O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 38
Epílogo II




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A noite estava escura. Muito escura. A chuva já havia cessado há pelo menos dois dias, mas o céu permanecia coberto de nuvens pesadas. A natureza parecia intimidada pela escuridão que dominava o mundo, e àquela hora não se ouvia nem o menor som ecoando das matas circundantes do sítio. Nem o chilrear dos grilos, nem o pio de uma coruja solitária, nem mesmo o vento passando pelas folhas das árvores.

Nada.

Escorado no capô da viatura da Polícia Militar, o cabo Victor segurava uma lanterna na mão esquerda com firmeza, de vez em quando dirigindo o facho de luz para uma ou outra forma escura que ele julgava suspeita. Um sentimento estranho lhe enregelava a nuca. Aquele silêncio não era normal. Parecia que tudo à sua volta estava prendendo a respiração.

Clack. Um estalo.

Por puro reflexo, Victor se virou e puxou sua arma, apontando o cano na direção de onde viera o som e levantando a lanterna para ver do que se tratava.

Tá louco, Victor?! — O cabo Leonardo berrou, levantando as mãos — Abaixa essa arma!

O cabo Victor suspirou, relaxando o dedo no gatilho.

— Desculpe, Leo. Você me assustou.

O outro deu-lhe um tapa moderado na cabeça, aproximando-se.

— Tá querendo me matar, é? Não tenho culpa se você está se cagando de medo.

— Não estou com medo. — Victor logo respondeu — Só estou achando essa situação bem... estranha.

Leonardo pensou em retrucar, mas preferiu manter-se calado. De fato, aquela noite não parecia nada normal. Já trabalhava com o cabo Victor há algum tempo e eram bons parceiros de ronda, mas nunca haviam passado por algo como aquilo.

A notícia da descoberta do covil do “Landau vermelho” naquele sítio havia deixado a cidade de Caeté em alvoroço, e eles logo foram designados para acompanhar os trabalhos da equipe de perícia. Finalizados os trabalhos, agora estavam incumbidos de manter o local livre de visitantes indesejados até que a equipe de remoção da Polícia viesse retirar o que fosse necessário do local. Não fizeram objeção, mas também não imaginavam que aquele sítio possuía um ar tão... carregado.

— Vamos, Victor. — Leonardo chamou seu parceiro para iniciarem mais uma ronda — Depois você se preocupa com suas neuras.

Mas mesmo apesar de seu tom irônico, o próprio cabo Leonardo não se sentia tão seguro assim. A noite estava muito escura. Os destroços do que outrora havia sido um pequeno armazém agora erguiam-se do chão como ossos esturricados de algum monstro gigante, e aquele Fiat Uno preto abandonado no meio do pátio parecia algum tipo de monumento modernista macabro.

Pela primeira vez o cabo Victor aproximou-se do veículo para analisá-lo melhor. Era um Mille Way, na verdade, mas em ambas as portas havia sido colocado um logotipo Sporting prateado. O escapamento acabava em uma bonita ponteira dupla de aço inox, e as rodas aro 15 pintadas de grafite eram oriundas do Argo HGT. O aerofólio na tampa do porta-malas era idêntico ao usado no clássico Uno Turbo, e os faróis de máscara negra pareciam ostentar barras de LED como as do Cronos. Aquele carro havia sido cuidadosamente planejado e construído, detalhe a detalhe, fruto de uma mente bastante criativa e um tanto visionária.

— Vai ficar aí a noite toda? — O cabo Leonardo questionou, tirando Victor de sua contemplação — Vamos, temos que...

Um barulho indefinido foi ouvido, vindo de algum lugar por trás das árvores. Seu ponto exato, no entanto, era impossível de determinar. A escuridão era tanta que parecia distorcer até os sons. Os policiais ficaram imediatamente alertas e levantaram os olhos em direções opostas, tentando ver alguma coisa.

— Isso foi um passo. Como se alguém estivesse nos observando. — Leonardo sussurrou, aproximando-se do colega e já sacando sua pistola — Tenho certeza.

A mão de Victor se retesou em volta da lanterna que ele segurava.

— O que você quer fazer? — Perguntou.

— Vamos dar a volta na casa. — Leonardo orientou, agora puxando sua própria lanterna de seu cinto — Eu vou por trás da varanda, e você dá a volta no armazém. Se virmos alguma coisa, ou alguém, avisamos um ao outro.

Não precisavam de muitas palavras. Já trabalhavam juntos a tempo suficiente para possuírem uma boa coordenação entre si. Victor fez um gesto positivo com a cabeça e apoiou sua arma sobre seu pulso esquerdo, de forma que o cano estivesse sempre apontando na mesma direção do facho de luz da lanterna. Leonardo fez o mesmo e se virou, caminhando para o outro lado. Sem se dar ao trabalho de olhar para trás, Victor caminhou lentamente na direção dos escombros do pequeno armazém. Aproximou-se e parou onde outrora estava o portão de entrada, escutando atentamente e varrendo o ambiente à sua volta com a lanterna.

As sombras pareciam brincar com ele, e uma ânsia estranha incomodou-lhe o estômago. Encarar o desconhecido sempre despertava um medo profundo em qualquer ser humano, e com ele não estava sendo diferente. A todo instante ele se pegava encarando algum vulto no escuro e tratava logo de iluminá-lo, sempre revelando um amontoado qualquer de madeira carbonizada, restos de metal, peças automotivas caídas e empilhadas de qualquer jeito ou...

Um distante farfalhar de folhas lhe chegou aos ouvidos.

Não havia sido impressão. Alguma coisa havia se movido por trás das árvores. Algo massivo, que se movia em passadas largas. E pela direção que o som havia tomado, parecia estar indo para...

Droga.

Fazendo o possível para se mover o mais silenciosamente possível, Victor contornou o armazém e embrenhou-se no mato, sentindo galhos arranharem sua roupa e folhas úmidas tocando-lhe o rosto. Mesmo com o auxílio da lanterna, não conseguia ver nada além dos cinco metros diretamente à frente. O som havia ido na direção de Leonardo. Ele precisava alertá-lo. Fosse o que fosse, não poderia deixar o companheiro enfrentar sozinho. Precisava alcançá-lo a tempo de...

Um pio. Um som baixinho e fino, como uma risadinha nervosa, ressoou em algum lugar à frente. Aquilo gelou o sangue nas veias de Victor, e ele pôs-se a correr com a arma em riste. Por alguma razão que ele não compreendia, a palavra Velociraptor se repetia em looping em sua mente. Algo estranho, sem sentido. Mas nada parecia fazer sentido naquela noite, afinal.

Seguiu na direção dos fundos da casa, para a entrada do sítio, e logo viu um facho de luz se movimentando lentamente mais adiante. Era a lanterna de Leonardo. Correu até lá, segurando-se para não chamar pelo companheiro em voz alta, mas de longe ele já havia percebido que a luz estava baixa demais. Algo não estava certo. Aproximando-se e já sentindo suor brotar por baixo de seu uniforme, o cabo Victor encontrou a lanterna de seu colega rolando lentamente pelo caminho de entrada do sítio.

Aquele sentimento estranho em sua nuca fez os pêlos de seu corpo se arrepiarem. Leonardo não teria simplesmente largado a lanterna no chão ou a deixado cair. Além disso, ele não havia ouvido nada além daquele som estranho. Seu cérebro ainda tentava buscar algo que se assemelhasse àquele ruído, mas todas as comparações que brotavam em sua mente eram um tanto animalescas.

Victor respirou fundo e soltou o ar pesadamente, tentando controlar o nervosismo, e abaixou-se para pegar a lanterna no chão. Segurou-a na mesma mão em que estava a sua própria e conseguiu ter uma iluminação melhor. Dirigindo o facho de luz para várias direções, ele pareceu notar algo se movendo rapidamente entre algumas bananeiras mais adiante, mas não teve certeza.

Ele queria sair dali. Ele precisava sair dali. Não iria encarar o que quer que estivesse rondando por ali sozinho.

— Leo! — Ele não se conteve e gritou — Leo, cadê você?

O silêncio sepulcral permaneceu. O cabo sentiu sua pulsação acelerar ainda mais.

— Leo! Leo, me responde! Cadê você?

Outra vez aquele pio foi ouvido, desta vez mais nítido e demorado. E bem mais próximo. Era um som perturbador, primevo, como a risada de uma hiena pré-histórica que o estava cercando aos poucos. O facho da lanterna varria a vegetação ao redor descontroladamente enquanto os olhos do cabo Victor escaneavam cada mínimo detalhe, tentando localizar algo incomum.

Não, ele pensou de súbito. Não vou ficar aqui sozinho.

Virou-se e começou a subir a rampa de entrada do sítio, andando depressa na direção da viatura, e por um segundo ele abaixou as lanternas para caminhar melhor. E deu de cara com ele, de pé no topo da rampa. Surgido repentinamente das sombras, um vulto escuro e um tanto encurvado, que parecia cambalear ao se mover.

A surpresa daquele encontro foi o que traiu o cabo Victor. Movendo-se com rapidez e precisão incríveis, o vulto escuro avançou na direção do policial e o agarrou com força pelo pescoço, envolvendo-o como os tentáculos de um polvo. O militar chegou a largar as lanternas e erguer as mãos para tentar se livrar, mas no segundo seguinte seu pescoço foi girado com força para a esquerda e ouviu-se um som desagradável de ossos se rompendo. Seus membros se amoleceram de uma única vez, como se apertassem um botão Desligar em sua cabeça, e seu corpo inerte foi atirado com força para o lado, rolando sobre uma moita de alecrim e parando a poucos centímetros do corpo de seu colega Leonardo.

E o vulto sumiu na noite escura tão subitamente quanto havia aparecido. Tudo que se ouviu na sequência foi o som do motor do Fiat Uno mais adiante sendo ligado, seu ronco potente ecoando pela saída dupla do cano de descarga. Seus faróis se acenderam como olhos brilhantes penetrando na escuridão que cobria a Terra e seus pneus dianteiros derraparam na lama quando o veículo foi acelerado e ganhou velocidade.

E quando o pequeno hatch se afastou, a noite caiu em silenciosa quietude outra vez.


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