Kháos escrita por Alice


Capítulo 3
Latíbulo


Notas iniciais do capítulo

Subs. masc.
1. Esconderijo, retiro. 2. Lugar de segurança e de conforto.



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Após entregar um copo de água para Jackson, deu a volta no sofá e sentou ao lado do amigo. Ele olhava ao redor com uma curiosidade quase infantil, porém, Ramona tinha certeza de que era apenas uma desculpa para não encará-la nos olhos. Arranhou a garganta a fim de chamar sua atenção, o Fuller arqueou as sobrancelhas enquanto terminava de beber a água, procurando ao redor um lugar para deixar o copo. Ramona estendeu a mão para que ele a entregasse, não tinha uma mesa de centro ou de canto, apenas o sofá e uma estante do outro lado da parede compunham a sua "sala de estar".

 

 

— Então você fugiu? - resolveu que estava na hora de voltarem ao assunto.

 

 

— Não. - respondeu firme, parecendo levemente indignado. - Eu cheguei ontem para a entrevista e pensei que seria melhor não contar pra ninguém caso tudo desse errado.

 

 

Suspirou alto, sempre que Jackson tentava fazer qualquer coisa em segredo, de alguma forma tudo acaba se voltando para ela. Aquela situação era mais uma prova.

 

 

— Se você tivesse dito pra DJ que viria para uma entrevista de emprego seria bem mais fácil do que mentir que está em uma conferência estranha. - cruzou as pernas abaixo do corpo, apoiando a lateral do corpo contra o encosto do sofá.

 

 

Jackson respirou fundo, virando para ficar de frente para ela, as mãos unidas no colo como se estivesse se preparando para defender algo extremamente importante.

 

 

— Esses últimos anos foram uma loucura, Ramona. Desde que eu terminei com a Lola... eu fiquei completamente perdido, de verdade.

 

 

— Sair de casa para morar com a ex-namorada, ficar noivo dela durante um ano e depois voltar para casa quando terminarem não é motivo para continuar mentindo para a sua mãe aos vinte e seis anos, Jackson Fuller.

 

 

— Não era necessário resumir os meus fracassos, Ramona Gibbler. - abriu um falso sorriso de irritação. - Minha mãe está preocupada, tipo, muito preocupada comigo. Pensei que se eu viesse e não conseguisse o emprego seria apenas mais uma decepção para ela. Eu só estou cansado, Ramona. De não conseguir ter nada fixo. - levantou angustiado, gesticulando em reflexo. - Eu me formei e achei que estaria tudo bem, que eu iria conseguir um emprego, conhecer alguém legal, sair de casa e construir minha própria família. Aí encontrei a Lola de novo e era tudo tão normal com ela, parecia certo porque... nos conhecemos há anos. - caiu sentado novamente, o rosto retorcido em uma expressão de desagrado.  - Mas deu tudo errado de novo. Dividir uma casa com alguém com quem você tem um relacionamento não é a mesma coisa que morar na casa da sua família.

 

 

Ramona não sabia o que dizer, ver Jackson tão triste e, de certa maneira, exausto, era horrível. Acompanhou de perto o período do noivado, a loucura que foi a casa dos Fuller quando ele se mudou com Lola para uma pequena casa no centro. Sabia que talvez não fossem dar certo, as últimas tentativas dos dois eram a prova disso, mas eles pareciam tão felizes que se absteve de dar uma opinião mais forte. Aconselhando que tomassem cuidado, viu o ano passar tão rápido e cheio de reviravoltas. Faziam quase dois anos do término e Jackson não foi mais o mesmo desde então, queria continuar ao lado dele, porém, precisava viver sua própria vida e Nova Iorque era a escolha mais lógica naquele tempo. Talvez ele também pensasse assim naquele momento.

 

 

— Olha. - começou, pegando uma mão dele entre as suas. - Você conseguiu um emprego ótimo, ser Assistente de tecnico de informática, ou seja o que for que eu não lembro agora, é o primeiro passo para você crescer dentro da empresa ou conseguir abrir novas portas para outras propostas. Não é algo para se envergonhar caso não conseguisse, mas você conseguiu e acho que... acho que talvez você possa ficar aqui.

 

 

— Sério? - perguntou animado, um sorriso começando a crescer em seu rosto.

 

 

Ramona somente murmurou que "É, sim" antes de ser puxada para um forte abraço. Riu quando se viu sendo puxada para cima, tentando se apoiar para não cair.

 

 

— Tá bom, tá bom. - tentou empurra-lo para longe, espalmando as mãos contra o peito do amigo, fugindo rápido quando obteve um espaço.

 

 

— Você é a melhor amiga que eu poderia ter, Ramona! - declarou alto, se contendo para não abraça-la novamente. - Muito obrigado.

 

 

— É pra isso que servem os amigos. - garantiu, sorrindo ao vê-lo tão aliviado. - E irmãos. - completou após algum tempo, se sentindo um tanto estranha.

 

 

— Sim, claro, e irmãos. - concordou, torcendo levemente o nariz antes de correr em direção à sua mochila.

 

 

A Gibbler passava o peso do corpo de um pé para o outro, a atmosfera se tornou inesperadamente estranha, mas aquele não era o momento para analisar o motivo. Balançando a cabeça, resolveu que estava na hora de ir para a cama.

 

 

— Eu vou dormir, tenho que sair cedo pela manhã. - avisou, já caminhando para longe enquanto o via digitar no celular. - Vou pegar alguns cobertores e Jackson. - chamou firme, o vendo piscar lentamente para ela. - Não seja estranho e não complique a minha vida.

 

 

— O que eu poderia fazer? - a indignação era óbvia em sua voz.

 

 

— Tudo. - apenas respondeu antes de se virar em direção ao quarto, mas logo gritou do outro cômodo. - E vê se liga para a sua mãe!

 

 

<♡♡♡>


O som distante da vibração do celular foi o suficiente para despertar aos poucos a mulher sonolenta. Abriu os olhos com dificuldade, o ambiente escuro a puxando para voltar à um sono calmo e merecido, mas se forçou a acordar, nunca chegou atrasada em um dia de trabalho e aquela não seria a primeira vez. Apoiando as mãos no colchão, impulsionou o corpo para sentar, piscando para se acostumar a escuridão antes de abrir a boca em um longo bocejo. Ainda era uma terça-feira, a semana mal havia começado e já queria que o domingo desse as caras. Iria dormir o fim de semana inteiro, adicionou à lista mental de tarefas.

Colocou os pés no chão frio, um calafrio subindo pelas pernas e se espalhando por seu corpo, ainda estava longe do inverno, mas as madrugadas na cidade eram frias na maior parte do tempo em que estava ali. Arrastando-se igual um morto-vivo, saiu do quarto em direção ao banheiro, o silêncio conhecido de seu apartamento a seguindo durante todo o caminho de ida e volta para o seu quarto. Assim que saiu, se sentindo o mais desperta possível, percebeu o som que tinha sido bloqueado de sua mente desde que acordara, o ronco que povoou toda a sua adolescência. Revirou os olhos quando chegou na sala e viu o corpo grande de seu amigo pendendo do pequeno sofá, a manta cinza mal o cobrindo enquanto ele ressonava de boca aberta.

Tinha se esquecido da presença dele, quando deitou a cabeça no travesseiro bloqueou tudo ao seu redor. Com cautela se aproximou, puxando a manta até a metade do peito dele, talvez assim Jackson não pegasse algum resfriado. Olhou ao redor do apartamento para constatar que estava tudo em ordem, então deixou uma chave reserva presa por um imã na geladeira, junto com um bilhete avisando que era a chave do apartamento e que ele não quebrasse nada na ausência dela. Após isso, saiu de casa tomando cuidado para não acordar o Fuller, não sabia a que horas ele teria que estar no trabalho, mas deveria estar ao menos descansado quando fosse.

Franziu a testa quando percebeu que não fazia ideia de onde ele trabalhava ou em quê. A única informação que fixou foi que agora ele era Assistente de tecnologia da informação em uma empresa especializada em segurança. Segurança de quê? Ela não fazia ideia, mas talvez pagasse bem e ele fosse gostar de lá. Quem dera ela ter um aumento, quem sabe não poderia mudar para outro lugar? Se bem que... Sorriu animada quando um plano começou a se formar em sua mente, apertando o passo para não perder a próxima parada no metrô.

Durante um intervalo em um ponto do dia, sentou em um banco na praça interna do estúdio. Caneta e papel em mãos, começou o processo de pesquisa por um bom corretor. Não conhecia bem todos os bairros e ruas de Nova Iorque, precisava de alguém que entendesse e a encontrasse um lugar bom, seguro e razoavelmente barato. Não sabia quais eram os planos de Jackson, mas tinha a certeza de que ele não iria embora tão cedo o que o faria ter que dividir o aluguel de qualquer maneira e uma nova casa não mudaria nada, apenas o valor, óbvio.

— O que você está fazendo?

Se assustou levemente, encarando uma Daisy curiosa que sentou à sua frente, a mesa de pedra as separando.

— Estou procurando um bom corretor de imóveis.

— Não sabia que você queria se mudar.

Estreitou levemente os olhos quando detectou o tom forçosamente amistoso. Sabia que Daisy tinha conhecimento de que ela iria se mudar por conta da conversa no dia anterior, mas não iria entrar no assunto nem dar margem para ela começar a falar. Então resolveu optar por uma meia verdade.

— O Jackson acabou de se mudar lá para casa, não temos espaço suficiente para nós dois.

A expressão surpresa no rosto de Daisy a fez ficar aliviada. Não passaria por um monólogo sobre como era melhor ela encarar o melhor da vida, amava a sua amiga, mas não estava com paciência para o seu otimismo ilimitado naquele instante.

— Oh, então eu acho melhor você entrar em contato com alguém que não possa acabar enrolando vocês dois. - aconselhou, retirando o celular do bolso. - Meu tio é corretor, ele já está no ramo há muito tempo e acho que ele é muito bom já que ainda está trabalhando.

Se absteve de dizer que nem todos que trabalhavam eram bons em seus empregos e aceitou o número. Quem sabe Daisy não estava certa em seu julgamento e ela era quem estava se transformando em uma pessimista crítica?

— Obrigada, Daisy. Só quero um lugar um pouco maior e mais perto tanto do meu emprego quanto do dele.

— Mas por que ele veio agora? Quero dizer, ele não estava noivo?

— O Jackson terminou, na verdade a Lola terminou com ele já faz um tempo. Ele precisava de espaço e acho que aqui ele pode ter isso.

— Vocês são muito próximos, não é?

A pergunta não era maliciosa, apenas curiosa. Ramona já escutou muitas pessoas indagarem em um tom de óbvia descrença se eles eram mesmo apenas amigos. Era cansativo ter que explicar toda a logística de seu relacionamento com o Fuller e afirmar que sim, eles eram apenas amigos e não, nada aconteceu enquanto dividiam uma casa. Após um tempo ela começou a perguntar se eles não tinham mais nada para fazer além de se meter na vida dos outros, afinal, toda paciência tinha limite e a dela se tornou ainda mais curta com o passar dos anos.

— Sim, ele é o meu melhor amigo. - declarou suavemente, após tantos anos juntos e passando por tanto não havia como ele não ser. - Só não fala isso para ele ou o ego daquele homem vai expandir ainda mais.

— Eu sei o que você quer dizer, o Steven é como um irmãozinho para mim e não sei até onde posso ir por ele. E nem espero descobrir. - completou rindo.

Ramona sorriu, sabia o quanto Daisy amava Steven, seu melhor amigo desde o jardim de infância. Ele era um cara legal e o total oposto da mulher à sua frente. Enquanto Daisy Elliot era espontânea, otimista, energética e tão decidida, Steven era um cara reservado, tímido e realista ao extremo. Saiu com ele por alguns meses assim que chegou à cidade, seu primeiro encontro foi orquestrado por Daisy, mas dois meses foi o suficiente para provar que os dois definitivamente não dariam certo. Ele queria algo duradouro, uma casa com cerquinha branca e três filhos e um cachorro. Era um sonho bonito e só porque não era o sonho de Ramona não significava que não fosse válido, o grande porém era que ele queria para agora e definitivamente ela não se via sendo mãe em um futuro recente.

— O Jackson é... Como eu posso dizer? - parou para procurar por um bom adjetivo, algo que não o derrubasse muito no conceito de Daisy. - Resiliente. Ele se adapta a qualquer situação, se algo não está dando certo ele chora pra caramba e então pula para o próximo estágio que aparecer. Então se não der certo de novo, ele chora novamente, resmunga infinitamente, mas vai mesmo assim. - riu ao perceber que era realmente verdade. - Ele é o contrário de mim nesse quesito.

— Você paralisa, querida, já vi de perto. - Daisy comentou, sorrindo quando a viu fazer uma careta. - Quando algo é muito para você lidar, você ergue uma barreira extremamente grossa. Você está aqui, Ramona, mas ao mesmo tempo não. Vive em automático.

Se designou a suspirar, sua amiga não estava tão errada, mas também não estava tão certa. Ela sentia muito e parecia que tudo o que sentia se misturava em uma bola de ferro enorme que a prendia em um lugar não tão bom. Quando era menor não era assim, aprendeu a ver o lado bom em tudo. Não tinha como não ver o lado bom em qualquer coisinha morando na casa dos Fuller e tendo Kimmy Gibbler como mãe, mas ela cresceu e a vida era bastante cruel quando queria. Nada era cor de rosa e tinha que tentar fazer o seu melhor para que o mundo fosse ao menos azul, longe do cinza ou de qualquer outra cor apática. E era isso o que estava fazendo no momento.

— Na sua opinião, qual o melhor lugar para morar por aqui? - indagou subitamente animada, escutando com atenção as opiniões de Daisy.

<♡♡♡>

Abriu a porta de seu apartamento sentindo seu corpo inteiro doer. Tinha sido um dia cansativo e tenso, já imaginava que teria que tomar algo para conseguir dormir razoavelmente tranquila naquele noite. Suspirou feliz quando fechou a porta atrás de si, livrando-se dos sapatos e jogando a bolsa no chão ao seu lado. Inspirou o ar de casa, mas logo abriu os olhos quando sentiu um cheiro diferente. Piscou surpresa quando encontrou Jackson na cozinha, de costas para ela e mexendo em algo sobre a cooktop que havia conseguido comprar da vizinha do andar de baixo.

— Hum, o que você está fazendo?

— Comida?

A reposta veio carregada de ironia. Revirou os olhos para em réplica, retirando as meias antes de caminhar até ele. Jackson mexia uma grande porção de macarrão em uma panela, podia ver cenouras raladas, frango desfiado e algumas outras verduras. O cheiro estava bom, um aroma de comida caseira que há tempos não sentia dentro daquele apartamento.

— Onde você conseguiu essas verduras? - não lembrava de ter algo fresco dentro do freezer.

— Fui no mercadinho comprar algo. Sinceramente, Ramona, você se alimenta de quê? - indagou confuso, desligando o fogo e a encarando.

— Compro algo pelo caminho. - deu de ombros após notar o olhar exasperado do amigo. - Não tenho tempo para cozinhar, Jackson, e quando tenho estou cansada demais para querer cozinhar. Então peço algo para comer.

— Isso é...

— Não fale nada. - o interrompeu, procurando pelos pratos mal usados que se encontravam em algum lugar na bancada da cozinha. - Você mal está aqui há um dia, não tem direito de falar dos meus hábitos alimentares.

— Ou a falta deles. - resmungou, dividindo o macarrão entre os dois pratos que ela segurava. - Você vai acabar ficando doente se não se alimentar direito.

— Estou bem, Jacksito. - garantiu, sorrindo quando o viu fechar a cara. - Você está parecendo a DJ.

— Bom, talvez ela tenha razão quando diz algumas coisas.

— E por falar nela. - sentou no sofá sendo seguida por ele. - Como foi a conversa?

— Foi... - parou, encarando o teto enquanto ela enchia a boca de macarrão. - Foi um monólogo na maior parte do tempo. Primeiro deixei que ela retirasse do sistema toda a raiva e depois tivemos uma conversa calma. Tudo durante o meu horário de almoço ou ela poderia estar até hoje pedindo explicações.

— Bem... - terminou de engolir a comida antes de continuar. - Esse macarrão está incrível, não vou reclamar se você começar a fazer o nosso jantar. - declarou satisfeita. - Agora que está tudo explicado, o que acha de mudar de casa?

Jackson apenas a encarou confuso, sua boca estava cheia demais para conseguir falar. Ramona sorriu animada como se aquela fosse a melhor ideia do mundo e logo tratou de vender sua proposta.

— Aqui é muito pequeno para nós dois e o sofá vai acabar com a sua coluna. O tio da Daisy é corretor de imóveis e marquei uma visitação com ele no sábado a tarde, o que acha?

— Na verdade não vai fazer muita diferença, eu ia dividir o aluguel com você mesmo. - disse, sorrindo ao levantar o garfo em um brinde na direção dela. - O bônus é que posso ter um quarto só meu.

Torceu o nariz quando lembrou da preguiça que ele possuía quando mais jovem, esperava que os genes da limpeza herdados de DJ tivessem se manifestado ao longo dos anos.

— Primeira regra, Jackson. Todas as tarefas serão divididas. Não quero chegar um dia em casa e ser recebida por baratas e ratos.

— Como você acha que eu vivo? - perguntou indignado, rindo em descrença quando ela torceu a boca. - Já tenho mais de vinte e seis, Ramona, gosto de me considerar um ser humano higiênico.

— Espero que seja mesmo. - murmurou, levando uma garfada à boca.

— Você é inacreditável.

Sorriu para o tom carinhoso e continuaram a comer em silêncio, ambos cansados do dia e sonolentos após o jantar. Quando deitou a cabeça no travesseiro, a Gibbler sorriu para o teto escuro, tinha sido bom dividir o jantar com alguém. O ano convivendo com Lola deve ter feito com que Jackson amaduressesse, afinal, como ele mesmo havia dito, dividir uma casa com quem se estava em um relacionamento era totalmente diferente. E era o que aconteceria com eles, não em um sentido romântico, mas em uma situação similar. Só esperava que tudo continuasse tão calmo quanto estava sendo até o momento.


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