eu estou apenas... pensativa. — Ela respondeu, assumindo a mesma postura que ele.

— É mesmo? — Ele colocou uma expressão levemente maliciosa no rosto — E no que você pensa tanto?

E então a resposta perfeita brilhou na mente dela como uma sequência de três limões amarelos em um caça-níqueis de Las Vegas.

— Que talvez não precisaremos começar do zero novamente, senhor Peixoto. — Ela concluiu, abrindo seu melhor sorriso — Chego aqui às oito.

Dito isso, virou-se e seguiu para a padaria, deixando Adam a encará-la com uma expressão deliciosamente confusa no rosto.

o—o—o

O final da tarde passou incrivelmente rápido. Quando se deu conta, Fernanda já havia tomado banho, escovado os cabelos e se trocado. Agora, contemplava-se diante do espelho. Havia escolhido um vestido azul-escuro casual que lhe chegava até os joelhos e uma sapatilha de salto dez, optando também por uma maquiagem leve. Não viu necessidade de levar sua bolsa, afinal de contas iria apenas a um jantar “sem segundas intenções”, como Adam mesmo havia definido. Também não achou necessário ir de carro, pois o gerente morava na rua de baixo e ela já se acostumara a usar salto alto. Pegando apenas seu celular e as chaves, Fernanda trancou a casa e seguiu para a residência da família Peixoto.

Agora, residência apenas do Adam, ela se lembrou. E uma onda de estranha compaixão se apoderou dela. Por um momento, ela tentou se pôr no lugar dele e tentou imaginar o quão difícil devia ser ter que viver sozinha no mundo.

Em um espaço de doze anos, Adam havia perdido toda a sua família. E apesar de sempre ter demonstrado possuir um espírito independente e altruísta às pessoas que o cercavam, Fernanda tinha certeza que ele sofria de certa carência neste momento tão delicado. Era óbvio. E o fato de encontrá-la por ali o ajudaria muito, afinal de contas eles possuíam um passado juntos. Passado esse que voltara à tona na mente da encarregada na forma de inúmeros flashes. Desde que o havia visto sendo apresentado como gerente dois dias antes no armazém da Transportes Peixoto, a todo momento pegava-se pensando nele e em tudo o que haviam compartilhado. Agora ela não se lembrava mais por quanto tempo eles haviam namorado, mas havia sido o suficiente para criar um sentimento verdadeiro no coração dela, sentimento esse que, após pensar não tão cuidadosamente, ela havia decidido deixar reviver.

Ainda um pouco submersa em seus próprios pensamentos, Fernanda chegou à casa dele. Começou a erguer a mão para tocar o interfone, mas notou um pequeno pedaço de papel dobrado preso ao portão. Curiosa, pegou-o e abriu.

O portão está aberto. Você já conhece a casa, pode entrar e ficar à vontade. Estou na sala de estar.

Adam

Ela soltou um risinho abafado, pois aquilo era bem típico dele. Até nas coisas pequenas Adam sabia surpreender. Entrando pelo portão e tomando a precaução de trancar o mesmo logo após, Fernanda caminhou em direção à porta de entrada, abrindo-a e adentrando o local. Viu-se diante de uma luxuosa copa, mobiliada com muito bom gosto e coroada por um lustre discreto.

Da cozinha, mais à esquerda, provinha um cheiro delicioso de comida recém-preparada, enquanto a melodia inconfundível de Feeling good, na voz de Michael Bublé, vinha da sala de estar. A encarregada seguiu para lá instintivamente, quase caindo de costas com a visão que teve ao chegar.

Adam havia posicionado duas cadeiras no meio da sala de estar de costas uma para a outra, com uma distância de cerca de um metro entre elas, e agora se encontrava fazendo flexões sobre elas de ponta-cabeça, no melhor estilo Jean-Claude Van Damme. Usava uma camisa social roxa de linha egípcia que parecia a ponto de romper sob a pressão de seus bíceps, uma calça social preta vincada e um par de sapatos de verniz Oxford com solado de madeira.

O último look imaginável em uma pessoa que praticasse aquele tipo de exercício.

Fernanda não fez um ruído sequer. Já que Adam estava voltado para o outro lado da sala, ela apenas ficou parada na soleira da porta observando seu ex se exercitar daquele jeito único e elegante. O gerente ainda fez seu corpo subir e descer mais algumas vezes até que, percebendo que a música chegava ao fim, ergueu-se o máximo que pôde sobre os braços e deixou o corpo cair, dando uma meia-volta no ar e caindo de pé com uma leveza incrível. Feito isso, posicionou sua mão direita fechada contra a esquerda espalmada e baixou levemente a cabeça, fazendo a típica saudação kin lai do kung fu.

Logo após, empertigou-se e dirigiu-se a um aparador de madeira diante de si, onde havia algumas garrafas de bebidas sobre uma bandeja de prata.

— O kung fu não serve apenas para combate e defesa pessoal. — Ele disse, servindo-se de uma taça de vinho cabernet, ainda de costas para Fernanda — Também é ótimo para trabalhar o desenvolvimento pessoal, disciplina, foco, persistência e o respeito aos limites do corpo humano. Aceita um pouco de vinho?

Só então Fernanda se tocou que ele estava falando com ela.

— Hã... Não, obrigada. — Ela respondeu — Boa noite, Adam.

Ele se virou num movimento fluido e aproximou-se dela, segurando sua taça junto ao corpo.

— Boa noite, Fernanda. Fico feliz que tenha vindo. — Ele disse, abrindo novamente aquele sorriso provocador — Você está ótima.

— Você também. — Ela emendou, sincera.

E antes que se fizesse um silêncio constrangedor, ela apontou para as cadeiras no meio da sala com um gesto discreto.

— O que foi aquilo? — Um sorriso bobo surgiu nos lábios dela.

— Sou faixa preta de kung fu estilo fei hok phai. — Ele se aproximou dela ainda mais, dando um pequeno gole no vinho e olhando-a nos olhos — O estilo da Garça Voadora. Treino diariamente há mais de oito anos.

Ela franziu a boca e ergueu as sobrancelhas.

— Impressionante. — Ela também olhou-o nos olhos — De verdade.

Adam devolveu com um sorriso no canto da boca.

— Xie xie. — Ele respondeu em chinês, passando por ela e indo em direção à cozinha — Espero que você esteja com fome.

— Estou, sim. E o cheiro está ótimo. — Ela adiantou-se e seguiu na direção da sala de jantar — Foi você mesmo quem cozinhou?

— Foi. — Ele respondeu lá da cozinha — Espero que goste.

E enquanto ele não chegava com a comida, Fernanda deixou-se pensar nele novamente. Ele estava lindo naquela camisa roxa justa com os dois primeiros botões abertos e aquela calça que destacava-lhe as coxas. O cabelo, como sempre, estava impecavelmente penteado, e o cavanhaque parecia recém aparado. O contraste com o Adam jovem que ela havia conhecido era enorme. Quando ainda eram namorados, ele era adepto das jaquetas e botas de couro e raspava a barba todos os dias.

Mudou cem por cento. E para melhorEspero que a essência dele continue a mesma, Fernanda pensou, desenhando linhas invisíveis com o dedo no forro da mesa.

— E então? — A voz de Adam se fez ouvir — Vamos ao que interessa?

Ele vinha chegando com uma travessa em mãos, onde havia uma peça de carne de aparência apetitosa cercada por pequenas batatas douradas. Ele a depôs sobre a mesa, virando-se para Fernanda:

— Espere um pouco. — E voltou para a cozinha.

E em menos de um minuto voltou com mais duas travessas menores, uma em cada mão, também depondo-as sobre a mesa.

— Lombo recheado com bacon e queijo cheddar acompanhado de batatas sauté, maionese caseira com legumes e farofa crocante de pequi com pimenta. – Ele anunciou.

O queixo de Fernanda quase tocou o chão.

— Você preparou tudo isso?

Ele riu.

— Sim. Cozinhar é apenas um dos meus muitos talentos. — Ele respondeu de forma propositalmente provocante, puxando uma cadeira e se sentando de frente para ela — E sabe como é, sou um homem exigente.

— Sei disso. — Fernanda concordou, rindo — Mas você deixou escapar um pequeno detalhe, senhor perfeitinho.

O semblante dele ficou ligeiramente mais sério, mas ele não perdeu o bom humor.

— O quê?

— A bebida para acompanhar. — A encarregada respondeu, cruzando as mãos por baixo do queixo.

— É verdade! — Ele pulou da cadeira e correu para a cozinha novamente, voltando de lá com uma garrafa de Coca-Cola de 3 litros — Pra ajudar tudo isso a descer, tem que ser uma Coca geladinha, é lógico.

Fernanda riu de novo. Pelo visto, o Adam que estava diante dela naquele momento não era nada mais do que uma versão amadurecida do Adam que ela havia namorado anos antes. Amadurecida e melhorada, ela acrescentou mentalmente. O mesmo senso de humor, o mesmo charme, a mesma mania de surpresas constantes... Sim, ela queria reviver o sentimento que outrora havia tido por ele, e estava tentada a descobrir se ele estava disposto a corresponder.

E se alguém fosse julgá-la por isso, que fosse Deus. Porque para os homens, ela não devia nada.


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