A Pergunta escrita por Dona Maricota


Capítulo 7
Festa estranha com gente esquisita


Notas iniciais do capítulo

Depois de mil e quinhentas revisões, tá aí a tão aguardada segunda parte do capítulo anterior. Eu dividi o plot do capítulo 6 em dois pra poder aprofundar melhor os acontecimentos que ocorrem nesse aqui, e eu AINDA não sei se ficou do jeito que eu queria KKKK mas espero do fundo do coração que vocês gostem, pois foi o capítulo que eu mais trabalhei duro em cima, e pra completar, ficou gigante.
Boa leituraaaa!



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— Hum... então era isso? 

Mousse enfaixa o braço machucado de Ryoga com cautela para que ele não sentisse tanta dor, Ranma fez um terrível estrago em ambos durante a luta mais desnecessária da história, e no momento, eles estavam no quarto do amazona, um ajudando o outro a cuidar dos machucados.  

Depois de levarem uma surra, ficaram meio atordoados no asfalto por alguns minutos, e quando conseguiram começar a reagir, já era tarde. Viram Ranma saindo do café gato a todo vapor, furioso e desorientado, sendo seguido por uma Akane chorosa que esperneava seu nome. Algo de muito sério aconteceu lá dentro, e para Ryoga, que sabia da situação com riqueza de detalhes, não era difícil de imaginar o que houve. 

Assim que foram para o quarto, Mousse o questionou sobre todas as coisas que não faziam sentido, e bem, agora que o pior já aconteceu, Ryoga não pestanejou em contar para o amazona toda a história por trás de seu plano, tudo o que fez Akane, e ele, mudarem de atitude tão drasticamente para com Ranma. O rapaz cegueta estava em choque, mas mantinha-se com a postura serena enquanto passava uma pomada nas costas desnudas do maior. 

— Pobre Akane Tendo... - ele entristece o tom da voz - já vi histórias parecidas com essa. O Conselho das Artes Marciais toca o terror lá na China 

— Foi por isso que ela mudou com o Ranma... - Ryoga prossegue, estava com um semblante de derrota, muitíssimo preocupado com o possível andar da carruagem – Agora ela não vê outra escolha a não ser levar esse casamento adiante... 

— Hum... Agora entendo porque você mudou de time também - alfineta - Você ama mesmo essa mulher, né? 

Quando ouve aquilo, Ryoga se arrepia e seu coração acelera. Vira-se bruscamente para Mousse com uma aura ameaçadora, e rosna: 

— Quer parar com isso?! Eu tenho namorada!! 

— Calma rapaz, eu sei – Mousse não se intimida nem um pouco, moldando um curativo no ombro do garoto - É só que... Todo esse esforço para ajudá-la, ainda que seja pra ela se casar com o canalha do Saotome... Deve ser um amor muito grande – aquilo calou Ryoga profundamente. Diferente da outra vez, em que Mousse o provocou sobre isso com comentários ácidos, agora ele demonstrava sentir uma admiração genuína por Ryoga. Nunca, jamais, se enxergaria fazendo o mesmo que ele, ajudando Shampoo a se casar com Ranma ainda que fosse uma questão de vida ou morte. Mas Ryoga, por mais suspeito que fosse por ter uma namorada, mantinha-se resiliente em ajudar Akane, não importa o que fosse preciso. E não precisava ser um gênio para perceber que ele ainda era apaixonado por ela, por isso, o choque era ainda maior. Mousse suspira em decepção ao finalmente entender a posição em que eles estavam - É... Conhecendo a Shampoo... ela deve ter montado uma maracutaia para fazer a Akane Tendo dar um tiro no próprio pé. 

— Eu não sei como você consegue gostar daquela psicopata!! 

POW! 

Mousse deu um cascudo na cabeça de Ryoga, formando um galo. 

— AAAII! POR QUE FEZ ISSO?!? 

— Meça bem suas palavras antes de falar da minha Shampoo!! 

— Ah, fala sério!! - Ryoga reclama olhando para ele e alisando a própria cabeça - Por culpa dela e da traidora da Ukyo, o nosso plano já era!! 

— Vem cá, eu só não entendi uma coisa – ele arrodeia o assunto abruptamente, já estava ficando mestre em ignorar as reclamações de Ryoga – Como é que aquelas duas descobriram isso tudo? Me parece ser uma informação muito difícil de se conseguir, até mesmo pra Shampoo. 

— Eu sei lá!! - o maior vira-se de costas mais uma vez, deixando que Mousse continue o seu trabalho – Da minha boca não saiu, e nem da Akane! 

— Hum... - Mousse começa a maquinar umas coisas na sua cabeça enquanto fazia mais curativos em Ryoga – Mas será mesmo que o plano já era? 

— Claro que já era! - resmunga, pessimista como sempre – O Ranma não vai facilitar depois de descobrir tudo isso! 

— Ora vamos, Ryoga. Não entregue os pontos assim – o amazona o encoraja – O Saotome pode ser um canalha, mas não acho que seja tão insensível. 

Aquilo faz Ryoga levantar uma sobrancelha, curioso. 

— Como assim? 

— Como assim... que talvez, se alguém falar com ele com jeitinho, ele entenda que uma família inteira está dependendo dele. 

Era um ponto de vista bastante drástico e melodramático... Mas era verdade. Ranma não tinha nenhuma obrigação concreta com a família Tendo, mas ele tinha sim o poder de definir o futuro de todos eles. Se Ranma de fato não for um completo insensível, de alguma forma, ele iria se tocar com aquilo. 

Ryoga fica distante e pensativo, imaginando o que será que estaria se passando na cabeça de Ranma naquele momento. Para Akane sair do café gato atrás dele, chorando daquele jeito, é porque a coisa foi feia. E lembrar-se de Akane chorando... apertou o coraçãozinho do pobre menino porco, que não suportava sequer imaginar uma cena daquelas. 

Uma chama carregada por um sentimento superprotetor se acendeu no peito de Ryoga, que mais uma vez, conduzido por suas emoções, tomou uma decisão. 

— Mousse... 

— O quê? 

— Posso te pedir um favor? 

 

—-- 

 

De manhãzinha, Akane caminhava até a escola com um semblante de morte, uma postura curvada, e olheiras profundas nos olhos inchados de tanto chorar. Passou a noite inteira chorando, nem jantou, apenas trancou-se no quarto assim que chegou em casa e da sua cama não saiu até que chegasse a hora de ir para a aula. Só conseguiu pregar o olho quando já era quatro da manhã, apenas pela exaustão e peso de suas pálpebras. 

Não tirava da cabeça a forma triste e desiludida que Ranma a olhou no dia anterior, quando, coagida por Shampoo e Ukyo, disse mais do que deveria sem saber que ele estava ali presente. Mas apesar do rancor guardado pelas duas, sentia mais raiva de si mesma por ter colocado tudo a perder, dizendo coisas que, no fundo, nem ela acreditava ser verdade. Preocupava-se com o seu plano? Sim, mas pessoalmente estava muito mais preocupada com o pobre coração partido do garoto de trança. As consequências de seus atos fincaram na sua consciência, e provavelmente de lá não sairiam, se culparia até o momento em que Ranma, por um milagre, a perdoasse. 

Atravessou o portão do colégio, atraindo olhares por estar visivelmente abatida. De longe, avista a infeliz figura que usava os mesmos trajes de kendô de sempre, e permanecia em pé de braços cruzados como um segurança. 

— Bom dia, Akane Tendo – ele cumprimenta a Akane que se aproximava, tirando de seu quimono uma rosa vermelha e estendendo para a garota – Pra você, minha bela dama. 

— Me deixa em paz, Kuno. 

Ela ignora completamente o gracejo dele, o deixando para trás e seguindo em frente. Era impressionante que, mesmo depois de formado, ele ainda aparecesse no Furinkan quase todos os dias para importuná-los, muito motivado pela falta do que fazer. 

— Onde está meu desprezível rival, Ranma Saotome? 

Akane se arrepia quando ele pergunta aquilo, o simples fato de ouvir o nome dele já a deixava a beira de mais um chororô. 

— Não sei... 

— Ouvi dizer que hoje é aniversário dele – Akane congela, parando de andar. Estava tão inerte nas suas mágoas que se esqueceu desse detalhe, o que a fez se sentir ainda pior consigo mesma, considerando que tudo aquilo foi justo acontecer na véspera do aniversário dele – Quero me certificar de destruir o dia daquele patife, para que ele se arrependa de sequer ter nascido! 

Kuno a examina, havia algo errado com Akane, tão murcha, tão quieta. Mas ainda pior, de baixa guarda. Ele olha para o horizonte e avista algo vindo na direção de sua amada numa velocidade insana, e em reflexo, saca sua katana de madeira e se põe na frente dela como um guarda-costas. 

— Cuidado, minha amada! 

Surpresa, Akane volta a ficar em alerta, e quando o faz, se depara com Kuno a defendendo de um golpe surpresa. Especificamente uma chibatada que vinha a todo vapor de uma fita de ginástica, que o rapaz consegue envolver em sua katana. A figura feminina e risonha se revela, embora, decepcionada por não ter conseguido acertar Akane. 

— Irmã malvada, como ousa tentar ferir a minha amada?! 

— Irmão querido, intrometido como sempre – Kodachi desdenha dele, jogando seu belíssimo e sedoso cabelo negro para atrás de seus ombros - Não tenho interesse na sirigaita Akane Tendo. Vim pelo meu amado Ranma – ela olha para o céu e faz um olhar sonhador – Hoje é aniversário do meu querido amor! Vim buscá-lo para um romântico encontro de almas! 

— Irmã pervertida, eu não autorizo! - com a katana ainda amarrada na fita, Kuno se arma em posição de ataque e tenta acertar sua irmã mais nova, que desvia numa pirueta fenomenal - Não permitirei que Ranma Saotome tenha um dia agradável! Hoje será o dia em que destruirei aquele miserável custe o que custar!! 

— Não vou permitir que fique no meu caminho, irmão querido!! 

Os dois irmãos Kuno começam uma batalha na entrada do Furinkan que parecia ter potencial para se estender pela manhã inteira, Kodachi tentava acertá-lo com chicotadas da sua fita, enquanto Tatewaki lhe armava golpes com sua katana. Percebendo que não tinha mais motivos para presenciar aquele circo, Akane entra no colégio e os deixa. 

Vai até a sala de aula com o mesmo semblante abatido, coisa que chamou a atenção dos seus colegas, mas optaram por não questioná-la. Provavelmente já estavam supondo que ela brigou com Ranma mais uma vez. 

E por falar nele... 

Ela senta na sua cadeira, olha para o lado e não o encontra. Torceu para que fosse apenas um atraso, mas aí ela escuta: 

— Good morning, class – diz a professora Hinako, fazendo todos se sentarem e a cumprimentarem de volta – Abram seus livros on page sixty three, please! 

Quando a pequena professora de inglês fechou a porta e começou a sua aula, ficou nítido que não se tratava de um atraso. Ranma não viria. Seja por ser seu aniversário... ou porque não queria ver Akane. Aquilo fez com que o coração da menina apertasse ainda mais, sentindo todo o peso da culpa mais uma vez e enchendo seus olhos de lágrimas, que ela segurou bravamente para não fazer uma cena na frente de seus colegas. O fato de ser aniversário dele aumentava ainda mais sua angústia. Ele estava tão animado com aquele dia, e agora... por culpa dela... 

Akane não era a única a encarar a carteira vazia de Ranma, ao levantar um pouquinho os olhos, foi fisgada pelo olhar de Ukyo, que a examinava com cautela. A morena revira o rosto de forma rabugenta no momento em que isso acontece, ainda estava furiosa com a pizzaiola. Esta que, apesar disso, não tirou os olhos de Akane até que batesse o sino do intervalo. 

 

—-- 

 

Com o soar do alarme, Akane pegou seu almoço, ignorou suas amigas, tudo e todos, e foi para o telhado da escola onde pudesse ficar sozinha. Não queria ver ninguém. Não queria falar com ninguém. Só queria ficar em silêncio, se deixando ser consumida por suas mágoas e remorsos. 

Apoiava os braços na grade, e afogava o rosto ali, sentindo a brisa balançando o seu cabelo e seu vestido. O único som que ouvia era o do vento, e os distantes barulhos, dentre eles, chibatadas, bate-estaca de madeira, e uma risada feminina escandalosa, vindos da briga dos irmãos Kuno. Briga essa que, por incrível que pareça, ainda se estendia lá embaixo. Como eram filhos do diretor, eles tinham licença para brigarem na escola à vontade.  

Akane sequer encostou na quentinha que Kasumi preparou com tanto carinho, quando ficava triste assim, não conseguia comer direito. E por falar em comida... um cheiro de pizza se aproxima dela pouco a pouco, o que a fez ficar em alerta. 

— É, parece que a briga de vocês foi feia – Ukyo dispara, parando logo atrás dela com as mãos no bolso da calça e instigando o olhar furioso da menor. 

— O que é que você quer?!? Hein, Ukyo?!? 

— Ei, calma aí. Não precisa me engolir. 

— Veio aqui só pra me provocar?!? - rebate, rosnando ao se deparar com aquele semblante despreocupado da pizzaiola - Não acha que já fez o suficiente?!? 

— Akane... - Ukyo se aproxima da morena ainda mais, arcando com os riscos de ser arremessada para longe – Sabe... Eu não menti ontem. Eu realmente estou preocupada com você... - por mais absurdo que aquilo parecesse, Ukyo estava sendo sincera, embora, incoerente – Por isso... eu queria saber se você pensou bem sobre a nossa proposta. 

Akane torce o nariz e cerra o punho ao ouvir aquilo. Passou a noite tão triste e preocupada por causa de Ranma, que quase esqueceu-se do circo montado pela amazona e a pizzaiola. Elas que, na maior cara de pau, a ofereceram para um bando de desconhecidos para que ela não levasse o noivado com Ranma adiante. 

— Mais uma palavra sobre isso e eu te dou a surra que eu não te dei ontem!! - dispara, mas Ukyo não se intimida – Francamente, como vocês duas tem coragem de fazer aquilo e ainda quererem bancar as boazinhas?!? Vocês são só um bando de egoístas que estão tentando destruir minha vida!! 

— Tá me chamando de egoísta? - Ukyo franze o cenho, se inclinando para encarar a menor mais de perto - Você? Que estava usando o Ranma pra conseguir o que queria, quando ele merecia saber a verdade? 

... 

Ukyo cala Akane profundamente, a fazendo morder a própria língua. Depois de uma noite inteira chorando as pitangas por causa disso, ela não estava apta para discutir, pois no fundo, sentia-se exatamente como Ukyo a descreveu. 

Percebendo que deixou a menina sem graça e cabisbaixa, Ukyo se junta ao lado dela e apoia os braços na grade, admirando a vista de Nerima dali de cima. 

— Você não tem muita moral pra falar de nós, Akane – prossegue com seu discurso, estabelecendo dominância - Você diz que somos egoístas, mas... Você também só estava pensando em si mesma. 

— É completamente diferente...! - ela rebate, ainda cabisbaixa e quase chorosa – A minha família tá em jogo...! E... e... 

— Sabe... você não é a única que tem problemas – seu tom fica mais sério e incisivo – Eu fui abandonada quando eu era só uma criança... - o coração de Akane se aperta quando ela diz isso – Por culpa do idiota do pai do Ranma... Eu passei a minha vida inteira sendo hostilizada pelas pessoas da cidade, e até pela minha família... Esperando pelo dia em que o Ranma viesse me buscar... E esse dia nunca chegou. 

Ela olha para Akane, que conflitava entre sentir raiva e compaixão por Ukyo naquele momento. 

— E agora... Eu finalmente o encontrei....... Mas aí chegou você— a maior junta as sobrancelhas, estava, genuinamente, abrindo o seu coração - Tem-... Tem ideia do que é esperar pela pessoa que você ama por doze anos... pra no fim... entregar ele de bandeja pra outra garota? 

As duas se encaram em completo silêncio. Akane tinha muitas coisas que gostaria de dizer, mas sua fala foi completamente tomada. Diferente das outras pretendentes de Ranma, Akane conseguia sentir empatia com mais facilidade, e apesar de tudo o que a pizzaiola lhe fez, sentiu pena da garota ao ouvir seu desabafo. 

Ukyo suspira, contente ao perceber que conseguiu entrar na mente dela, por mais teimosa que Akane fosse. Vira-se, ficando de frente para a menor, a fitando de maneira um pouco tenra. 

— Se você casar com o Ranma... como é que EU fico? - dispara, alugando ainda mais espaço na consciência de Akane – Sei que você tem seus problemas... mas nós conseguimos uma solução, não é? Vamos pensar no que é justo pra todo mundo. 

Ao dizer aquilo, Akane franziu as sobrancelhas e demonstrou sinais de raiva, pois por mais que conseguisse se colocar no lugar da pizzaiola, ainda não tolerava toda aquela palhaçada que fizeram sem que a consultassem. Percebendo isso, Ukyo tenta remediá-la mais uma vez, pousando uma mão no ombro dela e sentindo sua tensão. 

— Akane... Eu realmente não tenho nada contra você... e espero que você consiga ajudar a sua família - se inclina na direção do ouvido de Akane, que não pestanejou, mas se arrepiou quando ela continuou falando no pé da sua orelha - ... mas eu não posso ME deixar de lado por causa disso. 

Dizendo isso, ela deu um tapinha no ombro da garota e se dirigiu para a porta do telhado, acenando e sorrindo despretensiosamente para uma Akane atordoada. 

— Pense bem sobre a nossa proposta. Pode ser a sua única chance. 

E se vai, deixando Akane sozinha mais uma vez, da mesma forma que ela gostaria de ter ficado desde o começo, assim não precisaria ter engolido aquele tanto de sapo. Abarrotada por mil e uma inseguranças e dúvidas sobre si mesma, a menina encosta as costas na grade e desliza até o chão, sentando e apoiando-se em seus joelhos. 

Era muito pra processar. Os problemas da sua família. A proposta das garotas. Os sentimentos de Ukyo. De Ranma. E sobretudo os seus. Talvez Ukyo estivesse certa. Talvez ela realmente só estivesse pensando em si mesma esse tempo todo, sem se preocupar com o que Ranma sentiria caso descobrisse suas reais intenções. Antes ela se preocupava em não dividir a responsabilidade com ele, com medo de que ele se casasse com ela unicamente por obrigação e pena. Mas... esconder tudo dele não foi justo. 

Talvez, no fim das contas, todos os envolvidos nessa bagunça fossem um bando de egoístas. 

 

—-- 

 

Quando Ranma abriu os olhos já devia ser por volta das onze e meia da manhã, só acordou por conta da claridade provocada pela brecha da cortina que repousou a luz do sol diretamente no seu olho, pois se dependesse da disposição, ele só levantaria depois do almoço e olhe lá. Assim como Akane, ele não conseguiu pregar o olho até que fosse quatro da manhã, felizmente havia a desculpa do seu aniversário, e graças a ele, conseguiu convencer seus pais ontem à noite a faltar a aula. 

Ir para a escola no dia do seu aniversário, ter uma aula chata de química e ser importunado não só por Kuno, que definitivamente estaria rondando pelo colégio na tentativa de arruinar o seu dia, mas também por suas pretendentes, incluindo Shampoo, Ukyo e talvez até Kodachi, que duelariam por sua atenção até que ele perdesse a paciência, por incrível que pareça, era o de menos. Ele não queria encarar Akane. Não queria vê-la. Não queria sequer ouvir falar do seu nome. 

Nem conseguiu disfarçar a sua imensa frustração quando chegou em casa ontem, correu para o seu quarto batendo porta e nem desceu para jantar. Passou boa parte da noite dando soquinhos no colchão, afogando incontáveis gritos de agonia no travesseiro, deixando escapar uma ou duas lágrimas, mas não se permitindo chorar o suficiente para botar tudo o que sentia pra fora. Ranma foi criado a partir do equívoco de que homens não devem chorar. Chorar o faria se sentir fraco, frágil, exposto, e derrotado por suas próprias emoções. Ele foi criado pra canalizar toda a sua tristeza e frustração de uma única forma: usando a força. E foi o que ele fez, esperou todos irem dormir, transformou-se em homem, foi para o quintal, e decapitou dezenas de bonecos de bambu com chutes e socos carregados de decepção. Só voltou para o seu quarto quando o primeiro raio de sol tocou o céu, deitou na cama e dormiu de exaustão. 

Agora, ao acordar, desejou voltar a dormir, pois as memórias do dia anterior o atingiram como um trem bala assim que a sua consciência acendeu. Não queria sentir aquela dor, não queria se lembrar de tudo o que descobriu, de tudo o que ela disse. De cada palavra que azedou o seu pobre coração, que antes estava tão feliz, achando que estava prestes a realizar um lindo sonho, sendo surpreendido com um amargo pesadelo.  

Não conseguia entendê-la. Não conseguia entender muita coisa. Como ela foi capaz de esconder aquilo dele? Por que não contou logo a verdade? Como ela pôde ser tão fria a ponto de usá-lo daquele jeito, brincando com seus sentimentos, não importa por qual motivo fosse? E pela forma como ele descobriu, coisa que só aconteceu por “acidente”, estava nítido que ela não tinha pretensão de contá-lo. Até quando ela pretendia sustentar essa mentira? 

Ranma podia ter seus defeitos, mas ele não merecia isso. Merecia a verdade, nem que fosse por uma questão de respeito. Já estava acostumado a não ser devidamente respeitado por suas pretendentes, que o enfiavam em todo tipo de trambicagem sem considerarem os reais desejos dele... Mas ele jamais esperou isso de Akane... E agora... 

“- Eu também não queria me casar com um garoto tão idiota, estúpido e egoísta!!” 

— Tsc! 

Ele esfregou a cara no travesseiro e tentou voltar a dormir, mas o peito estava tão pesado, e a mente tão dispersa, que era impossível. Rolou na cama umas cinco vezes até que ouvisse passos se aproximando no seu quarto, o fazendo olhar para a porta que é aberta lentamente pela sua mãe que tentava espiar pela brecha para se certificar de que ele estava dormindo, e quando o vê de olhos abertos, ela abre um largo sorriso e entra no quarto. 

Parabéns pra você... Nessa data querida...— ela canta, sorrindo toda serelepe e se acomodando na cama junto com ele, o envolvendo num abraço caloroso e maternal – Muitas felicidades... Muitos anos de vida... 

Nodoka pousa vários beijinhos na bochecha do filho, como se ainda fosse um garotinho de cinco anos, apesar de ser uma mulher rígida e tradicional, ela perdeu praticamente toda a infância dele, logo, ela se permitia ser mais afetuosa em datas como essa. Ranma estava tão atordoado que sequer se lembrou que era seu aniversário, por isso não esboçou nenhuma reação lá muito animadora ao receber os carinhos da mãe, que logo percebeu o desânimo do filho e ficou preocupada. 

— Ora filho, que cara é essa? Você estava tão animado pro seu aniversário... 

— Nhm... - grunhe, sentindo até um pouco de pena de sua mãe por não conseguir retribuir o carinho, este que fez muita falta durante toda a sua vida, mas nem fazendo muito esforço, ele conseguia sorrir - Não é nada não, mãe... 

— Aconteceu alguma coisa? - ela insiste - Você brigou com a Akane? 

O coração dele apertou e sua pálpebra tremeu, ele revira o rosto pra tentar disfarçar o que estava evidente. 

— É sério, não foi nada... 

— Hum... - ela fica muito desconfiada, mas percebe que aquilo não chegaria a lugar nenhum, então opta por tentar animá-lo. Senta-se na cama e abre um doce sorriso – Bom... Anime-se! Meu único e querido filho hoje completa dezoito anos! - Nodoka alisa o cabelo dele, e depois a bochecha, capturando o seu olhar, a permitindo admirar os belíssimos olhos negros meio azulados que ele herdou do pai - Você se tornou um homem tão bonito, meu filho... Eu gostaria tanto de tê-lo visto crescer... - Ranma enxerga os olhos dela ficando marejados, mas ela se contém - Mas vendo o homem que você se tornou... Tão másculo e honrado... Sei que o sacrifício valeu a pena! 

“Será mesmo?...” ele pensa consigo mesmo, imaginando que, talvez, as coisas seriam melhores se ele tivesse tido sua mãe por perto desde sempre. Talvez ele soubesse lidar melhor com os seus sentimentos se tivesse recebido o carinho dela quando mais precisou. E não estaria sentindo uma dor tão agonizante ao dar de cara com a sua primeira grande desilusão. Ele deixa um pouco de ar escapar pela boca quando ela se inclina para lhe dá um beijo na testa, e ao se reajustar, sorri mais uma vez. 

— Descanse mais um pouco e melhore essa cara! Hoje à noite vamos comemorar todos juntos! 

Ao dizer isso, ela ouve o som da campainha e sai do quarto, fechando a porta em seguida.  

“Todos juntos?”

Mais uma coisa que todas aquelas desavenças o fizeram esquecer: essa tal festinha. Estava tão borocoxô, tão baixo astral, que a vontade que sentia era de cancelar qualquer tipo de comemoração, mas sabia que se o fizesse, sua mãe ficaria triste. Seu pai também, mas que se dane ele. 

Apesar que... provavelmente os Tendo foram convidados, e isso sim era motivo o bastante para colocar seu egoísmo em primeiro lugar e pedir para cancelar a festa. Ranma começa a divagar sobre a possibilidade de fazer isso, mas antes que elaborasse uma desculpa, a sua porta abre mais uma vez e ele é fisgado pelo olhar de sua mãe. 

— Você tem visita, filho. 

— Hã? 

Confuso, Ranma se senta na cama e vê sua mãe abrindo mais a porta, dando espaço para uma figura parruda entrar. Eles trocam olhares desengonçados, depois a visita despoja sua mochila no chão e sorri para a mulher. 

— Querem que eu traga um lanchinho? 

— Não precisa, senhora Saotome – Ryoga agradece, e Nodoka se vai, fechando a porta e deixando os dois sozinhos. 

Ranma e Ryoga travam olhares incisivos acompanhados por um silêncio meio constrangedor. Ranma não fazia a menor ideia do que o trouxe ali, logo tão cedo, e justo naquele dia, ainda mais considerando a surra que deu nele ontem. O favor que Ryoga pediu à Mousse era para que ele o deixasse na casa de Ranma ao amanhecer, sabia que não conseguiria chegar lá sozinho, a menos que tentasse por pelo menos umas três semanas. 

O garoto de bandana solta ar pela boca, encosta na cômoda, pousando ali as suas mãos grandes e pesadas, e quebra o silêncio com um olhar difícil de decifrar: 

— Como você tá? 

Ranma junta as sobrancelhas com aquela pergunta tão inusitada. Tudo ali era inusitado, mas com certeza ouvir Ryoga perguntando como ele se sentia, era uma novidade. 

— Como você tá? - Ranma rebate, todo desconfiado, analisando aqueles curativos em volta do braço e rosto dele - Já se recuperou da surra que eu te dei ontem? Ou já quer revanche? 

— Não mude de assunto, Ranma. 

Ryoga mantinha-se incisivo e misterioso, não estava muito claro quais eram as intenções dele, e isso era agonizante demais para Ranma, que sempre conseguiu lê-lo tão claro quanto a água. 

— Que preocupação toda é essa? - o menor cruza os braços e encosta na parede, ainda sentado na cama – Ontem você se juntou com o babaca do Mousse pra brigar comigo do nada, e agora tá preocupado comigo? 

— É que... - Ryoga caminha até a cama dele, se senta e encosta na parede também, ficando lado a lado – Eu vi você e a Akane saindo do café gato ontem... E parecia que... Hum... 

Por mais que estivesse tentando, Ryoga sabia que era péssimo nisso, simplesmente não tinha como conduzir aquela conversa sem que parecesse muito suspeito. Mas precisava saber exatamente o que aconteceu no café gato antes que pudesse agir. Ele pôde ter um vislumbre do quão desajeitado era no olhar do garoto ao seu lado que levantou uma sobrancelha e torceu o nariz. 

— Deu pra me espionar agora? 

— Eu não espionei...  

— E como você sabe disso? 

— Eu só vi de longe... – se defende, ficando cabisbaixo. Estava muito envergonhado, pois nunca conseguiu lidar bem com a pressão, mas continuou tentando – Aconteceu alguma coisa? 

Ranma não era uma pessoa de se abrir, ainda mais com alguém que deliberadamente se autoproclama seu rival, mas havia algo estranhamente acolhedor na fala mansa de Ryoga, na sua postura retraída e no seu olhar inquieto. Ranma pretendia levar toda aquela tristeza e humilhação para o túmulo, mas tudo o que aconteceu estava pesado demais de se carregar sozinho. Ele era uma pessoa solitária, sempre acabava afastando os outros por não saber lidar muito bem com as pessoas. E Ryoga era a figura mais próxima do que ele conseguia chamar de amigo. 

O menor solta um ar cansado pela boca, desistindo de questionar toda aquela esquisitice, e apenas aproveita aquela estranha oportunidade que lhe ocorreu de colocar o que sentia para fora. 

— Uhum – confirma, apoiando o cotovelo no joelho, e o queixo no punho – Aconteceu sim... 

Ryoga sente alívio por ele ter dado uma brecha, e continua conduzindo aquela conversa de forma muito desengonçada. 

— E o que foi? 

O maior pergunta aquilo com um pouco de urgência, coisa que deixou Ranma um tanto desconfortável... mas que se dane. Precisava desabafar. 

— Ryoga... - Ranma suspira com muito peso e se ajusta na cama, fitando o rosto do rapaz mais de perto – Lembra do que você disse daquela vez... sobre a Akane estar tentando ser mais legal comigo? 

— ... Sim. 

— Sobre querer dar o próximo passo e blá blá blá? 

— Eu sei... 

— Bom... era tudo mentira. Tudo fingimento – uma gota de suor escorre da testa de Ryoga quando Ranma diz aquilo, carregado de muita fúria e frustração. O garoto de trança prossegue a sua história como se narrasse um péssimo filme que assistiu – Parece que... Tem uma dívida que a família dela tem que pagar, e pra isso se resolver, ela tem que casar com um herdeiro de outra academia de artes marciais... Pelo menos foi o que eu entendi. 

— Hum... 

— E bem... por isso ela tava sendo legal comigo – ele começa a se exaltar um pouco, rosnando – Por isso ela tava toda boazinha... Não brigava mais comigo, me chamava pra sair... E o idiota aqui achando que... ARGH!! - tomba para o lado e afoga a cara no travesseiro, o apertando com certa força - Sabe o que ela disse?! Que não queria se casar com um estúpido e egoísta! Mas que tava fazendo isso pela academia!! 

Nesse momento, nem mesmo Ryoga conseguiu evitar de sentir pena do garoto, se retraindo e espremendo os olhos como se tivesse visto uma batida de carro. 

— No fim das contas... ela só tava querendo agilizar esse casamento – Ranma tira a cara do travesseiro, deita a cabeça nele e começa a olhar para o teto, visualizando aquelas memórias ruins novamente – Eu sou muito otário mesmo pra achar que aquela... que ela poderia... Tsc! 

Dá um soquinho no colchão, tira o travesseiro de trás da cabeça e o espreme sobre o próprio rosto, abafando um urro raivoso. Ryoga o examina, sentindo uma mistura de coisas. Estava ali por uma razão, mas não imaginava que o incidente dentro do café gato teria tomado um rumo tão catártico, e que Akane colocaria tudo a perder da pior maneira possível. Alguma coisa aquelas duas cobras fizeram para que Akane perdesse as estribeiras assim na frente de Ranma, e pensar nisso o tirava do sério. 

Ranma se sentiu um pouco mais leve ao desabafar, mas pensava estar falando com alguém que, assim como ele, não poderia imaginar que Akane faria uma coisa dessas. O que ele esperava era uma reação de choque, misturada com pena e compaixão. Mas uma pulga saltou para atrás de sua orelha no momento em que Ryoga o perguntou, sem hesitar nem um pouco: 

— E... você vai ajudar ela, né? 

O menor tira o travesseiro da cara para encarar Ryoga com uma expressão confusa e um tanto incrédula. 

— Como é que é, Ryoga?! 

Ainda que lamentasse pelas coisas terem tomado esse rumo, Ryoga não poderia ir contra o seu propósito. Ele jurou proteger Akane, e ajudá-la a resolver esse problema, nem que ele morresse para isso.  

Okay, morrer seria muito drástico, mas colocá-la em primeiro plano, ainda que sentisse certa compaixão por Ranma naquele momento, também não era uma tarefa fácil. 

— Já que é disso que ela precisa pra salvar a família... - ele prossegue, e a cada palavra a expressão de Ranma vai ficando mais furiosa - ... é o que você deveria fazer. 

— Eu-.. Eu não tô acreditando no que eu tô ouvindo!?! Eu te contei TUDO isso, e é ISSO que você tem pra me dizer?!? 

— Ranma... presta atenção - ao contrário do menor, Ryoga mantinha o tom de voz manso e constante - Não é fácil... Mas é uma questão de honra! Ela teve seus motivos! Você é noivo dela! 

— ARGH! Eu sabia que não podia contar com você! Você SEMPRE fica do lado da Akane!! - rosna, apertando ainda mais o travesseiro, quase rasgando o tecido – Que saco! Ninguém liga pra mim! NINGUÉM se coloca no meu lugar! Depois EU que sou o egoísta!! 

Ryoga sente o peito apertar quando ele diz aquilo. Ranma parecia muito solitário, embora ele de fato fosse um egoísta 90% das vezes, nesse caso em específico ele realmente parecia apenas mais uma vítima das circunstâncias. Por mais difícil que fosse, Ryoga conseguia se colocar em seu lugar sim. Mas a sua preocupação por Akane inevitavelmente gritava mais alto. 

— Ninguém queria que as coisas fossem assim, Ranma... - tenta acalmá-lo, pois do jeito que as coisas estavam, seria difícil levar essa conversa pra onde Ryoga queria – Acredite em mim, a Akane não queria te magoar... 

— HÁ! Até parece! - debocha, cruzando os braços e revirando os olhos – Se esse fosse o caso, ela não teria me escondido tudo isso! 

— Já parou pra pensar que ela te escondeu justamente pra você não sofrer?! - rebate, fazendo o menor engolir seco – Acorda, Ranma! Ela já está tendo que lidar com muita coisa sozinha! Se ela não te contou, era porque ela não queria dividir todo esse peso com você!! 

Ryoga disse aquilo com chamas nos olhos, e isso não só fez o menor engolir seco, como o deixou intrigado. 

— Tá sabendo demais pro meu gosto! Eu ACABEI de te contar essa história e você já tá supondo coisas sobre a Akane pra ela sair de vítima! 

Dessa vez foi Ranma quem o calou, e quando o fez, ele percebeu que Ryoga fez uma expressão de desespero, como quem acaba de ser pego no pulo. Diferente do menino porco, Ranma era esperto. Muito esperto. 

— Pera aí... - Ranma se senta na cama, se inclina aproxima o rosto do de Ryoga para examiná-lo mais de perto, o mesmo retraiu-se assim que ele o fez – Ryoga... Você sabia?!? 

O silêncio de Ryoga respondeu por ele mesmo, e escancarou mais ainda quando ele desviou o olhar e ficou cabisbaixo. Ranma sente mais uma onda de fúria tomar conta de seu corpo, e precisa se segurar para não nocauteá-lo como fez ontem. 

— Era só o que me faltava!! É sério?!? - o garoto de trança se altera novamente, deixando o maior envergonhado – A Shampoo sabia! A Ukyo sabia! E agora até VOCÊ?!? Só o OTÁRIO aqui não sabia?!?  - resmungava tão alto que até chegava a cuspir – Como é que todo mundo sabia e eu não?!? A Akane te contou?!? 

— Não seja burro, Ranma! É claro que a Akane não me contou! - se defende, mas se retrai logo em seguida – Ela... contou... pro P-chan... 

— Ah, CLARO!! Como eu não tinha pensado nisso?!? - reclama, e a cada informação nova, mais furioso Ranma ficava – Eu pensei que você tinha parado com essa palhaçada de P-chan!! E ainda fala como se tivesse alguma diferença!! 

— Claro que tem diferença!! 

— Pra MIM não tem!! - fica tão exaltado que se levanta, no ímpeto, e continua suas reclamações enquanto batia perna em círculos pelo quarto – Agora tudo faz sentido!! É por isso que VOCÊ também ficou esquisito! Era tudo um complô seu e da Akane pra me fazer de idiota! Mas é claro!! Você sempre foi contra esse noivado!! Foi por isso que você DE REPENTE parecia querer que a gente ficasse junto!! 

— É, é isso mesmo!! 

Na mesma velocidade que Ranma se levantou, Ryoga fez o mesmo e caminhou em sua direção, puxando a gola da camisa do menor e o trazendo para mais perto dele, para que pudesse intimidá-lo olhando bem no fundo de seus olhos. 

— E eu espero que você faça a coisa certa ao menos uma vez, se tiver amor à vida!! 

— Há! Isso é uma ameaça?! - Ranma debocha dele. 

— Chame do que quiser! - Ryoga puxa mais a sua gola, diminuindo a distância entre seus rostos e o encarando bem de perto, quase encostando os narizes. Os olhos negros de Ranma travam uma batalha com os olhos castanho mel de Ryoga, soltavam faíscas, ferro, e fogo, tão tenso quanto qualquer outra luta corpo a corpo que eles já tiveram – Olha Ranma... Eu entendo que esteja chateado... Mas a sua situação está longe de ser a mais difícil! A Akane está fazendo o que é preciso pra salvar a família! E ela precisa de você!! 

Ranma engole seco enquanto aquelas palavras iam adentrando sua mente, ele tinha mil e uma reclamações na ponta da língua, abarrotado por todas as desilusões que Akane lhe causou, mas Ryoga não deu espaço para ele falar, o calando inclusive com seus olhos claros semicerrados pela quase monocelha, estes hipnotizaram Ranma com sua linda cor. 

— Ninguém queria que as coisas fossem desse jeito – Ryoga solta a gola da blusa de Ranma, mas não diminui a distância entre eles, pelo contrário, o intimidava tão de perto que parecia que estava prestes a devorá-lo – Mas a Akane não merece passar por isso... E você sabe... 

Aquilo ecoa na mente do garoto de trança, que dá um passo pra trás, e quando o faz, Ryoga dá para frente. Eles repetem isso até que Ranma encontre a parede com suas costas, e fique completamente encurralado pelo maior, esquentando ainda mais o clima de tensão. 

— Então... Se você sente algum carinho por ela, e por aquela família... faça a coisa certa – percebendo que, pela primeira vez na vida, domou seu rival e entrou na mente dele, Ryoga inclina ainda mais o rosto, a um milímetro de roçar a testa e o nariz nele, com a cara mais feia e ameaçadora do mundo – Por que se você não fizer... eu farei com que você faça!! Tá me entendendo?! 

Ryoga nem precisou aumentar o tom de voz, falou aquilo aos sussurros com os dentes cerrados, nunca antes tão intimidador e sério, por mais que sempre tivesse sido melodramático. Ranma cerra as sobrancelhas para o rapaz à meio palmo de distância, calado não só por ele, mas também pelos seus próprios sentimentos conflitantes. 

Era difícil se colocar no lugar de Akane, que tanto o magoou com suas mentiras e comentários ácidos a seu respeito, por isso, ver Ryoga ali a defendendo com unhas e dentes o tirava do sério. No entanto... não dava pra dizer que aquilo não estava começando a subir à sua cabeça. Pensar que, se ele não se casasse com a Akane, os Tendo perderiam tudo, era... sufocante, no mínimo. Ainda que de maneira torta, Ryoga conseguiu plantar essa sementinha na cabeça do rival, que se arrepiava ao ter o garoto de bandana perto o suficiente para sentir a respiração dele lhe tocando as bochechas. 

Mas Ranma ainda era uma pessoa orgulhosa e egocêntrica, por isso, estar nessa posição vulnerável, literalmente encurralado contra a parede, por tanto tempo, o incomodava. 

— Oh, o que é aquilo ali? - Ranma aponta para algum lugar no chão. 

— O quê? 

POW! 

Ryoga olha para onde ele apontou de imediato, abaixando a guarda, e quando o faz, recebe um cascudo bem dado na cabeça num ataque surpresa, ficando de joelhos e perdendo a compostura. 

— Ai, ai, ai! Por que fez isso, seu idiota?! 

— Deu vontade - desdenha do rapaz agora de joelhos, voltando a estabelecer dominância sobre ele como sempre fez – Ryoga, acho que você esqueceu de uma coisa – Ranma se inclina para encará-lo na mesma distância que o maior estabeleceu sobre ele, o intimidando na mesma proporção, e agora, em vantagem – Eu não tenho medo de você. 

Ryoga engole seco, amaldiçoando a si mesmo por nunca conseguir domar Ranma como gostaria. 

— Então não importa o que você diga – o garoto de trança prossegue, sem diminuir a distância entre seus rostos – eu vou fazer o que EU quiser. Tá?! 

Ranma solta faísca pelos olhos, tão ríspido que fez o rival morder a própria língua. Ryoga examina o menor o arrodeando e repousando de novo na própria cama, todo despojado e com a cara mais emburrada do mundo.  

Ranma estava fulo da vida. Como aquele idiota tinha coragem de ir até a casa dele, ignorar seus sentimentos, e tentar coagi-lo daquele jeito? Ainda mais no dia de hoje? Era um babaca mesmo. Não era à toa que eram rivais. Ainda que Akane cometesse um massacre à sangue frio, Ryoga permaneceria do lado dela, e isso era irritante. 

— Então você não se importa com o que aconteça com a Akane ou os Tendo? 

A pergunta de Ryoga disparou contra o peito de Ranma tão afiada quanto uma lâmina. Ryoga viu a expressão de Ranma ir de furiosa à aflita em questão de segundos, e isso o fez criar algum tipo de esperança. 

— Eu... - Ranma balbucia - ... isso não é da sua conta. 

Ainda que dissesse isso, ficou claro que ele estava reconsiderando, afinal apesar que tentasse fingir indiferença, o seu olhar esbanjava preocupação e insegurança. Não devia ser fácil estar na posição de Ranma, pois agora, mesmo que não quisesse, ele sabia que uma família inteira dependia dele. Não só Akane, mas Nabiki, Kasumi, e Soun, pessoas que sempre o acolheram como parte deles, vê-los passar por isso era de partir o coração. Mas... ainda estava muito magoado com Akane por ter sido usado dessa maneira, então os sentimentos conflitavam bastante. 

Ryoga suspira cansado, se dando por vencido, pois ficou claro que ali, naquele momento, não havia mais nada a se fazer, só lhe restava aguardar para ver como Ranma agiria dali pra frente. Se levanta, vai até a sua mochila, e busca algo lá dentro. 

— Bem... antes que eu me esqueça - ele chama a atenção de Ranma, que se senta na cama quando Ryoga joga um embrulho em cima da sua barriga de forma brusca – Feliz aniversário. 

“... Hã?” 

Ranma olha de forma atônita para Ryoga, que voltou a se encostar na cômoda de braços cruzados, cabisbaixo e revirando o rosto levemente vermelho. Nem mesmo ele acreditava que estava fazendo isso, e não queria dar de cara com o olhar convencido de Ranma ao receber esse gracejo, embora, o garoto de trança estava muito mais confuso do que tudo, já que aquilo foi tremendamente inusitado. 

“Ele... ele lembrou?” 

Não consegue evitar de ficar um tanto tocado, Ranma sabia o dia do aniversário de Ryoga, mas não imaginava que ele lembrava do seu também, e lá no fundo, no momento em que Ryoga entrou no seu quarto, desejou que a visita fosse por esse motivo. Olha para o embrulho em seu colo, tinha um formato meio inconsistente e uma textura meio “fofa”, desmancha o laço e abre a fenda, puxando dali um... pão de curry? 

Abre ainda mais o embrulho e encontra uma variedade de pães, na verdade. Dentre eles, pão doce, pão de croquete, pão de melão, sanduíche de carne, pão de batata e pão de algas. Várias interrogações brotam em cima de Ranma naquele momento. O que Ryoga tinha na cabeça pra lhe dar um monte de pães como presente de-...? 

Mas foi aí... que ele se lembrou. 

Quando Ranma e Ryoga estudavam na mesma escola no fundamental, eles iniciaram uma rivalidade por conta da briga pelos pães na cantina. Por Ranma sempre conseguir pegar o lanche antes dele, Ryoga passou a ficar obcecado em derrotá-lo, e por isso o seguiu até a China, e dali em diante, nunca mais saíram da vida um do outro. Era surpreendente que Ryoga lembrasse de algo tão específico quanto o sabor de cada pãozinho que Ranma roubou dele na escola, mas mais ainda que, numa reviravolta surpreendente do destino, ele estivesse ali, encabulado e tímido, lhe dando aquilo de presente quase que de maneira simbólica. 

Os olhos de Ranma brilham perante aquela demonstração torta e engraçada de afeto, que arrancou o famigerado sorriso convencido dele, seguido de uma risadinha que fez Ryoga torcer o nariz em vergonha. 

— Só você mesmo, Ryoga – ele brinca – vir na minha casa, no meu aniversário, me ameaçar, pra depois me dar isso aqui de presente. 

— Cala a boca – Ryoga resmunga, com a cara emburrada e o rosto quente, amaldiçoando a si mesmo por não ter resistido em comprar esses pãezinhos no momento em que passou na frente da padaria, foi mais forte que ele - Você nem merece. 

— Sei. 

Ranma ri mais um pouquinho da vergonha de Ryoga e dá uma mordiscada no pão de curry, estava uma delícia. Percebendo que não havia mais motivos para ficar ali e aturar Ranma se achando a última bolacha do pacote por ter ganhado um presente dele, com a mesma cara que ele fazia quando vencia uma luta e se achava o maioral, o maior pega a sua mochila e se direciona para a porta. 

— Bom... aproveite o dia. 

— Quê? Pra onde vai? 

— Eu já disse o que eu tinha pra falar – Ryoga pega na maçaneta. 

— Ei, não - Ranma o chama, meio manhoso – Fica aqui. 

Ryoga levanta uma sobrancelha para Ranma, que fazia cara de cachorrinho sem dono. 

— Hã? Pra quê? 

— Como assim pra quê? É meu aniversário e eu quero ficar com você – os olhos de Ryoga brilham quando ele diz aquilo de maneira tão acolhedora - Além disso, eu sei que você não tem pra onde ir. 

De fato, ele não tinha, mas detestava ouvir aquilo de Ranma de forma tão debochada. 

— Pra quê? Pra você ficar enchendo o meu saco? 

— Só um pouquinho – brinca, fazendo o maior emburrar ainda mais a cara – E também, vai ter uma festinha aqui mais tarde, vai ter comida boa. 

Ranma conhecia Ryoga como a palma de sua mão, e sabia que ele não rejeitaria uma boa comida. Da mesma forma que ergueu o embrulho oferecendo um pãozinho para o menino porco, sabendo que ele não iria recusar. Previsível como sempre, Ryoga cede e caminha até a cama de Ranma, sentando-se ao seu lado e lanchando o seu próprio presente junto com ele. 

Apesar daquela visita ter se iniciado de maneira não muito amistosa, eles agora partilhavam de um momento íntimo e aconchegante, aproveitando a companhia um do outro como muito pouco faziam. Estava com raiva de Ryoga? Sim, estava. Mas aquele simples e raro gesto de carinho fez Ranma amolecer. Eles tinham uma relação estranha e complexa, mas era nítido nas entrelinhas que se gostavam muito, mais do que eles mesmos poderiam imaginar. Ranma se estica na cama até a sua cômoda, pegando o seu walkman junto ao fone de ouvido, dessa vez não colocou Madonna, óbvio, mas U2 era uma boa pedida. Ajusta um lado do fone de ouvido na orelha de Ryoga, e outro na sua, repetindo a cena que teve com Akane semanas atrás, pintando um clima bem agradável. 

Eles aproveitavam a música enquanto comiam os pãezinhos, que anos atrás causaram tanto alvoroço, juntos. Sentiram tanta paz, que até se permitiram se olhar e sorrir um para o outro. 

— Como se sente com dezoito anos? 

— Hum... velho. 

E riem. 

 

—-- 

 

— Senhora Saotome, mas que surpresa agradável - Cologne dá uma tragada no seu cachimbo, sorrindo contra a linha telefônica, e atraindo o olhar de Mousse, muito curioso por ouvir o nome que ela disse – A que devo a honra dessa ligação? 

Bom, como já deve saber, hoje é aniversário do meu Ranma— Nodoka a respondia do outro lado da linha com uma voz muito simpática - E mais tarde nós vamos fazer uma festinha. Pensei em convidar os amiguinhos do Ranma para virem. 

— Ah, mas que ótima ideia! 

A senhora também está convidada! 

— Infelizmente preciso cuidar do restaurante – a velha lamenta, ainda sorrindo – Mas pode contar com a presença da minha Shampoo. 

O rapazinho de óculos engraçado também pode vir? 

Cologne faz um olhar azedo para Mousse, que a encarava soltando faísca dos olhos. Detestava a ideia de deixá-lo ir, já que muito provavelmente ele atrapalharia qualquer avanço de Shampoo para com Ranma. 

— O Mousse é um rapaz ocupado – ela mente, vendo que aborreceu o rapaz - Não acho que ele vai p- 

Num movimento brusco, Mousse arranca o telefone das mãos da senhora e põe no seu ouvido, deixando a velha embasbacada. 

— Qual a situação, senhora Saotome?! 

Oh... Quem fala? 

— Sou eu, Mousse – diz, sorrindo, embora Cologne estivesse lhe dando cascudos na cabeça com seu cajado – Qual é o convite? 

Ah... Bom, estava querendo convidar todos vocês para a festinha de aniversário do Ranma. Mas a senhora amazona disse que você é um rapaz ocupado, e- 

— Eu vou! - a interrompe, abruptamente – Pode contar comigo! Estarei lá! 

Cologne revira os olhos, irritada. 

Ah... Que bom! Esperamos vocês hoje mais tarde! 

— Tudo bem! 

Até mais. 

— Até! 

E põe o telefone no gancho, lançando um olhar furioso para a velha que tentou deixá-lo de fora da festa. 

— Você tem mesmo que ser tão intrometido? - resmunga a velha, fumando mais um pouco do seu cachimbo. 

— Hunf! 

Ele vira-se de costas e volta ao que estava fazendo, no caso, varrendo o chão. Shampoo aparece, toda serelepe e distraída. 

— Shampoo, querida – Cologne a chama - Você foi convidada para a festa do genro mais tarde. 

De repente, os olhos da menina brilham e o seu rosto fica corado de emoção. 

— Aiya! É sério?! - ela salta de alegria – Ranma convidar Shampoo?! 

— Na verdade, foi a mãe dele – Mousse dispara, como um balde de água fria – E eu também vou. 

— Hunf! 

Ela rosna, um tanto decepcionada. Mas nem perde tempo ficando com raiva, pois embora já pretendesse visitar Ranma mais tarde, agora se sentia ainda mais animada para vê-lo, já que foi formalmente convidada. 

— Shampoo já saber o que dar de presente pra Ranma! 

E volta pelo caminho de onde veio, sorrindo maliciosamente com a língua pra fora, cheia de traquinagens na cabeça. 

— Hi hi hi! 

 

—-- 

 

Na pizzaria Ucchan, pouco depois de Ukyo voltar da aula, o telefone também toca. A chefe o atende e fica surpresa ao escutar a voz da mãe de Ranma. 

É da pizzaria Ucchan? 

— Ah... Sim, aqui é a Ukyo – responde. 

Ukyo, querida! Aqui é a Nodoka Saotome, mãe do Ranma! Era com você mesmo que eu queria falar— diz, docemente – Mais tarde nós vamos fazer uma festinha para comemorar o aniversário do Ranma. Não gostaria de vir? 

Os olhos da menina brilham. Imagina, ser formalmente convidada para a festa do seu noivo pela sua futura sogra? Era bom demais pra ser verdade. Animada, ela diz, prontamente: 

— Mas é claro! Pode contar comigo! - nessa hora, avista Konatsu se aproximando, curiosa – Eu... posso levar uma amiga também? 

Claro, querida. 

— Então combinado. 

Perfeito! Até mais tarde! 

— Até! 

E desliga, muito animada. Uma interrogação brota em cima da cabeça de Konatsu, que ficou ainda mais curiosa ao ouvir Ukyo falar sobre levar uma amiga para sabe-se lá o quê. 

— Konatsu, temos compromisso! - anuncia, toda serelepe, caminhando até a chapa - É aniversário do Ranma docinho, e mais tarde vamos pra casa dele! 

— Ah, que legal! - a garçonete também se anima – O que será que eu vou vestir? 

— Depois você pensa nisso – Ukyo arregaça as mangas e põe a chapa pra esquentar – Vem! Vamos preparar a melhor pizza já feita na história!! 

 

—-- 

 

No momento em que Akane chegou em casa, foi direto para o seu quarto e se jogou na cama, seu plano era repetir exatamente o que fez no dia anterior. Deitar, chorar até não poder mais, e só levantar no dia seguinte. 

Não conseguia sequer se distrair. Só conseguia pensar em Ranma, e agora, nas coisas que Ukyo lhe disse. O pior de tudo era saber que uma hora ela teria que reagir, teria que enfrentar Ranma, e aceitar ser odiada por ele pelo resto da vida. E depois disso... ainda tinha um grande problema pra resolver. No caso, já que o plano foi pro beleléu, precisava pensar numa outra forma de ajudar sua família. Seria humilhante demais ter de sucumbir à proposta de Shampoo e Ukyo. Mas... se não houvesse outra alternativa, então... 

TOC-TOC-TOC. 

Ela escuta três batidas na sua porta, olhando em sua direção, dando de cara com Kasumi se apoiando na maçaneta. 

— Akane, mais tarde nós vamos pra casa dos Saotome – diz, docemente, sem ter noção do quanto aquilo doeria no peito da irmã - Comece a se arrumar lá perto das seis. 

Droga... é mesmo. Tinha essa festinha na casa do Ranma, e ela nem se lembrava mais. Obviamente ela não estava no clima para tal, muito menos tinha coragem de vê-lo justo hoje, justo depois de ontem. Fez uma cara feia, quase chorosa, e revirou o rosto na cama. 

— Eu não quero ir... Podem ir sem mim... 

— Quê? Por quê? 

Akane não respondeu, e percebendo que tinha algo errado, Kasumi adentra o quarto e fecha a porta. Preocupada, ela se senta na cama e fita a irmã com ternura. 

— O que foi, Akane? Aconteceu alguma coisa? 

— Não foi nada... - ela mente, mas ficou nítido que ela estava quase chorando. 

— Akane... - Kasumi começa a alisar o cabelo dela de maneira muito carinhosa e acolhedora – O que houve?... Vocês brigaram de novo?... 

Antes tivesse sido uma briguinha qualquer. Kasumi nunca viu a irmã abalada daquele jeito antes, justo ela, que sempre tentou parecer uma rocha. Sabia que Akane tinha dificuldade de se abrir, então suspirou, e continuou alisando o cabelo dela. 

— Vamos Akane, por favor... - ela tenta animar a menor - Vocês brigam, mas... sempre se resolvem. 

— Kasumi... - ela finalmente tem coragem de olhar para a mais velha, exibindo olhos marejados e uma cara pidona - É sério, eu não quero ir... 

— Vamos, o papai não vai querer ir sem você... E ele tá tão animado – pronto, apelou pro pai, agora não tinha mais escapatória - Além disso... Vai ser divertido! Eu preparei umas comidinhas bem gostosas pra levar! Caso você não se sinta confortável lá... aí a gente volta mais cedo. 

Encurralada, Akane só queria um precipício para se atirar. Mas era impossível dizer não pra Kasumi, quando ela pedia algo com tanto jeitinho. Ainda que muito contrariada, e desesperada com a ideia de encarar Ranma... ela apenas suspira e assente. 

— Obrigada, Akane. 

Se inclina e dá um beijo na bochecha de Akane, se levantando e indo para a porta. 

— Fique bem bonita, viu? 

E se vai, deixando Akane sozinha mais uma vez, à beira de um colapso nervoso. Se ao menos Kasumi não fosse tão boazinha e querida, seria mais fácil de recusar o pedido dela. Mas agora... não tinha mais pra onde correr. Veria Ranma. Veria o ódio nos olhos dele. Veria com seus próprios olhos tudo o que ela batalhou para conquistar desmoronando. E pior, tudo não passava de uma mera consequência de seus atos. 

Afoga o rosto no travesseiro, abafando um urro de frustração. Será que ela merecia mesmo todo esse castigo? 

 

—-- 

 

Lá por volta das seis e meia, Nodoka chamou Ranma e Ryoga para descerem. Eles passaram o dia todo ouvindo música e jogando no novo vídeo game que Ranma ganhou de aniversário, e por incrível que pareça, depois da conversa tensa que tiveram mais cedo, eles não brigaram mais nenhuma vez. Era um milagre de aniversário. 

Ao chegarem no andar de baixo, se depararam com uma decoração singela e amigável na sala, alguns quitutes de festa na mesa, e o caraoquê instalado na televisão. Genma já estava abocanhando a comida, enquanto Nodoka ainda pendurava algumas bandeiras coloridas na parede. Quando ela viu os meninos, sorriu. 

— Daqui a pouco os convidados começam a chegar – ela diz, caminhando até eles e apertando a bochecha dos dois – Que meninos mais lindos! 

— Ai mãe, para! - Ranma pede, envergonhado, tão vermelho quanto o amigo risonho. 

— O que fizeram trancados no quarto o dia todo? 

— Testando o game boy – responde – Valeu mesmo, mãe! 

— Tome muito cuidado com ele porque foi muito caro! Eu vou pagar até o final do ano... 

— Preocupa não. 

DING-DONG! 

— Ah, chegaram! - Nodoka se dispersa – Ranma, vá receber seus convidados, por favor! 

Naquele momento, a primeira coisa que se passa na cabeça de Ranma é que seriam os Tendo, por isso sentiu o estômago embrulhar. Desejou, por tudo que era mais sagrado, para que conseguisse conter as suas emoções diante a presença de Akane. Mas, quando ele criou coragem e foi até a porta, se surpreendeu ao encontrar Ukyo, acompanhada de Konatsu. 

— Feliz aniversário, Ranma docinho! - Ukyo o cumprimenta, muito encantadora. 

— Feliz aniversário! - foi a vez de Konatsu – Obrigada pelo convite! 

— Ué - ele indaga – Não sabia que vocês viriam. 

— Sua mãe nos convidou – Ukyo responde. Ranma dá espaço para as duas garotas entrarem, elas estavam lindas, Konatsu usava um curto vestido preto de gola alta e mangas cumpridas, já Ukyo usava um macacão roxo tomara-que-caia, uma roupa que valorizava bastante o seu enorme par de seios, que dessa vez, ela optou por não enfaixar. Queria estar linda, irresistível, sexy - Boa noite a todos! 

Ela cumprimenta os que estavam na sala, e recebe uma resposta de todos, exceto Ryoga, que fechou a cara no momento em que ela entrou. Os dois se olham, ela fica confusa ao ver a cara feia que ele fez, mas não se deixou aborrecer por isso. 

Konatsu a seguiu logo atrás, e se sentou na almofada de frente para a mesinha, esfomeada como era, começou a discretamente atacar os doces. Já Ukyo, procurou ficar perto de Ranma a todo momento. 

— E aí docinho, tá gostando de ser maior de idade? - ela pergunta, toda manhosa. 

— Ainda não senti nenhuma diferença - ele brinca – Talvez depois da meia noite. 

Ele a faz rir, Ukyo encaracolava uma mecha de seu cabelo com o dedo enquanto ajustava o seu decote de maneira sugestiva, tentando atrair o olhar de Ranma para aquela belíssima vista. Só um bobo para não perceber que ela estava flertando com ele, até mesmo Ryoga, o maior bobo de todos, percebeu, e a julgava de longe. Agora que Akane supostamente saiu de campo, ela precisava partir para o ataque. 

— E os presentes, hein? 

— Meus pais me deram um game boy... e só - responde, cruzando os braços e fazendo uma cara sapeca – Inclusive, cadê a pizza que você disse que eu ia ganhar? 

— Bom... 

Ukyo segurava uma sacola, dentro dela tinha uma caixa consideravelmente grande, e Ranma não tirou os olhos dela desde que a pizzaiola entrou na casa. Estava bem mais interessado nisso do que na aparência dela, na verdade. Mas antes que ela pudesse entregá-lo, eles ouvem: 

DING-DONG! 

— Deixa eu atender. 

Ranma se vira de costas e se dirige à porta mais uma vez, novamente sentindo um arrepio no corpo todo ao pensar que daria de cara com os Tendo. No entanto, foi surpreendido por um abraço de uma figura baixinha que pulou no seu pescoço e envolveu as pernas na sua cintura. 

— Ai Ren, feliz aniversário!! 

Shampoo atirou vários beijinhos contra o rosto de Ranma, que mal teve tempo para processar toda aquela euforia, só volta a si quando ela mira em sua boca, e ele consegue virar o rosto antes que ela o beije. 

— S-Shampoo! Calma aí! 

Ele fica ainda mais nervoso quando repara que, atrás dela, tinha uma figura furiosa assistindo aquela cena, exalando uma aura macabra e potencialmente agressiva. Ranma segura Shampoo pela cintura e a suspende no ar, como uma criança, a pousando de volta no chão delicadamente. Mousse vai até ele e pede por um aperto de mão, que Ranma se arrependeu amargamente de aceitar, pois o amazona o apertou com uma força capaz de quebrar os seus ossos. 

Feliz aniversário, Ranma Saotome...!! 

— O-... Obrigado, Mousse... - suplica, soltando a própria mão. 

Os amazonas adentram, e por sinal, estavam bem bonitos. Mousse usava um traje chinês branco de mangas compridas, nele tinha uma estampa de losangos azuis espalhados. Já Shampoo, que nunca passa despercebida, colocou seu melhor perfume, fez uma linda maquiagem, e vestiu-se como uma princesa, um lindo vestido amarelo longo com uma fenda nas pernas, desejando que estas atraíssem o olhar de Ranma durante toda a noite. 

Mas a menina de cabelos roxos freia em surpresa ao dar de cara com a pizzaiola, tão bonita quanto ela, que também ficou em choque ao encontrar Shampoo. 

— Ah... você veio – Ukyo resmunga, meio decepcionada, meio reclamona. 

— Shampoo não sabia que Ukyo vir... - ela também resmunga, com a exata reação. 

Depois do ocorrido de ontem, a aliança feminina, até segunda ordem, chegou ao fim. Já estava acordado que, no momento em que elas tirassem Akane da jogada, seguiriam caminhos opostos e voltariam ao mesmo lugar de antes. Afinal, elas ainda eram noivas do mesmo cara, só uniram forças para derrotar a inimiga mais forte. Shampoo e Ukyo voltaram a ser, oficialmente, rivais. 

As duas meninas se encaram com frieza, soltando faísca pelos olhos, como se estivessem em um ringue. Era duro admitirem que ambas estavam belíssimas, por isso, teriam de trabalhar dobrado para fisgarem a atenção de Ranma naquela noite. 

E por falar nele, ao vê-lo se sentar no centro da mesa, se dispersam e se juntam a ele, uma em cada lado. 

— Ai Ren, Shampoo ter presente pra você! 

A amazona, afobada como sempre, foi mais rápida. Colocou uma caixinha cor-de-rosa na mesa, bem na frente de Ranma, que ficou todo desconfiado, afinal, era um presente de Shampoo. Ukyo bufa por ter ficado em segundo plano, assistindo seu noivo abrir o presente da rival antes do dela. 

Quando o faz, encontra um frasco de perfume um tanto peculiar, o examinando com cautela. 

— Você gostar, meu Ai Ren? Usar todo dia pra ficar bem cheiroso! 

Ranma, que não era bobo e nem nada, procurou algum adesivo de advertência, e quando acha, descolou do frasco, deixando Shampoo desesperada. 

— Aiya! Não fazer isso! 

— “Perfume do amor” - ele começa a ler, de forma bem impaciente, o verso do adesivo, pegando a menina no pulo - “Para conquistar o homem amado, despeje uma mecha do seu cabelo no frasco e, assim que ele usar o perfume, se apaixonará perdidamente por você.” 

Olha furioso para Shampoo, que ri cinicamente enquanto desviava o olhar, nem um pouco arrependida de pelo menos ter tentado. E Ranma, apesar de com raiva, não estava nem um pouco surpreso. Seria estranho se ela NÃO aprontasse uma dessa. 

— Você não desiste mesmo, né? 

— Hi hi hi. 

— Bom, minha vez agora! - Ukyo arrasta a sua caixa na mesa, empurrando a de Shampoo para o lado, e deixando a amazona furiosa – Aqui, meu docinho! 

Ranma fica um pouco mais empolgado para este, afinal, Ukyo não era muito chegada em feitiçaria, e já sabia do que se tratava. Abre a caixa e encontra uma belíssima pizza de legumes, confeitada com cogumelos, brócolis, e uma escrita com molho picante que dizia “Feliz aniversário, Ranma!”. Os olhos do rapaz brilham. 

— Ahhh, que delícia! - Ranma lambe os beiços, arranca um pedaço da pizza e já a abocanha - Tá incrível! Você é a melhor, Ukyo! 

— Imagina, meu docinho – ela dispara um olhar debochado para a amazona raivosa, piscando para ela, como se tivesse acabado de fazer um ponto no placar - É um prazer te agradar. 

— Ra-... Ranma! - num movimento desesperado, a amazona tenta chamar a atenção dele, arrastando mais uma caixinha na mesa, e empurrando a pizza de Ukyo – Shampoo também preparar lanchinho de aniversário! 

— Hunf! E qual foi o feitiço que você colocou nesse aí? - ele reclama, ainda de boca cheia. 

— Não ter feitiço nenhum, Shampoo jurar! - ela abre a caixinha, revelando alguns bolinhos de feijão caseiros, puxa um e tenta enfiar na boca do rapaz – Ranma, diga “aaaahh”. 

— Ei, sai fora! - Ukyo rosna, empurrando a caixa dela com a sua – O Ranma tá comendo a minha pizza agora! 

— Mas agora ele comer bolinho de Shampoo! - rebate, afastando o presente de Ukyo com o seu mais uma vez. 

As duas ficam nesse embate, uma empurrando o presente da outra e deixando todos ao redor desconfortáveis, especialmente Ranma, que se encontrava bem no centro dessa bagunça. Fazia tempos que isso não acontecia, e agora ele lembrava-se do quanto aquilo não fazia falta nenhuma. 

Mousse sentou-se ao lado de Konatsu, que assistia a cena deprimente enquanto se empanturrava de doces, eles trocam olhares tristes e suspiram, se solidarizando um com o outro ao verem suas amadas disputando a atenção de outra pessoa. Ranma era mesmo um felizardo. 

DING-DONG! 

— Eu atendo – Nodoka anuncia – Devem ser os Tendo! 

Dizendo isso, Ranma se arrepia e seu olhar fica distante, a briga entre suas pretendentes se torna um mero zumbido, e ele só consegue pensar em uma coisa: será que Akane veio? 

Ele ouve algumas vozes, dentre elas a de Soun, Kasumi e Nabiki. Não demorou muito para que eles entrassem um atrás do outro, Soun foi o primeiro a se aproximar do garoto e dizer: 

— Olha ele aí! - o cumprimenta, todo sorridente, estendendo a mão para um aperto – Feliz aniversário, filho! 

— Valeu, tio! - ele agradece, correspondendo o aperto de mão, mas sem se levantar, ainda no meio das duas meninas. 

Soun se dispersa rápido e vai falar com Genma, logo atrás dele chegou Kasumi, que sorriu docemente e disse: 

— Feliz aniversário, Ranma! - ela coloca um pratinho com doces de morango sobre a mesa – Aqui, fiz seus favoritos. 

— Ah, valeu Kasumi! 

Ele pega um docinho e o abocanha, Kasumi sorri e vai falar com Nodoka. Após isso, foi a vez de Nabiki, que sentou-se na frente dele e fez uma cara cínica, típico dela. 

— Dezoito anos, hein! 

— Pois é... - ele conversa com Nabiki, ignorando as duas meninas ao seu lado que ainda disputavam para ver qual caixa ficava na frente de Ranma – E aí, tem presente pra mim? 

— Bom... - ele fica surpreso quando vê Nabiki puxando algo do bolso, não esperava que, de fato, ela tivesse se dado esse trabalho. Dali ela tira um pequeno embrulho, e entrega para Ranma - É uma besteira, mas... 

— Caramba! Valeu, Nabiki! 

Ele toma o presente em suas mãos, todo sorridente, o que deixou Nabiki levemente encabulada. Ranma abre o embrulho e faz uma cara desconfiada ao perceber que se tratava de uma... 

— Uma carteira, sério? - ele dispara, sabendo que vindo de Nabiki, aquilo seria alguma provocação. 

— Mas é claro – ela sorri, debochadamente, comprovando a teoria dele – Pra você guardar todo o dinheiro que me deve. 

— Eu já devia imaginar... 

Nabiki lambe os beiços quando percebe que o irritou. Adorava isso, adorava tirar Ranma do sério, adorava ver aquele beicinho que ele fazia quando ela o deixava encurralado, adorava, em especial, estar no controle da situação. Especialmente com ele, que sempre lhe proporcionava o melhor entretenimento. 

Mas ela não poderia ser a estrela da noite, então se levantou e foi se dispersar pela sala, dando espaço para a última pessoa que ainda não o tinha cumprimentado. Akane. 

Ela se senta na frente dele, fisgando não só o seu olhar, mas também o das garotas que a fitaram com desdém. Estavam surpresas por ela ter coragem de dar as caras, e mais ainda por vê-la de baixa guarda, não com aquele olhar orgulhoso de sempre, estava nitidamente abatida e praticamente desnuda. Embora... linda. Muito linda. Usando um lindo vestido amarelo e um diadema vermelho na cabeça, o que faria Ranma corar, se não estivesse muito mais preocupado em conter seu desejo de se trancar no quarto para não ficar perto dela. 

Akane junta todas as suas forças e olha Ranma nos olhos, os seus ficam levemente marejados, estava muito envergonhada e só queria sumir, mas não se perdoaria caso não lhe dissesse: 

— ... Feliz aniversário, Ranma... 

A voz murcha dela o calou, e eles trocam olhares profundos, melancólicos, decepcionados. Um turbilhão de coisas passam pela cabeça de Ranma naquele momento, sua raiva, sua angústia, suas dúvidas, mas também... sua pena. Esta que foi crescendo dentro dele ao longo do dia depois da conversa que teve com o menino porco. Depois alguns segundos em silêncio, ele responde: 

— ... Valeu... 

Eles se olham sem dizer nada, exalando um nítido clima de tensão. Haviam tantas coisas que gostariam de dizer, mas não sabiam como. O fato daquela não ser a hora, e nem o lugar ideal para aquela conversa, influenciava, sim, mas a dificuldade de elaborar suas ideias era muito maior do que qualquer outro impasse. Se isto já seria difícil para pessoas normais, imagine para eles, que nunca demonstraram destreza no quesito comunicação. 

Incomodadas ao vê-los interagir, ainda que a torto modo, as duas outras pretendentes tentam chamar a atenção do rapaz a todo custo. 

— Ranma docinho, por que a gente não vai no caraoquê? 

— Eu... 

— Aiya! Ser ótima ideia! - Shampoo o interrompe, agarrando o braço dele – Ranma cantar música romântica com Shampoo! 

— Ei, eu chamei primeiro! - Ukyo rebate, agarrando o outro braço disponível. 

— Mas Shampoo cantar muito melhor que você! 

— Ah, conta outra!! 

— Ei, vocês duas... - Ranma tenta apartá-las, muito desconfortável. 

Akane, sentindo que assistir aquela cena já seria ultrapassar todos os seus limites, se levanta e vai se sentar no outro canto da sala, Ranma a observa ir, deixando que a discussão entre Shampoo e Ukyo voltasse a ser um mero zumbido.  

Não só ele. Desde o momento em que Akane chegou, Ryoga não tirou os olhos dela, não só por ela estar tremendamente linda, mas sobretudo por seu visível mal estar. Não suportava vê-la assim, tão pra baixo, cabisbaixa, e com o semblante de quem estava desesperada por um abraço. Daria tudo para abraçá-la. Mas obviamente não o fez. 

E então, a festa se dividiu da seguinte forma: Soun e Genma bebiam perto do frigobar enquanto falavam asneiras. Nodoka e Kasumi batiam papo sobre pratos de comida, na cozinha. Nabiki, entediada, foi puxar papo com Mousse e Konatsu, tramando alguma forma de arrancar dinheiro deles. Ranma continuava a ser disputado pela atenção de Shampoo e Ukyo a todo vapor. E Ryoga e Akane se isolaram, um em cada canto, desinteressados em conversar com qualquer pessoa. Ryoga a observava de longe, pensando se teria coragem para ir até ela e tentar animá-la de alguma forma, mas tempo vai, tempo vem, já se passara uma hora e meia de festa, e não conseguiu. Era mesmo um idiota. 

A situação de Ranma também não estava lá um mar de rosas, afinal, de quem foi a ideia de colocar aquelas duas malucas no mesmo ambiente? Ainda que ele tentasse interagir com os outros convidados, elas persistiam em o seguir como sombras, e claro, sempre se estranhando como duas gatas ariscas. Shampoo, que ainda insistia naquela ideia de caraoquê, ouviu o som da música que começou a tocar e disse: 

— Aiya, Ranma! Você gostar dessa música, né? - ela se referia à “enjoy the silence” do Depeche Mode, e sim, ele adorava, então a garota enxergou aquilo como uma oportunidade imperdível. Agarrou o braço do menino e arrastou para o caraoquê - Vem, Ranma! Cantar com Shampoo! 

— Ai Shampoo... - ele reclama, sendo que ela já havia lhe dado o microfone à força - Eu já disse que n- 

— Por favooooor ~ 

Ela faz uma cara de gatinha manhosa, muitíssimo adorável, que arranca um suspiro do rapaz que enfim se dá por vencido. 

— Tá, tá bom... Mas só essa. 

Aquela cena faz tanto Mousse quanto Ukyo torcerem o nariz, cruzarem os braços e circularem ao redor deles como dois cães de guarda, para garantir que não se instaurasse nenhum clima romântico. No entanto, a natureza tinha outros planos para Ukyo. Já estava se segurando para ir ao banheiro há tempos, e agora que Ranma estava distraído no caraoquê, parecia a melhor oportunidade. Além de que, sabia que Mousse tomaria as medidas necessárias para apartar os dois. 

Ryoga, ainda desocupado e escorado na parede no canto da sala, observa a garota alta se afastar e ir para o corredor em direção ao banheiro. Desde ontem, ele fantasiava com um momento em que pudesse enfrentá-la, e interpretou aquilo como uma oportunidade perfeita. 

Esperou a garota voltar para, no momento em que ela pisasse na sala, a puxasse pelo braço de volta para o corredor escuro, a encurralando na parede. 

— R-Ryoga?! Tá maluco?! 

— Sem gracinha, Ukyo! - ele rosna, solta o braço dela, mas ainda a cerca, inclinando o rosto para encará-la bem de perto com a sua cara feia – Como você e a sua amiguinha descobriram o segredo da Akane?! Vai, fala!! 

Ukyo engole seco, ainda assimilando toda a situação. Ryoga nunca antes foi tão bruto com ela, e ele parecia bastante sério, mas nada daquilo impressionava mais do que a pergunta que ele fez. 

— Caramba! A fofoca já se espalhou assim, é? - pergunta, meio debochada. 

— Responde logo!! 

Percebeu que ele não estava para brincadeiras, a encarava tão de perto, e com uma cara tão feia, que parecia que ia engoli-la. Mas Ukyo não tinha medo dele, nem um pouco. 

— Não sei, Ryoga – ela o olha com desdém, até sorrindo. No fundo, achava divertido o fato de ele estar ali a enfrentando sobre algo que ele mesmo provocou, sem ter a menor ideia disso - Digamos que eu tenha os meus segredos. 

— Ah, é? Pois eu vou te contar um segredo – ela fica surpresa quando ele se inclina ainda mais para olhá-la bem no fundo dos olhos, até sentindo a respiração dele lhe tocar o rosto, parecendo um ringue de batalha - Se vocês aprontarem mais alguma coisa com a Akane... Vão se ver comigo! Tá me ouvindo?! 

— Nossa, que medo – debocha dele, cruzando os braços e se mostrando bem despreocupada com aquelas ameaças - E o que você vai fazer? Bater na gente? Duas pobres garotas? 

Ela esperava que, ao dizer aquilo, ele se desarmaria. Mas ele manteve-se firme, sem cortar aquela proximidade perigosa. 

— Você sabe que eu nunca faria isso – ele responde, mais confiante que de costume - Mas eu não vou medir esforços pra impedir que qualquer uma de vocês fique com o Ranma – ao dizer aquilo, Ukyo desmancha o seu sorriso cínico, dando espaço para que ele sorrisse de maneira pomposa, sabendo que a deixou com medo - Você não vai querer isso, vai? 

Aquilo era inédito, Ryoga passava longe de ser uma figura ameaçadora, ele era muito coração mole e manipulável para deixar qualquer um intimidado. Mas a firmeza na fala dele, cominado ao fogo que ele tinha nos olhos pelo desejo de defender a honra de Akane custe o que custar, não parecia algo de se fazer pouco caso. 

Tendo noção disso, a pizzaiola tremeu na base, mas tentou reestabelecer dominância. 

— Cuide da sua vida, Ryoga! - dispara, seca. O sorriso debochado volta para o seu rosto, e ela dá um passo pra frente, se aproximando dele ainda mais, erguendo a postura, levantando o seu decote, o intimidando de igual para igual, o olhando bem no fundo dos olhos semicerrados que soltavam faíscas – Inclusive... Acho que a sua namorada não ia gostar de saber que você arrasta outras garotas pra um corredor escuro assim. 

Dito isso, eles ficam em silêncio. Mas nem precisavam falar, travavam uma batalha de olhares fulminantes, como dois animais selvagens que se cercavam em círculos, se preparando para dar o bote um no outro. Restava saber quem seria presa, e quem seria caçador. 

Konatsu, que estranhou a demora de Ukyo para voltar, caminha até o corredor e se depara com aquela cena. Estava nítido que aquilo cheirava mal, por isso, não perdeu tempo e se colocou no meio deles numa velocidade sobre-humana, digna de uma ninja prodígio. 

— Ele está te incomodando, Ukyo?! 

A garçonete rosna para o maior, defendendo sua amada como uma leoa. Ryoga se envergonha por terem sido flagrados, e Ukyo aproveita a oportunidade para sair pela beirada. 

— Não Konatsu... Estamos só conversando – garante, lançando um olhar matadouro para Ryoga uma última vez antes de puxar a amiga pelo braço e retornar para a festa - Mas a conversa já acabou. 

Ryoga a observa ir, e diz em bom tom para que ela ouvisse: 

— É o que vamos ver. 

Com o recado dado, ele se sente um pouco mais leve. Não descobriu o que queria, pelo contrário, ficou ainda mais confuso, se perguntando quais segredinhos seriam esses que Ukyo guardava, nem sonhando que ele próprio foi o informante. 

Decepcionado, ele suspira e retorna para a festa. Olha ao redor, e as coisas pareciam as mesmas. Os mais velhos agora interagiam, enquanto os mais jovens formaram um círculo e pareciam ter iniciado uma rodada de revezamento no caraoquê. Todos estavam lá, se divertindo, cantando, rindo. Todos exceto uma. 

Olha para a mesa de centro e encontra uma Akane sentada, solitária e cabisbaixa. Nem que ela tentasse, conseguiria interagir com todos como se nada estivesse acontecendo, só se dirigiu a palavra à Ranma assim que chegou, e permaneceu muda desde então. Queria pedir para ir embora, mas sua família parecia estar se divertindo bastante, então não teve coragem. Vez ou outra olhava para Ranma, que evitava olhar para ela a todo custo, sempre se distraindo com alguma outra coisa, em especial, suas outras pretendentes. O mais difícil para ela estava sendo segurar o choro. 

Ryoga, sensível como era, em especial quando se tratava de Akane, não podia mais suportar ver a menina sendo deixada de lado assim. Abandonou sua vergonha e seguiu seus instintos, se aproximando da mesa e se sentando numa almofada bem ao lado dela. 

— Festa maneira, né?... 

Ele tenta puxar assunto, fisgando a atenção dela. Eles trocam sorrisos desajeitados. 

— É... 

Tão rápido quanto o assunto se iniciou, ele terminou. A timidez dele e o desânimo dela, sem sombra de dúvida, não eram uma boa combinação. Depois de uns segundos em silêncio, ele olha para os quitutes na mesa, e pega o que achou mais gostoso. 

— Já provou um desses? - pergunta, tentando puxar assunto a todo custo. 

Sem que percebesse, ele começa a se empanturrar de salgadinhos de polvo, tenta oferecer um, mas ela recusa. 

— Sinceramente, eu só queria ir embora... - Akane dispara, pois se sentia à vontade o suficiente para ser franca com Ryoga. Ele para de comer e a olha de maneira tenra, a confortando como podia. 

— Por quê? 

— É que... Sei lá... - ela olha para a aglomeração de jovens, dando destaque para Ranma, que ainda estava sendo recheado por uma pretendente em cada lado. Todos pareciam estar se divertindo, ainda que, mesmo que ela estivesse ali, não fizesse parte - ... Não acho que a minha presença faz diferença. 

O coração de Ryoga se parte em mil pedaços quando ela diz aquilo com os olhos vidrados no noivo. Era nítido que se sentia sozinha, incompreendida. Ele sentiu raiva, pois lembrou-se da conversa que teve com Ranma mais cedo, e aparentemente ele optou por continuar sendo frio com Akane. Ainda que o contexto não colaborasse para que eles se resolvessem, Ryoga não conseguia aceitar que ela ficasse triste assim. 

Tomado por suas emoções, e desejo latente em protegê-la, ele deixa escapar: 

— ... Faz pra mim. 

Akane, tanto quanto ele, fica surpresa quando ouve aquilo, voltando o olhar para ele de imediato. O rosto de Ryoga se tinge de vermelho, muitíssimo encabulado por ter falado uma coisa dessas no calor do momento. Fica com medo de, talvez, ela lhe interpretar mal, mas foi mais forte do que ele. A menina, pela primeira vez no dia, deixa escapar um sorriso, o que o deixou mais corado ainda. 

— ... É sério? 

— Err... eu... err... 

Ryoga começa a entrelaçar os seus dedos, coisa que fazia com frequência quando ficava com vergonha. Ele detestava quando suas emoções falavam mais alto, sempre o colocando nessas enrascadas. Mas se aquilo fez a Akane sorrir... até que valeu a pena. 

— ... É... 

A confissão dele a faz alargar ainda mais aquele sorriso angelical, na visão de Ryoga, quando ela sorria, era como se pudesse ver flores desabrochando ao seu redor, como se lua a iluminasse como um holofote, e como se ele estivesse diante de uma entidade divina.  

— Obrigada... 

Ela arranca suspiros apaixonados do menino porco, o atirando nas nuvens. Embora ela não estivesse em seu melhor momento, fica contente por Ryoga ter conseguido a proeza de animá-la. Era mesmo um rapazinho muito especial. 

Agora que se sentia um pouco mais confortável, ela prova um dos bolinhos de polvo. 

— Humm, que delícia isso aqui! 

— Não é? 

Eles riem, ela mais desinibida, e ele mais tímido, ainda meio corado. Partilham de um agradável momento, devorando aqueles quitutes longe do resto da galera, como uma dupla de excluídos que, juntos, não se sentem mais tão sozinhos. Poderiam passar o resto da noite assim, apenas aproveitando a companhia um do outro sem se importarem com o resto. 

Mas aí, de repente, Mousse, que parecia mais animado que o de costume, se aproxima dos dois e chama por Ryoga: 

— Ei cara, vem cantar comigo! - convida, se referindo ao caraoquê - A próxima é “plastic love”! 

Mousse tinha um desejo reprimido de cantar alguma música de sofrência com Ryoga, já que, nesse quesito, eles se entendiam como ninguém. Mas por mais que fosse uma oferta tentadora, Ryoga estava à vontade demais junto de Akane, como um conforto do ninho. 

— Nah, deixa pra próxima - esnoba, mas Mousse não estava apto para ser rejeitado. 

— Sem essa! - pega Ryoga pelo braço e o levanta, o arrastando à força - Vai cantar comigo sim! 

— Ei, ei! 

Sem muito direito de escolha, Ryoga é sequestrado pelo amazona sorridente, dá uma última olhada em Akane, que apesar de um pouco triste por ter sido abandonada, acena para ele com um sorriso no rosto, lhe dando a bênção que precisava. 

E lá estava ela, sozinha mais uma vez. 

Os observava de longe, todos muito alegres, rindo da voz desafinada dos dois rapazes que cantavam aquela música triste com muita emoção. Ela queria participar, queria se incluir naquela alegria, e se sentir parte daquela festa como todo mundo. Mas não conseguia. Não tinha ânimo, e muito menos coragem de estar perto de Ranma, fingindo que nada estava acontecendo. Seu coração doía, lembrando-se a cada segundo que muito provavelmente ele a odiava. E por falar nele... cadê ele? 

Quando dá uma olhada melhor na aglomeração de jovens ao redor da televisão, encontra Ryoga e Mousse no centro com os microfones, Shampoo e Konatsu cantando em coro, Ukyo e Nabiki batendo palma e gargalhando, mas nada do aniversariante. Este que a pega de surpresa, chegando pela beirada e a cutucando no ombro. 

Ela olha pra cima, encontrando um Ranma de braços cruzados e um olhar difícil de decifrar. Seu coração acelera, se perguntando o que ele queria, indo até ela sorrateiramente. Antes que pudesse se encher de perguntas, ele diz com uma voz seca: 

— Posso falar com você um minuto? 

 

—-- 

 

Sem serem percebidos por ninguém, Ranma e Akane sobem para o quarto dele. Ele aproveitou justamente um momento em que todos estivessem dispersos, para que não o enchessem de perguntas, ou pior, que tentassem impedi-lo de conversar com Akane em particular. Por mais que ele tivesse tentado fingir indiferença a noite toda, estava contando os segundos para que pudesse fazer isso. Não aguentava mais um segundo sequer daquela tortura. 

Akane estava com o coração a mil, passava longe da sua cabeça a possibilidade daquilo acontecer, estava nítido o que ele queria, mas não sabia que seria justo agora. Ele fecha a porta, e eles se encaram em silêncio, o sentimento era de pura agonia e desconforto. Tinham muito o que conversar, muito o que resolver, e não sabiam por onde começar a desatar esse nó. 

A menina fica cabisbaixa, com vergonha de encará-lo nos olhos por tanto tempo, sabendo que tinha culpa no cartório. Ranma suspira, caminha até a beirada da sua cama, e se senta no chão, encostando-se no colchão fofo. 

— Bom... você começa. 

Ela se arrepia ao ouvir aquilo, engole seco, e o responde, sem tirar os olhos do chão: 

— Começar... o quê? 

— O que você acha? - rebate, ríspido - Eu quero saber a verdade. 

Ela cria coragem de fitá-lo no rosto, e percebe que ele está abatido, talvez um pouco irritado, mas também, curioso. Por isso, ele a apressa: 

— Vai, me conta... Que história é essa de dívida? O que tá acontecendo? 

Apesar da pressão e desconforto, ela não se viu no direito de esquivar. Depois de tudo o que aconteceu, contar a verdade nua e crua se tornou uma questão de honra e respeito, mas ainda seria muito doloroso expor suas feridas, fraquezas, inseguranças e angústias dessa forma. 

Por isso, os olhos de Akane se encheram de lágrimas que não demoraram muito para escorrer pelo seu rosto. Ela se senta de joelhos, de frente para ele, e aperta suas mãos contra o tecido do vestido, criando coragem para colocar tudo aquilo para fora. Sem fingimento, sem plano, sem orgulho. 

— Em abril... a gente recebeu uma carta... 

Ela começa a sua história com a voz embargada de choro, choro este provocado por uma imensa vergonha, e Ranma manteve seus olhos e ouvidos bem abertos. 

— Não era pra eu saber disso... mas eu escutei o papai e a Kasumi falarem sobre... - ela desafina a voz, e enxuga o rosto – existe um Conselho das Artes Marciais lá da China, que é o que nos manda sustento pra manter a academia... só que como a academia tá parada há mais de dez anos, o Conselho quer nos dar uma multa... e a gente não tem condição... 

O seu choro fica mais pesado, por isso, fica mais difícil de prosseguir com a história, mas não queria deixar Ranma esperando, então junta o resto de forças que tinha para continuar falando, mesmo que numa voz chorosa e baixinha. 

— Se a gente não quitar a dívida... o Conselho vai tirar a academia da gente... - nessa hora, Ranma junta as sobrancelhas – mas como a gente não pode pagar... e nem enfrentar o Conselho... o único jeito de quitar a dívida é... 

Ela faz uma pausa longa, se esforçando muito para conter o choro. Mas ficou nítido para Ranma o desenrolar das circunstâncias, considerando tudo o que aconteceu. 

— ... Casando comigo? 

Ele pergunta, fisgando com o olhar dela. Ela assente. 

— ... É... Uma de nós... precisa se casar com um herdeiro de outra academia pra unir os nomes... 

Ele estava chocado, enfurecido, mas toda a sua raiva foi transferida para esse tal Conselho que colocou a família Tendo, a quem ele guardava muito carinho, nessa saia justa. Esperto como era, juntou alguns pauzinhos e chegou a algumas conclusões.  

A primeira é que provavelmente esse era o motivo de seus pais terem inventado essa história de noivado, e insistido nisso por tantos anos, o que o tirou do sério, pois mais uma vez lhe ocultaram informações da qual ele tinha o direito de saber. A segunda era que, assim como ele, Akane também não fazia a menor ideia desse detalhe, mas, no momento em que soube, fez o que fez como uma medida desesperada de salvar sua família. E a terceira... é que apesar disso, ela ainda assim foi injusta com ele. 

— ... E por que você não me contou? - pergunta, sem tirar os olhos dela, lhe arrancando uma reação angustiante - Você podia ter me falado... 

Ranma estava sério, visivelmente decepcionado. Não conseguia entender o porquê de ela ter lhe omitido uma coisa tão séria, ainda mais se aquilo, de certa forma, também o envolvia. Ela não sabia muito bem como responder, pois também chegou numa conclusão. Apesar de ter seus motivos e inseguranças para não ter lhe contado, talvez, aquela tivesse sido a melhor opção desde o princípio. 

— Eu não sei... - a torneira da menina se abre ainda mais, muitíssimo envergonhada – Eu... eu pensei... que se eu te contasse... - ela o olha bem no fundo dos olhos - ... você ia se obrigar a casar comigo... 

Ele se arrepia ao ouvir aquilo. Akane se entregava mais e mais ao seu choro, com os pensamentos cada vez mais desconexos, e mais dificuldade de se expressar. 

— Eu não queria isso... eu... eu não queria que fosse assim... - chorava tanto que até seu nariz começou a escorrer – Me desculpa... eu... eu pensei... que se a gente se desse melhor, aí você... eu... - não tinha mais forças para elaborar nenhum argumento, apenas se escorou no chão, com a testa grudada no tapete, e pediu por perdão - Me desculpa, Ranma... eu fui idiota... desculpa... desculpa... 

Era uma cena quase impensável, Akane, que sempre foi uma muralha de orgulho, sobretudo com Ranma, pedindo desculpas de joelhos e assumindo seus erros. Se fosse qualquer outro desentendimento banal, ele lamberia os beiços diante daquilo e se vangloriaria pelo resto da vida por tê-la colocado nessa posição. Mas agora, ele só conseguia ficar triste. 

Triste, irritado, confuso, assustado. Muito assustado. Um peso do tamanho de um elefante caiu sobre suas costas, pois agora que entendia bem a situação, e que Akane, sim, tinha mais que motivos para estar desesperada. Apesar de magoado e ligeiramente ofendido, no fundo, conseguia compreender o lado dela. Mas ainda não era justificável. 

— Sua boba... - rosna, com ela ainda escorada no chão - Você só piorou tudo... teria sido muito mais fácil se tivesse me contado a verdade! 

— Desculpa... 

— Por que é que todo mundo faz isso comigo?! - começa a desabafar, e ela se inclina um pouco para olhá-lo nos olhos – Sempre me escondem tudo e tentam me manipular pra eu fazer o que querem! Você não tinha esse direito, Akane! Ainda mais você!! - dispara, sabendo que ela entenderia, afinal, Akane também era vítima desse tipo de situação o tempo todo, logo, era muita hipocrisia da parte dela se articular dessa forma – Independente do que eu faça, ainda é uma escolha minha! E de mais ninguém!! 

Aquilo a calou profundamente, o que a fez engolir o choro, sequer se sentia nesse direito mais. Ranma estava certo. Doía admitir, mas ele estava certo. 

Ele fita o rosto da menina desamparada, e que aparentemente o entendeu. Olhar para ela sempre o fez sentir um turbilhão de coisas, e agora, mais do que nunca. Apesar de toda a raiva e decepção que sentia, ele ainda via nela uma garota perdida, que só quer ajudar os que ama. Ainda que de maneira torta e equivocada, ela fez o que fez por uma causa nobre. Faltou limite, empatia, mas sem sombra de dúvidas, não faltou amor. 

Colocado entre a cruz e a espada, ele suspira, abaixando um pouco a guarda e deixando seu lado humano falar um pouco mais alto: 

— ... É realmente o único jeito?... 

Sua fala ficou um pouco mais mansa, embora, ainda séria. Akane apenas assente, sem nada dizer. Não fazia ideia do que fazer dali para frente, mas o que mais importava agora era ter o perdão de Ranma, então apenas pedia aos céus para que ele não a odiasse tão profundamente, por mais que ele tivesse todo o direito. 

Ranma consegue enxergar toda a tristeza e desamparo de Akane bem diante de seus olhos. Mas apesar de tudo... Apesar de todas as coisas que ela fez, que o fizeram criar esperanças de que seus sentimentos reprimidos por ela realmente eram recíprocos, quando na verdade, era tudo uma armação... não suportava vê-la assim. Nunca, em todas as brigas que já tiveram, suportou a ideia de ver Akane triste, por mais errada que ela estivesse.  

Queria o bem dela. Queria o bem dos Tendo. Queria o bem para todos. 

E isso caiu bem em cima do seu colo. 

Era triste. Lamentável. Mas não tinha outro jeito. 

— Bom... já que é assim... vamo nessa... 

 

... 

 

—-- 

 

Após mais uma rodada no caraoquê, Shampoo começa a sentir falta de seu noivo, olha para o lado, para o outro, e não o encontra. E fica mais incomodada ainda ao perceber que Akane também não estava mais na sala. Mousse, que também se manteve atento à isso, percebeu um perigo eminente quando Shampoo foi até Ukyo, mesmo após elas terem brigado a noite toda, e discretamente se inclinou para ouvi-la sussurrar para a pizzaiola: 

— Ranma sumir. 

Ukyo pensa em reclamar quando a vê tão próxima, mas ao raciocinar o que ouviu, uma pulga saltou para atrás de sua orelha. Olhou ao redor, não encontrou a Tendo mais nova, e complementou: 

— A Akane também... 

As duas se encaram, com sobrancelhas cerradas e um olhar de desconfiança. Ainda que tivessem voltado à estaca zero, aquele era um perigo que elas não poderiam simplesmente ignorar. Apenas assentem uma para a outra e se afastam da roda, começando a explorar a sala, o quintal e a cozinha procurando pelos dois. 

Mousse cutuca Ryoga, que estava um tanto distraído com a linda voz de Konatsu cantando, e aponta para as duas garotas dispersas na sala, como quem o convidasse para agir. Ryoga, lerdo como sempre, fica confuso, mas não pestanejou em seguir o amazona que se colocou na frente do corredor, impedindo a passagem das duas fuxiqueiras. 

— Vão a algum lugar, garotas? - ele pergunta, fazendo uma cara cínica de braços cruzados e se escorando na parede. 

— Não ser da sua conta, Mousse! - Shampoo rosna, tenta seguir em frente, mas é bloqueada pelo rapaz de cabelos cumpridos – Sair da frente!! 

— Shampoo... - Ukyo a cutuca, conduzindo a amazona a olhar para trás. 

As duas meninas se veem cercadas, com Mousse na frente do corredor, e Ryoga logo atrás, de braços cruzados e fazendo uma típica cara feia. O menino porco, depois de uns minutos, percebeu o que estava acontecendo, e se dispôs a ajudar seu aliado. Não poderiam deixar que elas fossem atrás de Ranma ou Akane, seja lá onde eles estivessem, mas o sexto sentido de todos diziam que eles estavam juntos. 

Ukyo e Shampoo encaram os dois rapazes com sangue nos olhos, muito aborrecidas por tanta inconveniência. Mas não era de se esperar menos, afinal, eram seus rivais do time oposto. 

— O que vocês querem, hein? - Ukyo pergunta, sem paciência. 

— Ora vamos, não precisa ser assim – Mousse se desarma, tentando parecer casual, mas estava mais parecendo debochado - É uma festa! Por que não fazemos uma rodada de caraoquê, todos nós? 

Os dois rapazes pareciam se recusar a sair de seus postos, cercando as meninas como dois seguranças. Ukyo e Shampoo se entreolham, convencidas de que, se dependesse deles, não conseguiriam sair dali. Precisariam jogar o jogo deles. 

— Tá bom, mas só uma – Ukyo responde, ainda ríspida. 

— Perfeito! - Mousse exclama, sorridente. 

Os cupidos as escoltam de volta para a rodinha de caraoquê, estas que, só com o olhar, entenderam que não tinha outra saída. Cada um dos quatro pega um microfone, Ryoga e Mousse de um lado, e Ukyo e Shampoo de outro, eles semicerram os olhos e juntam a sobrancelha, se encarando como num campo de batalha enquanto esperavam a música começar. 

E quando começa, começaram a cantar como se lutassem. Meninas contra meninos, diabas contra cupidos. Ainda que “mayonaka no door” tivesse uma energia bem alegre, o quarteto performava com cara de ódio, quase urrando no microfone, colocando toda a raiva que sentiam pela dupla à sua frente pra fora. 

Até mesmo as meninas que assistiam perceberam a tensão no ar, parecia uma guerra dos sexos. Era nítido que as garotas estavam se segurando para não saírem no tapa com os dois, estes que também não mediam esforços para tentar estabelecer dominância sobre elas.  

Mas tudo aquilo era apenas teatro. Apenas uma distração. Pois a verdadeira guerra fria estava acontecendo no andar de cima. 

 

—-- 

 

... 

 

“Vamo nessa?... Mas o que ele...?” 

Akane, que estava cabisbaixa, lentamente levanta o rosto e encontra o de Ranma. Ele olhava para o chão, com as sobrancelhas juntas e olhos semicerrados, ainda que retraído, parecia conformado, e mais que isso, determinado. Ela gagueja: 

— Co-... Como assim...? 

Ele a encara nos olhos e suspira, a respondendo pausadamente: 

— ... Para honrar tudo o que a família Tendo fez por mim... E como não tem outro jeito... 

Ranma faz uma pausa, criando coragem. Seu coração estava a mil por hora, ansioso, ainda que despedaçado. Tomou uma decisão. E assim como Akane, quando colocava algo na cabeça, não havia santo que tirasse. 

 

 

 

 

 

— ... Eu caso com você. 

 

 

 

 

 

Silêncio. Confusão. Explosão mental. Uma lágrima. 

Esta que escorreu pelo rosto de Akane no momento em que ela assimilou o que acaba de escutar. Ranma a olhava de uma forma muito decidida, mas ainda abatida. Definitivamente, ela nunca sonhara em consolidar um noivado dessa forma, nessas circunstâncias, e em consequência de uma discussão. 

Estava sonhando? Não... Não estava. Mas sinceramente, gostaria de estar. 

— Não...  

Ela deixa escapar enquanto mais lágrimas saltavam de seus olhos. 

— Não... Não!!... Eu não posso aceitar, Ranma!... - Akane abre o berreiro de uma vez por todas, tampando o rosto para que ele não visse o quão desconsertada ele a deixou - Não... depois de tudo... eu não posso aceitar... Eu...!! 

Nem consegue continuar choramingando, foi completamente tomada pelo seu choro que misturava mil e umas sensações diferentes. Por um lado, aquilo era um sonho realizado, um lindo delírio, um presente divino. Por outro, ela não se sentia merecedora de tanta compaixão. Não depois de tudo. 

Ranma não tira os olhos dela enquanto ela chorava, já imaginava que ela fosse reagir assim. Orgulhosa como era, dificilmente aceitaria levar aquilo adiante depois de magoá-lo. Mas ele não queria nem saber. Não daria para trás na sua decisão. 

— Deixa de ser teimosa, Akane... - ele diz, numa voz firme e baixinha – Eu já disse... É uma escolha minha. 

Ela tira as mãos do rosto, e ao olhá-lo de volta, ainda que com a vista meio atrapalhada pelo choro, percebeu que ele estava muito decidido, o que a assustou. 

— Mas... mas... - balbucia, com a voz bem embargada – Eu... Eu não quero que você se sinta obrigado... 

— Akane... eu já tomei minha decisão. Só aceita – rebate, bastante assertivo e sério - ... Você não quer salvar a sua família? 

Ela arregala os olhos. 

— É claro que eu quero! - pela primeira vez, ela não gagueja, mas durou poucos segundos até que ela voltasse a falar pausadamente - ... Mas... Eu... Não... 

Os dois jovens se viram num beco sem saída. No fundo, ela sabia que aquela seria a sua única chance. Não é à toa que arquitetou todo um plano desajeitado para que aquilo acontecesse. Mas agora que ela tinha a solução ali, na palma de sua mão, não se sentia digna de aceitar. 

E óbvio, não vamos esquecer que o bem estar da família Tendo não era a única coisa em jogo. Estamos falando de um casamento. Por anos eles foram importunados com essa ideia, e estariam mentindo se dissessem que por vez ou outra não tivessem fantasiado com a hipótese do “e se?” nas suas cabeças. Com tanto estímulo, era ainda mais difícil de ignorar. 

E se eles casassem mesmo? E se eles se tornassem marido e mulher, ainda que brigassem tanto? E se, apesar de todas as presepadas, eles realmente estivessem destinados a passar o resto da vida juntos? 

Em algum lugar, bem no fundinho de seus corações imaturos e confusos, aquilo seria... muito bom. 

Mas... o que realmente estava selando essa união, era o compromisso por um bem maior. Um triste desenrolar para a história de dois jovens, que apesar de terem tão pouca idade, já teriam de carregar um fardo tão pesado. Desnudos, confusos, e muito assustados pelo que poderia estar por vir, dependendo da decisão que tomassem. 

— Bom... é o único jeito... - Ranma conclui, com a voz um pouco mais serena – E... eu também quero salvar a sua família... 

Dito isso, a menina se desarma completamente. Aquilo estava longe do ideal, muito longe do que ela realmente gostaria, do que ela sempre sonhou, tanto para ela, quanto para ele. Mas... talvez... não houvesse cenário melhor. 

Ainda que ela levasse a sua honra, e a de sua família, muito à sério, ela não podia se dar ao luxo de ser ingrata. Talvez, no fim das contas, ela precisaria ser humilde e reconhecer que se esse era o real desejo de Ranma, por mais culpada que ela se sentisse, ela não poderia contrariá-lo. Era uma questão de respeito. À ele, à sua família, e talvez até à si mesma. 

— Ranma... - Akane se escora no chão de novo, desta vez, fazendo uma pose de gratidão - Obrigada!!... - ele arregala os olhos perante a cena, pois nunca imaginou presenciar Akane assim – Obrigada!... Obrigada!... Obrigada!!... - a forma como ela o agradecia de joelhos de maneira tão fervorosa o fez se arrepiar por completo, até ficando encabulado, quase como se ele fosse uma espécie de herói - Eu... Eu nunca vou conseguir expressar o quanto eu sou grata!!... Eu...!!... Eu...!!... 

Ranma fica atônito. Era difícil processar que aquilo realmente estava acontecendo, para ambos. Acabaram de selar um acordo. A solução para os problemas de todos.  

Um... noivado. 

Supostamente, já eram noivos há mais de dois anos... Mas agora, ainda que a torto modo, isso foi oficializado. O que era apenas uma hipótese, uma ideia, um sonho, agora estava a um passo de virar realidade, e se concretizar num altar qualquer. Para pessoas normais, isso seria motivo de festa, uma celebração de amor, como eles próprios gostariam que fosse. Mas, pelo desenrolar das coisas, seria apenas um artifício para manter as coisas em seu devido lugar, sem que uma tragédia aconteça. Nem nisso eles conseguiam ser um par convencional. 

Se dando conta disso, Ranma suspira, decepcionado, e se levanta. 

— Deixa disso... - ele caminha até Akane, que volta a se sentar quando ele o faz, e arregala os olhos quando ele lhe estende a mão - Vem... Vamo acabar logo com isso. 

Akane quase engasga, surpresa com aquela fala. O que ele queria dizer com aquilo? 

— A-... Acabar com o quê? 

— O que você acha? - Akane enxuga as lágrimas, segura a sua mão e pega impulso para se levantar, e sem soltá-la, é fisgada pelo olhar intenso de seu mais que oficial noivo - ... Vamo contar pros velhos. 

E num piscar de olhos, ela fica três vezes mais nervosa. Aquela era uma atitude muito incomum vinda de Ranma. Se expor dessa forma, ainda mais pra algo tão vergonhoso. Mas ele já estava aborrecido o suficiente com aquela situação, e quanto mais rápido aquilo se resolvesse, melhor ele se sentiria consigo mesmo. 

— Mas... Mas agora?!? 

— Algum problema? - ele mantinha a cara séria e uma voz seca, o que apertou o coração da menina – Eu espero todo mundo ir embora, e aí eu falo com a mãe. 

Ele falava de forma tão... fria. Estavam falando de um casamento, e supostamente, isso deveria representar felicidade, euforia, excitação... Mas a seriedade na fala e no olhar de Ranma davam a entender que aquilo não passava de um protocolo. 

Talvez se Akane não tivesse o magoado tanto as coisas seriam diferentes. Tendo noção disso, ela ficou cabisbaixa e aceitou mais uma vez a consequência de seus atos. Afinal... ele só estava lhe fazendo um favor. Um GRANDE favor. 

— Tá... 

— Vem, vamos. 

Ele conduz a menina para fora do quarto, em completo silêncio e um palpável desconforto. Akane só queria um buraco pra se enfiar, se martirizando de todas as formas por as coisas terem acabado dessa forma. Conseguiu o que queria, mas a que preço? 

Ranma, por outro lado, só queria pôr um fim nisso, fazer o que seu coração dizia ser certo, por mais que Akane não merecesse. Estava nervoso, tão inseguro quanto ela. Mas ele sempre foi do tipo que buscava manter uma postura honrável, não importa as circunstâncias. E pela sua honra, casaria-se com a menina que brincou com seus sentimentos, para ajudar a família que o acolheu por tanto tempo.  

Se ao menos esses dois soubessem dialogar, tudo seria tão mais fácil... 

Ao chegarem no andar de baixo, Nodoka os avista e vai até Ranma, meio afobada. 

— Filho, onde você estava? 

— Mãe, eu preciso falar com você depois – ele diz, ignorando a pergunta dela, muito firme, deixando a Akane bem ao lado dele bastante envergonhada. 

— Claro querido, mas agora é a hora do parabéns - ela se põe no meio deles e os arrasta pelos ombros até o centro da sala. 

— A-Ah, mãe! - ele reclama, tímido - Eu odeio parabéns! 

— Que bobagem. Venham, pessoal! - ela chama a atenção de todos – Hora do parabéns! 

— Argh! 

Por mais que Ranma adorasse ser o centro das atenções, parabéns era uma coisa meio vergonhosa, ainda mais para um adolescente. O quarteto que acabara de concluir uma terceira rodada bem arrastada no caraoquê voltam sua atenção para os dois, antes sumidos. Pelo clima que se instaurou no momento em que eles voltaram, ficou ainda mais nítido que, sim, provavelmente eles estavam juntos. Coisa que provocou a curiosidade dos rapazes, e a angústia das garotas. 

Mas afinal, o que eles foram fazer nesse meio tempo? Não estavam brigados?  

A cara de enterro dos dois deixava tudo ainda mais intrigante. 

Ukyo e Shampoo, irritadas por terem perdido tempo dessa forma, prontamente soltam os microfones e correm até Ranma, se posicionando uma em cada lado dele, até fazendo Akane se afastar, retraída. Soun e Genma largam suas taças de saquê e se acomodam ao redor da mesa junto com os outros que também foram chegando, com exceção de Nabiki, que se escorou na porta da cozinha segurando uma taça de saquê e os observou de longe, pois também ficava meio constrangida com esse tipo de ritual.  

Nodoka vai até a cozinha, e de lá volta com um bolo de chocolate com morango, no topo dele, tinha uma vela acesa soltando faísca. 

Parabéns pra você...  — ela é quem inicia o coro, coloca o bolo sobre a mesa bem de frente para Ranma, e se junta à roda. 

— Nessa data querida...  Muitas felicidades... Muitos anos de vida... 

Todos começam a cantar, em coro, um caloroso momento que teria sido muito melhor desfrutado se o clima não estivesse tão pesado entre ele e Akane. Ryoga, que era o mais sensitivo, percebeu que tinha algo estranho, notando que Akane não cantava junto com o resto, cabisbaixa e xoxa, depois olha para Ranma, e repara que ele estava um tanto distante, abatido, nervoso. Considerando o recente sumiço deles... isso o deixou ainda mais nervoso, se perguntando o que poderia ter acontecido debaixo do seu nariz. 

Ele volta o olhar para Akane, que agora olhava para ele, fazendo Ryoga se arrepiar. Depois, ela olha discretamente para Ranma, e Ryoga presencia uma troca de olhares misteriosa entre eles. Para, por fim, Ranma olhar na direção dele, rebobinando na sua cabeça tudo o que conversaram mais cedo. Os três ficam nesse revezamento, sendo os únicos que não cantavam junto com os outros. Estes que terminam a música, batem palmas, e vidram os olhares em Ranma. Ele gruda os olhos na vela em cima do bolo. 

— Faz um pedido, filho! 

Nodoka pede, e Ranma a obedece. Pediu coragem. Coragem para lidar com todo aquele caos da melhor maneira possível. 

Terminado o ritual, as duas pretendentes se esfregam ainda mais no braço de Ranma, manhosas e sedutoras, quase implorando por atenção. Mousse e Konatsu só faltavam se morderem de inveja. Nodoka, que estava consideravelmente próxima do filho, pergunta: 

— Bom, o que você tinha pra me dizer, querido? 

Ranma se arrepia ao ouvi-la perguntar aquilo em alto e bom tom, na frente de todo mundo. 

— C-Como assim, mãe? 

— Você não disse que queria conversar comigo? É importante? 

Normalmente aquilo o faria querer se enfiar dentro de um buraco, assim como fez com Akane, que desde que desceu, parecia bastante inquieta. Todos na mesa perceberam que ele ficou nervoso de repente, o que atiçou a curiosidade, principalmente, das duas meninas que se esfregavam em seus braços. Ranma obviamente não pretendia tocar naquele assunto na frente de todos. 

Mas... 

Olhou ao seu redor, percebeu que todos os olhares curiosos estavam voltados para ele, e por incrível que pareça... não se acovardou. Uma luz se acendeu na sua cabeça: percebeu que, convenientemente, todos que mais se interessariam por aquela notícia estavam bem ali. Não só seus pais, mas também suas outras pretendentes que tanto lhe enchiam o juízo, e óbvio, o rapaz que o colocou contra a parede mais cedo e o ameaçou caso não ajudasse Akane.  

Ranma era tímido, mas também era apressado.  

Talvez... se fizesse aquilo... a tortura acabaria mais rápido. 

Respirou fundo, contou até três, e olhou para as duas garotas que o preenchiam como um sanduíche. 

— Vocês duas podem me dar licença? 

Ukyo e Shampoo se espantam com aquele pedido ríspido, ficando ainda mais intrigadas com aquela situação. Se entreolham, partilhando da mesma dúvida, e se afastam dele, dando uma volta na mesa para se encontrarem, uma do lado da outra, sem tirarem os olhos de Ranma. 

Este que, quando conseguiu o espaço, olhou para Akane de forma tão decidida que a fez sentir um arrepio no corpo todo. 

— Akane, vem pra cá. 

Os convidados se entreolham, muito confusos, intrigados, curiosos, em especial as duas garotas que permaneciam de pé. O que estava acontecendo? Se perguntavam isso, assim como Akane, que demora uns segundos para se levantar e ir na direção do aniversariante, se sentando ao seu lado timidamente. 

Ranma a olha bem no fundo de seus olhos, e aos poucos, ela começa a entender o que realmente estava acontecendo, o que a deixou desesperadamente envergonhada.  

Não é possível... ele não faria isso... ou faria? 

— O... O que foi? - ela pergunta, bem baixinho. 

O garoto junta as sobrancelhas e cerra o punho, criando coragem para fazer algo que, possivelmente, seria o maior desafio da sua vida. Encarar todas aquelas pessoas e fazer o tão estimado anúncio. Sonhado por uns, temido por outros.  

Ele só podia estar louco. E estava mesmo. Abarrotado por mil e umas perturbações que o perseguiram desde ontem, e foram escalando num ponto em que seu anseio por resolver logo o problema se tornou maior que a sua vergonha. E agora, uma força fenomenal toma conta de seus sentidos, e o coloca nessa situação tão inusitada. 

Mas... talvez fosse melhor que todos soubessem de uma vez. 

“Tá... hora de pôr um fim nisso!” 

Ele engole seco, respira fundo, e gruda os olhos nos convidados que mantinham uma sobrancelha levantada, se perguntando o motivo daquele climão.  

Não tinha mais pra onde correr. Era agora ou nunca. 

— Mãe... - ele olha para Nodoka – Velho... - depois para Genma – e... Tio Tendo... - por fim, olha para Soun. Respira fundo mais uma vez, começando a ficar vermelho – Eu... eu... tenho... digo... - olha para Akane, que ainda parecia descrente que aquilo estava acontecendo - nós... temos... uma coisa pra dizer... 

— Ra-Ranma!... - ela tenta sussurrar, quase entrando em pânico - Mas... A-... Agora?!?... 

Ele se inclina em direção ao ouvido dela, sussurrando com uma voz meio emburrada: 

— É... vamo acabar logo com isso... - reajeita a postura, e quando o faz, o rosto da menina está tão vermelho quanto um tomate. Os convidados já estavam começando a ficar impacientes, se encarando com muitas interrogações sobre suas cabeças. Ranma cria coragem para olhá-los novamente, e quando o faz, cai em si de que aquilo era extremamente difícil - Bom... A Akane... digo... eu e a Akane... err... 

Ukyo e Shampoo se entreolham, engolem seco, e sem perceberem, dão as mãos, suadas de nervosismo, pois aquilo não parecia ir para um bom lugar. Mousse e Konatsu tinham os olhos vidrados nos dois, começando a teorizar a razão de tudo aquilo, mas de uma maneira mais otimista. Ryoga sentiu a sua boca seca, por mais bobinho que fosse, conseguia sentir para onde aquilo estava caminhando, coisa que, apesar de ser do seu desejo, ainda era uma cena tremendamente difícil de assistir. Já os familiares, sabendo como aqueles dois sempre foram, pareciam descrentes de que aquilo realmente era o que parecia ser, seria bom demais pra ser verdade. 

Ranma já estava há alguns segundos em completo silêncio, arrependido de ter tomado aquela decisão por impulso. Precisava mesmo ser na frente de tanta gente? 

— M-... Me ajuda aí, Akane – ele a cutuca com o cotovelo. 

— E-Err... - ela fica mais desorientada do que já estava, sem coragem de tirar os olhos do chão, no máximo olhava para Ranma com vontade de esganá-lo por tê-la colocado nessa situação - Eu... err... A gente... decidiu... que... - ela e o rapaz trocam olhares, como se pedissem ajuda um para o outro, quentes como uma chaleira e soltando fumaça pelos ouvidos, a um passo de, juntos, fazerem a coisa mais vergonhosa e impensável de suas vidas - nós... d-decidimos... 

Enxergou o próprio reflexo nos olhos marejados da menina que estava à beira de um colapso nervoso. Tremia, gaguejava, e vez ou outra voltava a olhar para o chão. Percebeu que ela não teria coragem. 

Então Ranma respirou fundo, contou até três, e disparou de uma vez por todas: 

 

 

 

— ... Nós decidimos levar o noivado adiante... 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CRACK!! 

 

Nabiki, que ainda se escorava no canto da porta enquanto segurava uma taça, a deixou cair e espatifar vidro misturado com saquê para todo o lado. Coisa que não chamou a atenção de ninguém, pois estavam petrificados, olhando para o casal com uma cara de espanto e sentindo como se estivessem tendo um delírio coletivo. 

Só podia ser um delírio coletivo. Não é possível. 

— O... O que está dizendo, filho?!? - Genma pergunta, embasbacado. 

— Isso... Filha... - Soun se ergue com certa urgência, arregalando os olhos para Akane – Isso é verdade?!? 

Akane, que antes olhava para o chão, sente o rosto explodir de vergonha quando se depara com todos aqueles olhares perplexos na sua direção, pareciam até estar diante de um acidente de carro, de queixo caído, pupilas miúdas, e sem moverem um músculo sequer.  

Por que tinha que ser assim? Justo na frente de todo mundo? Ele não podia esperar não? 

Contendo sua vontade de fugir, ela respira fundo, conta até dez, e responde seu pai, ainda cabisbaixa: 

— É... é verdade, pai... 

Dito isso, todos os presentes perdem o fôlego. Ainda que o choque fosse conjunto, cada um reagia ao seu modo. Os pais, no caso, Genma, Soun e Nodoka, já estavam sentindo as lágrimas chegando, junto de uma grande euforia. Kasumi dividia-se entre sentir um grande alívio ou uma grande preocupação, afinal, por mais que aquilo significasse a melhor coisa de todas, era repentino até demais, e apenas endossava a sua teoria.  

Mousse lentamente assimilava o que acabara de descobrir, dando espaço para um largo sorriso de vitória, a ponto de pular de alegria, mas se resumiu a pousar as mãos no ombro de Ryoga e sacudi-lo de tanto entusiasmo. Este que, por sua vez, estava em estado de choque, com uma lágrima no canto de seu olho ameaçando escorrer, pois depois de dois anos amando Akane mais do que a si mesmo, presenciou bem diante de seus olhos a comprovação de que ela nunca seria sua. 

Konatsu ficou feliz, mas não por muito tempo, pois ao direcionar o olhar para a sua amada, viu nela um olhar de desamparo, tristeza, raiva. Mas Ukyo permanecia muda e perplexa, assim como Shampoo, como duas estátuas, ainda apertando as mãos uma da outra, petrificadas pelo vislumbre da derrota, e pelo sabor do próprio veneno. 

E por fim, Nabiki. Depois de alguns segundos atordoada, revezando entre olhar para a sua irmã e para Ranma, ela sente uma tontura, carregada de uma explosão de coisas que aquela notícia a fez sentir, deu as costas e anunciou, sem chamar a atenção de ninguém: 

— Eu vou ao banheiro. 

Quando a ficha finalmente cai, os pais se levantam, e correm na direção dos filhos para abraçá-los. 

— OH, MAS QUE ALEGRIA!! - Soun e Genma agarram Ranma pelo pescoço, quase o sufocando. 

— MUITO OBRIGADO, FILHO!! - o bigodudo o apertou mais ainda, chorando rios de lágrimas - VOCÊ FEZ ESSE VELHO PAI MUITO, MUITO FELIZ!! OBRIGADO!! OBRIGADO!! 

— EU SABIA!! SABIA QUE ME DARIA ORGULHO, FILHO!! - foi a vez de Genma choramingar, que também não soltava o pescoço de Ranma por nada nesse mundo – QUE DIA FELIZ!! QUE SONHO REALIZADO!! 

— Me... solta... - Ranma suplica, quase sem ar. 

— SAOTOME!! - eles finalmente soltam o menino, que precisa pegar muito ar para se recuperar – ISSO SIGNIFICA...!! 

— QUE A ACADEMIA TENDO E SAOTOME...!! 

— FINALMENTE SERÃO UMA SÓ!!! - eles se complementam, em coro, e se abraçam com tanta força que poderiam quebrar os ossos um do outro. 

— FINALMENTE ESSE DIA CHEGOU, MEU VELHO AMIGO SAOTOME!!! 

 - DEPOIS DE DEZOITO ANOS, VELHO TENDO!! FINALMENTE!!! QUE DEUS SEJA LOUVADO!!! 

Era impossível não sentir vergonha daquele espetáculo, sobretudo para os dois noivos que só queriam se esconder debaixo da mesa e não receber toda aquela atenção. Realmente, um anúncio na frente de todos foi uma péssima ideia. Akane, que já estava muito desconfortável, quase salta para trás quando Genma se inclina em sua direção, pegando a sua pequena mãozinha e a beijando múltiplas vezes: 

— MUITO OBRIGADO, QUERIDA AKANE!! - ela se arrepia com a forma que aquele velho chorão a agradecia quase que de joelhos – EU SEMPRE SOUBE QUE VOCÊ E O MEU RANMA ACABARIAM SE ENTENDENDO!! 

— Err... - ela encolhe a cabeça entre os ombros, muitíssimo envergonhada – Eu... 

— CUIDE BEM DO MEU GAROTO!! - ele solta a mão dela e continua a chorar aos prantos, dando espaço para que Soun a abraçasse dessa vez. 

— É UM MILAGRE, FILHA!! - ele choraminga com a filha nos braços - UM SONHO REALIZADO!! UM MILAGRE!! UM MILAGRE!! 

Realmente, parecia um milagre. Justo agora, quando mais precisado, o tão esperado noivado enfim se concretizou. Soun estava tão feliz que nem se tocou da tremenda coincidência, apenas se afogou em seu pranto agora abraçando o amigo, esperaram por isso por quase vinte anos, e insistiram por dois caóticos anos de muitas brigas e desventuras em torno dos pretendentes. Mas agora, enfim, o acordo entre as famílias Tendo e Saotome se materializou. 

Mas eles não eram os únicos a se emocionarem. Ranma, que ainda recuperava o seu fôlego, foi surpreendido por um abraço muito caloroso de sua mãe, esta que também chorava, mas de maneira mais contida. 

— Meu filho... que coisa mais maravilhosa! - ela lhe dá um beijo no topo da cabeça e pousa a mão sobre suas bochechas, o deixando ter o vislumbre do seu choro de emoção, os olhos dele brilham, e ele perde a fala - É o seu aniversário, mas... Foi você quem nos deu um presente! 

Ranma se arrepia ao ver sua mãe tão feliz, só perdendo para o dia em que ela pôde reencontrá-lo em sua forma masculina. Nodoka arrodeia até Akane e também a abraça calorosamente. 

— Minha querida, parabéns! - ela também beija a cabeça de Akane, a deixando ainda mais tímida - Você é perfeita pro meu Ranma! Obrigada por essa notícia tão linda! 

Enquanto os pais ainda faziam uma cena, os jovens apenas observavam, e de todos eles, apenas Mousse esboçava uma reação condizente a um anúncio de noivado, rindo feito bobo e abraçando Ryoga a cada cinco segundos. Este que, estava tão duro quanto uma pedra, segurando suas lágrimas com muita força, deixando escapar uma ou outra, cabisbaixo e incrédulo. Bastante incoerência vinda de alguém que mais cedo colocou Ranma contra a parede para que ele fizesse exatamente isso. 

Kasumi ainda não sabia como reagir, queria comemorar, mas não sabia se devia. Konatsu, desconfortável, fingia um sorriso enquanto espiava Ukyo de longe, esta que permanecia exatamente igual, junto a Shampoo. As duas se olham, reconhecendo na outra o mesmo desespero que sentiam, estavam sem chão, trêmulas, incrédulas, derrotadas, só podendo ser compreendidas uma pela outra, pois mesmo depois de tanto esforço, depois de dois anos dando o sangue para protegerem seus noivados... elas o perderam.  

Nodoka enxuga as lágrimas, abraça os noivos simultaneamente e assume um semblante bem animado: 

— Bom... O que estamos esperando?!? Vamos comemorar!! 

Genma, que ainda se escorava aos prantos nos braços do amigo, se agita ao ouvir aquilo. 

— Você está certa, querida!! - exclama, muito entusiasmado – Tendo, aumenta esse som que eu vou pegar o saquê!! 

— É pra já, Saotome!! 

Dada a largada, inicia-se a segunda festa da noite. A música fica alta, quase estourando os ouvidos de todos, a bebida é colocada na mesa junto a várias taças, e os adultos parecem se tornar adolescentes de novo. Soun e Genma cantarolavam e dançavam uma valsa, mas óbvio, sem pararem de chorar. Nodoka, também muito agitada, se levanta e anuncia: 

— Podem deixar tudo sobre os preparativos comigo, crianças! - ela diz, se dirigindo à Ranma e Akane, que se retraiam mais e mais com o passar dos minutos – Eu vou lá dentro pegar alguns catálogos! 

— M-Mãe! - Ranma reclama, muito envergonhado com toda a algazarra que os adultos estavam fazendo – Pra quê isso agora?! 

— Ora, Ranma! Quanto mais cedo, melhor! - ela nem dá ouvidos a ele e se dispersa para o corredor – Esse casamento vai ser perfeito!! 

Deixando os dois quase desfalecidos de tanta vergonha, os outros finalmente encontraram espaço para cumprimentar os noivos. Começando com Kasumi, que apesar das suas ressalvas, se levantou e deu um largo sorriso para os dois, que se encolheram quando ela o fez. 

— Parabéns, minha irmãzinha! - diz, se agachando para dar um abraço em Akane, em seguida em Ranma – E a você também, Ranma! 

— O-... Obrigada, Kasumi... - Akane agradece. 

— Valeu... - Ranma faz o mesmo. 

— Eu... Fico tão feliz que vocês tenham se resolvido... - Kasumi pensa duas vezes antes de dizer aquilo, mas se esforçou para que sua desconfiança não ficasse aparente. Tentou canalizar nas coisas boas, demonstrando uma euforia de quem acaba de se dar conta que seus problemas acabaram. E melhor do que isso, que a sua querida irmãzinha iria se casar – Podem sempre contar comigo! 

E então, eles ouvem o barulho de algo caindo e se dispersam. Era Soun, que escorregou no chão por já estar começando a ficar bêbado de saquê. 

— Papai, tome cuidado!! - Kasumi se levanta e vai até seu pai, deixando Ranma e Akane sozinhos, e por eles, as coisas continuariam assim. 

— HÁ HÁ HÁ! Eu estou bem, Kasumi! - Soun gargalhava, todo desengonçado. Quando a filha mais velha o ajuda a se levantar, ele corre num impulso para a varanda e começa a gritar para a vizinhança - OUÇAM BEEEEEEMM!! A MINHA FILHA VAI CASAAAAAARR!! CASAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARRR!!! 

— P-Pai!! - Akane reclama, querendo um buraco para se enfiar. 

Para piorar ainda mais a situação, Genma, tão bêbado e afoito quanto ele, se junta na gritaria: 

— E COM O MEU FILHOOOOOOOOOOOOOOOO!! 

Nessa hora, Ranma é quem quase desmaia de tanta vergonha. Os dois velhos embriagados gritam mais um pouco sobre as boas novas para sei lá quem quisesse ouvir, deixando os filhos mais constrangidos do que já estavam. Só pararam quando correram para o caraoquê e começaram a cantar “we are the champions” num tom exageradamente elevado. 

Os noivos se levantam sem tirar os olhos de seus pais, estes que já fazendo uma cena pra lá de vergonhosa. Já imaginavam que eles fossem ficar felizes, mas também não era pra tanto. 

— Que palhaçada... - Ranma resmunga. 

— É... - Akane concorda. 

Por um segundo, eles pensam em sair de fininho daquele ambiente para que não fossem mais torturados pela vergonha. No entanto, uma outra figura se aproxima deles, uma estranhamente sorridente e de óculos engraçados. 

— Ora, ora, vejam só!! - Mousse começa, visivelmente muito feliz – Enfim o casório! Quem diria?! 

O amazona estava incrédulo que tudo realmente tomou aquele fim, ainda mais depois dos acontecimentos de ontem. Mas seja lá que raio caiu sobre a cabeça daqueles dois, estava tão louco de alegria que só conseguia erguer as mãos pro céu e agradecer aos deuses. Num movimento sagaz e esquisito, Mousse fica muito próximo de Akane e pousa as duas mãos sobre o rosto da menina, deixando ela, e sobretudo Ranma, espantados. 

— Oh, Akane Tendo! - mais rápido que a luz, ele dá um beijinho em cada bochecha da menina, seguido de dois tapinhas em uma delas, e mostra todos os seus dentes num enorme sorriso – Felicidades, minha querida!! 

Ficou tão atônita ao receber dois beijinhos de Mousse que ela nem soube o que responder, e nem como reagir, mas não é como se houvesse tempo pra isso, pois tão rápido quanto ele fez aquilo, ele se virou para Ranma, o deixando arrepiado. 

— Ranma Saotome... - Mousse estende a mão para o seu rival, lhe lançando um olhar muito intenso sem tirar o sorriso do rosto. O garoto de trança, desconfiado, fica receoso em aceitar, mas o faz – Sei que tivemos nossas diferenças, mas... - em outro movimento mais rápido que um raio de luz, Mousse o puxa para um abraço tão apertado que o faz perder o fôlego, seguido de dois tapinhas, ou melhor, tapões nas costas – Estou MUITO feliz por você, meu amigo!! 

Com as costas doídas e a falta de ar, Ranma fica embasbacado, era a primeira vez que Mousse o chamava de amigo. Para o amazona, aquele era o maior dos deleites. Significava o início de uma nova era, onde Ranma ficaria fora do seu caminho, e poderia, finalmente, ter a atenção de sua amada. Pelo menos ele achava isso, tanto que soltou Ranma e foi correndo para os braços dela. 

— Shampoo, meu amor! Nós finalmente podem-! 

Ao tentar abraçar a garota, foi nocauteado no chão por um chute no rosto. Shampoo, que não soltou um pio desde o anúncio, lança um olhar matadouro para o casal bem à sua frente. E Ukyo se junta a ela nesse embate silencioso. 

Primeiro elas trocam olhares com Akane, soltando faísca, a fuzilando sem nada dizer, esta que, apesar de desconfortável, sobretudo com Ukyo, considerando a conversa que estas tiveram mais cedo na escola, não se intimida, pois lembra-se de tudo o que elas lhe fizeram no dia anterior, motivadas a impedir que as coisas não tomassem exatamente o rumo que elas tomaram. Mas apesar da tentativa, e toda a maracutaia insensível que elas montaram, todo o esforço para caçarem aquele tanto de pretendentes e revirarem as noites escrevendo cartas na tentativa de impedir aquela união, Akane saiu por cima, por isso, não as temia. No fundo, até que estava satisfeita, pois se sentiu vingada pelo doce karma. 

Depois, elas olham para Ranma, mas desta vez, com uma melancolia evidente. Um olhar já dizia tudo, toda a decepção e tristeza das garotas que por anos o chamaram de noivo, fizeram de tudo por ele, e continuariam fazendo se tivessem a chance. Acabaram de ser publicamente esnobadas, trocadas por uma outra garota, oficializando de uma vez que ele fez a sua escolha entre todas elas. E ele foi escolher justo Akane, a garota com quem ele vive brigando, como também a menos graciosa, atenciosa e carinhosa. Era quase inacreditável, ainda mais depois de ontem, que ele tivesse cedido às necessidades da menina, por mais que tenha sido brutalmente enganado pela mesma. 

Foi um baque tremendo para as duas, sobretudo considerando todo o sangue que deram para evitar que aquilo acontecesse, até unindo forças entre si por esse motivo. Sentiam-se humilhadas, abandonadas, e ele sabia disso, por essa razão, covardemente revirou o rosto e não quis mais encará-las, pois apesar de tudo, sentia pena. Pena e vergonha. Não as queria mal, mas era inevitável que elas se sentissem assim. 

As duas meninas se viram de costas no momento em que sentiram as lágrimas chegando, mal conseguiam acreditar que aquilo realmente estava acontecendo, queriam gritar, espernear, sair no tapa com o primeiro que vissem, sobrecarregadas pelo sentimento de tamanha injustiça. Mas não o fazem, pois no fundo sabiam que de nada adiantaria. Elas perderam esse jogo. Juntas, elas correm para a entrada da casa, e se vão, sem dizer uma única palavra.  

Akane suspira aliviada, pois era um milagre que elas não tivessem feito nenhum escândalo. Mas ao olhar para Ranma, ficou aflita, percebendo a preocupação nos olhos dele ao ver as meninas irem embora. 

Konatsu não perdeu tempo, se levantou, e ligeiramente foi até os noivos, meio sem jeito. 

— B-Bom.. Eu preciso ir – ela anuncia, sorrindo timidamente enquanto acenava para eles - Parabéns pelo noivado! E... Obrigada pela festa! 

Dito isso, a garota vai atrás de sua amada sem pestanejar, deixando a sala apenas composta pelos noivos encabulados, dois adultos bêbados sendo cuidados pela filha mais velha de um deles, um amazona nocauteado no chão, e Ryoga, que enfim criou forças para se levantar e reagir. 

A música estava bem alta e agitada, então os noivos nem conseguiram ouvir os passos do menino porco se aproximando, este que chegou sorrateiramente com uma cara esquisita. Tentava fingir ânimo, mas era perceptível que algo o incomodava. Ryoga para na frente de Ranma, este congela diante do maior que o olha no fundo dos olhos. 

Lhe estende a mão para um aperto, demora uns segundos para aceitar, e quando o faz, é puxado para o primeiro abraço não sufocante da noite. Abraço esse que fez o coração de Ranma bater tão rápido quanto o de um passarinho.  

Ryoga nunca o abraçou. Só quando seduzido por algum de seus disfarces. Mas assim, nessas circunstâncias, era a primeira vez que ele o fazia.  

Com a cara enfiada em seu ombro, Ryoga inclina a boca perto do pé do ouvido do menor, o fazendo sentir um arrepio quando o vento de sua respiração lhe toca naquela zona tão sensível. Ranma se tremilica ainda mais quando Ryoga diz: 

— Obrigado, Ranma... 

Ranma arregala os olhos, entendendo de imediato a o quê ele se referia. Ryoga conhecia Ranma, conhecia sua teimosia, por isso, não imaginou que ele engoliria o orgulho dessa forma e faria a coisa certa, ainda mais tão cedo. Talvez, sem que o próprio Ranma percebesse, as palavras de Ryoga tenham realmente surtido efeito na sua consciência. 

Ryoga se afasta, o olhando nos olhos. Depois, chegara a hora da parte mais difícil.  

Ele respira fundo, e vai até Akane, que até então era uma mera expectadora, até se sensibilizara ao presenciar aquele abraço dos dois. 

Ele também a encara no fundo dos olhos, mas obviamente não a abraçou como fez com Ranma, apenas fingiu um sorriso, e disse: 

— Parabéns, Akane... 

Mais uma vez ela se encanta pela doçura de Ryoga, sorriu para ele, de forma como não conseguiu sorrir para ninguém que a parabenizou, e responde: 

— Obrigada, Ryoga... 

Quando ela o faz, não teve jeito. Ryoga sente o seu choro chegando à galope, abarrotado por toda a desilusão que ele mesmo corroborou para que se tornasse realidade. Confuso, devastado, e alternando entre o alívio e o sofrimento por ter conseguido alcançar seu objetivo, ele vira o rosto de forma brusca para que ela não o visse chorar, e a deixa, dando uma desculpa qualquer. 

— Eu... vou tentar acordar o Mousse. 

E se agacha na direção do amazona nocauteado, lhe dando alguns tapinhas no rosto. 

Ainda que confusa com tanta informação para processar, ela volta o seu olhar para Ranma mais uma vez, este que, no momento em que ela o fez, revirou o rosto em desconforto. Rondados por uma atmosfera muito caótica, uma música estourada, gargalhadas de seus pais, e um clima de desconforto provocado pelos outros convidados, eles ainda tinham que lidar com toda a confusão que estavam suas cabeças. 

Não fazia nem uma hora que eles eram oficialmente noivos, e tudo isso já tinha acontecido. Akane pensou que se sentiria melhor no momento em que as coisas encaminhassem, mas... a forma como Ranma evitava olhar para ela a fazia desejar que tudo aquilo fosse um sonho. E parecia um sonho. Sonho misturado com pesadelo. 

De repente, Nodoka retorna para a sala com uma caixa e a despoja sobre a mesa. 

— Olhem o que eu achei! 

Chama a atenção de todos, incluindo os velhos bêbados que dançavam abraçados. Quando Ranma vê do que se tratava, entra em pânico. 

— F-... Fogos de artifício?!? 

— Oh, que ótima ideia, querida!! - Genma empurra o filho e se apodera daquele entulho – Vamos acender!! 

— Q-QUÊ?!? - os noivos balbuciam. 

— Perfeito, Saotome!! - Soun elogia, indo junto com ele para o quintal para que pudessem acender os fogos – Hoje é um dia mais que especial!! 

— I-Isso é mesmo necessário?!? - Akane reclama, mais vermelha que o seu diadema. 

— Desista, Akane – Kasumi sugere, pousando a mão em seu ombro e sorrindo – Eles estão muuuito felizes. 

Contrariados pelos filhos, eles armam a artimanha no quintal, Kasumi e Nodoka vão apreciar. Ranma e Akane se afastam, morrendo de vergonha. Ryoga continuava tentando acordar o amazona enquanto mais e mais lágrimas escorriam pelo seu rosto. E Nabiki, ainda estava no banheiro, e só Deus sabe o que ela fazia lá por tanto tempo. 

Com tudo pronto, e antes de acender todos em fileira, eles gritam: 

— VIVA RANMA E AKANEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!! 

E o céu se acendeu com a luz daqueles fogos de artifício, fazendo um estouro que ecoou por toda a vizinhança, pintando a paisagem com tons de azul, amarelo e vermelho. Era, sem sombra de dúvidas, uma festa e tanto. Mas não era por menos, esperaram aquilo por tanto tempo. Aquele estouro de fogos de artifício não captava nem um terço da alegria que sentiam. 

O som foi tão alto que acordou Mousse, este que ainda sentia dor no nariz pelo golpe que levou. Atordoado, ele olha para um lado, para o outro, e pergunta: 

— Ca-... Cadê a Shampoo? 

— Ela já foi – Ryoga responde com certa dificuldade, pois sua voz já estava ficando embargada com o seu choro ininterrupto. Ele levanta o amazona e faz uma cara séria - Vamos embora logo. 

— Hein? Mas por que? - o amazona questiona, admirando todo o clima festil que se amplificou na sala – A festa mal começou. 

— É sério, vamo embora – aproveitando que todos estavam distraídos com os fogos, Ryoga o puxa pela gola da camisa e o arrasta pela entrada da casa, mas sem levantar a cabeça, impedindo qualquer um de ver o seu choro - Não aguento ficar aqui nem mais um minuto! 

Para a sorte de Ryoga, Mousse ainda estava meio lesado pelo golpe de Shampoo, e por isso, foi fácil convencê-lo a não pestanejar. O amazona apenas aceita seu destino e, decepcionado, se vai com o menino porco, se encarregando de levá-lo para comemorar em outro lugar. Pelo menos ELE iria comemorar. O mistério é se ele conseguiria consolar a imensurável tristeza de Ryoga. 

Agora, aquela era oficialmente uma festa só de família. Nodoka se vira para Akane e, ligeiramente, a arrasta para a mesa, tirando da caixa que trouxe o famigerado catálogo de casamentos. 

— Aqui, querida – ela começa a folhear as páginas - Como você gostaria que fosse? Tradicional? Moderno? Estilo oriental? Ocidental? Véu e grinalda? Quimono cerimonial? 

A sogra estava muitíssimo empolgada, até chamou atenção de Kasumi, que não se incomodou em se intrometer na conversa. 

— A nossa mãe se casou no estilo ocidental – a irmã mais velha pontua – Acho que a Akane ficaria linda de véu. 

— Tem razão! - Nodoka concorda – O vestido que ela usou naquela tentativa de casamento caiu muito bem nela! 

— E se ela reaproveitasse? - Kasumi sugere. 

— Oh, não! Pode trazer má sorte! Vamos escolher outro! Mais elegante e mais bonito! 

E as duas começam a tagarelar entre si, discutindo vestidos, decorações, festas, quitutes, convidados, datas. Ignorando completamente que a noiva em questão estava ali, distante, e até meio melancólica. 

Era para ela estar feliz. Deveria estar feliz. Talvez até precisasse, para não enlouquecer. Mas não conseguia, pois quando olhava para Ranma, ele revirava o rosto de imediato.  

Ele não conseguia evitar. Também queria estar feliz. Estava noivo. Oficialmente noivo. E da garota que ele am-... Bom... Mas de que interessa? De que importava estar prestes a realizar um sonho, se este só aconteceu por algo longe do seu controle? 

Se ela, por todo esse último tempo, se atirou em seus braços como forma de sacrifício? Se no fim das contas, nunca foi uma questão de sentimento? 

Pelo menos ele achava que não...  

“- Eu também não queria me casar com um garoto tão idiota, estúpido e egoísta!!” 

Por esse motivo, não conseguia olhá-la nos olhos. Aceitou a sua sina, pela sua honra, e pelo bem de todos, casaria-se com Akane. A levaria até o altar, assinaria seja lá o que fosse, e cumpriria a sua parte do acordo. 

E com tudo bem esclarecido, ela não precisava mais fingir simpatia por ele. Por isso, quando ela o olhava daquele jeito, toda acanhada e cheia de compaixão, se sentia um completo idiota. 

Desgastado de toda aquela algazarra, música alta misturada com fogos estourando no céu, seu pai e seu sogro bêbados e gritando, sua mãe e cunhada tagarelando sobre o casamento, e Akane o tempo todo tentando lhe fisgar o olhar, ele não aguentou. Virou a cara para todos e subiu para o seu quarto. 

Quando o faz, Akane sente o choro chegando de novo. Apesar de tanto barulho a cercando, o ruído mais alto gritava na sua cabeça. O ruído da culpa. 

É... Talvez não estivesse tudo resolvido e encaminhado. 

Aquele era apenas o começo. 


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Notas finais do capítulo

MUAHAHAHAHAHAHAHAAAAAA!!
E aí?? Esperavam por essa???
Pois é, sinto que os primeiros capítulos dão a impressão que a relação deles vai se desenvolver com base nesse segredo. LEDO ENGANO! Eu diria que AGORA a fic chegou no ponto que eu queria para esses dois, uma relação que se desenvolve à partir desse problema, com ambos cientes que estão se casando por um bem maior. Mas será mesmo que é só por isso? A gente sabe que não, né kkkkk. A grande questão é COMO eles vão se portar daqui em diante, com todos os preparativos pro casamento, pressão familiar, etc etc...
É isto gente, o capítulo 8 vai ser um respiro, mais como um pós de tooodos esses acontecimentos que rolaram entre os capítulos 5-7 que foram bem agitados, mas sinceramente? Tô precisando desse descansinho, uma escrita mais leve, pra compensar TOOODA essa emoção seguida da outra.
Mais uma vez espero que tenham gostado, que tenham se sentido realizados com o tão aguardado anúncio que nunca tivemos no anime ou mangá, e eu humildemente TENTEI nos proporcionar, com o máximo de carinho e respeito à obra original.
Talvez eu demore um pouco pois tô trabalhando que só, mas essa fic tem me feito muito bem, então não pretendo abandonar. Só peço paciência kkkk
Xêrooo ♥



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