A Pergunta escrita por Dona Maricota


Capítulo 2
Uniões infelizes


Notas iniciais do capítulo

Mas dona Mari, por que capítulos tãaaao longos??
Bom, acredito que é porque quando eu montei a fic (sim, eu tenho ela toda planejada no word kkkk), eu separei os capítulos como se fossem um episódio do anime. A quantidade de acontecimentos bate com o que aconteceria em um episódio de vinte minutos de Ranma. E bom, eu sou muito apegada à descrições, quero sempre deixar o mais imersivo possível, então posso me prolongar nas palavras.
Não sei se esse capítulo ficou tão bom quanto o primeiro, ele ainda é meio introdutório, a partir do terceiro as coisas vão ficar mais agitadas hehe.
Bom, vão simbora ler! Xô!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/806519/chapter/2

— O... O que você disse? 

— Ah, Ranma... Não me faça repetir... 

O vento soprava no rosto quente daqueles dois jovens, a trança de Ranma dançava no vento, a franja dela tampava seus olhos por uns instantes, escondendo toda a vergonha que sentia diante do garoto que acabara de chamar para sair. Nunca, em todos esses dezessete anos de vida, se imaginou abaixando a guarda dessa forma e se colocando numa posição tão vulnerável, nem quando era feita de refém por algum infeliz rival de seu noivo, ela se sentira tão exposta quanto naquele momento.  

Ranma, por sua vez, sentia como se o mundo tivesse parado de girar. Estaria mentindo se dissesse que não sonhara com cenas parecidas com aquela em seus sonhos mais doces, mas sempre ao acordar caía em si de que obviamente não passava de um sonho, e tudo aquilo era impossível de se reproduzir na vida real. Akane era bruta e orgulhosa demais para agir como uma garotinha apaixonada da sua idade, que toma iniciativas tímidas de demonstrar seu amor por um rapaz, sem contar sua clara antipatia por homens num geral. 

Mas lá estava ela, embora desajeitada, visivelmente se esforçando para engolir seu orgulho. E ela parecia tão... Tão feminina. Com aquelas bochechas rosadas, aqueles olhos marejados de quem está ansiosa por uma resposta, aquela boca trêmula e uma respiração acelerada que entregava um coração à mil por hora. Parecia até ter saído de uma cena de um mangá romântico genérico, e uma descrição desse calibre para alguém como Akane seria impensável até... ontem? 

— Err... - o mais alto se esforça para não gaguejar, como se não bastassem suas pernas que estavam ameaçando um tremelique - Você diz sair... de que jeito? 

Akane junta as sobrancelhas. 

— O que você acha? - ela dispara num tom um pouco mais impaciente, e quando percebe, respira fundo e tenta se recompor, voltando para o personagem que estava usando de todas as suas forças para encarnar – Do tipo... um encontro... 

Ranma arregala ainda mais os olhos, sequer conseguia piscar. 

— Tipo... só nós dois?... - ele insiste em sua redundância, pois apesar de Akane ter sido bem clara quanto ao seu pedido, ainda estava bom demais pra ser verdade. 

— Óbvio... 

Akane torna a abaixar sua cabeça, estava com tanta vergonha que poderia enfiar sua cara na terra, e a forma como Ranma estava fazendo-a se repetir e explicar o óbvio deixava tudo ainda mais embaraçoso para ela. O noivo estava atônito, quase se beliscando para se certificar de que aquilo não se passava de um sonho, mas sem que percebesse, começou a rir de nervoso: 

— Ah ha ha... Tá legal, qual é a pegadinha? 

— O quê?! - a menina volta a olhar pra ele com tamanha surpresa e uma inerente revolta. 

— Onde é que tá a câmera? - ele olha de um lado para o outro, por entre alguns arbustos e até no meio das árvores, sem perceber que era uma atitude, no mínimo, ofensiva – Vamos, apareçam! Eu sei que tem alguma equipe aqui! 

— Ranma...! - Akane torce o nariz e cerra o punho, finalmente mostrando uma faceta reconhecível. 

Ranma logo se espanta e percebe que acabara de cutucar a onça com vara curta, mas aquilo surpreendentemente lhe trouxe um alívio e a certeza de que estava falando com Akane, e não uma sósia do mal (ou do bem, sendo a original a versão malvada) que a substituiu. Ela morde o lábio inferior, canalizando toda a vontade que sentia de arremessá-lo à metros de distância dali, mas ela não podia explodir, precisava engolir todo o desaforo e seguir com o que planejou a noite toda. 

Ela lhe lança um olhar que misturava raiva com tristeza, fazendo-o cair em si de que talvez tivesse cometido o terrível equívoco de duvidar da garota, por mais absurdo que tudo aquilo parecesse. 

— Poxa, eu... - ela começa, com o rosto corado pela raiva e vergonha - Eu realmente tô me esforçando aqui... - suplica, deixando-se ainda mais vulnerável diante dele, que agora sentia o coração palpitando tão rápido quanto o de um passarinho – Tô me sentindo uma boba... 

A cabeça de Ranma explode como um vulcão em erupção, ele lê o rosto dela, que dosava nervosismo, raiva, decepção e medo, e encontra uma Akane, embora diferente, reconhecível. Agora ele tinha certeza, ela tava falando sério. 

O seu doce sonho virou realidade e estava bem diante de seus olhos, mas era tão inimaginável que ele começa a desassociar um pouco. Sente-se leve por estar realizado, mas também pesado pela culpa de ter duvidado dela. Não podia se dar ao luxo de deixá-la sem uma resposta por muito tempo, ainda que tudo aquilo fosse muito estranho. 

— E-Eu... - ele gagueja sem querer – Foi mal... é que... err... - Ranma brinca com seus dedos, cabisbaixo e tímido, não é como se ele não fosse tão desajeitado e orgulhoso quanto sua noiva - Você... Eu... Eu nunca te vi assim, Akane... Você é sempre tão bruta, violenta... e nem um pouco feminina... 

— ... Obrigada? - ela deixa escapar enquanto continha um soco muito bem dado. 

— Mas agora você... tá tão... fofa... 

Apesar dos pesares, Ranma conseguia conquistar a menina com muita facilidade. Agora ela se encontrava verdadeiramente tímida e segurando alguns suspiros. Foi a primeira vez que ele a chamou de fofa sem que houvesse algum motivo mirabolante por trás. 

Eles se sentiam desnudos ali, de frente um para o outro, agindo como dois adolescentes normais que confessam seus sentimentos, arrombando aquela muralha de orgulho que os separava há tanto tempo. Nem perceberam que ficaram alguns minutos em silêncio total, completamente envergonhados e sem saber como conduzir aquela situação. Foi um avanço muito abrupto para quem estavam estagnados no mesmo lugar há quase dois anos, ainda processavam o choque de tudo aquilo. 

Akane é a primeira a quebrar o silêncio, mais uma vez lembrando de todas as suas motivações que a empurraram para aquele momento que, apesar de ela não querer admitir, fora tão esperado. 

— Então... você... aceita? 

A doce e pausada voz dela o faz se arrepiar dos pés à cabeça, lembrando-o de que ele ainda não lhe deu uma resposta. 

— Eu... - Ranma leva sua mão até a nuca, coça desajeitadamente enquanto olha para o lado, sem conseguir encarar a menina nos olhos - Tá bem... Pode ser... 

Sua resposta foi longe do ideal, seu orgulho mais uma vez tomou as rédeas da situação e o fez fingir certa indiferença, quando na verdade estava gritando de alegria por dentro. Mas pra Akane, aquilo era o suficiente, só de ser uma resposta positiva ela já se surpreendeu. 

Ranma tinha tantas pretendentes, muito mais femininas, delicadas, e com o tato muito maior para o romance, diga-se de passagem. Mas ele sempre as rejeitou a não ser que houvesse alguma tramoia por trás que o convencesse. Akane nunca imaginou que ele aceitaria sua investida desajeitada de primeira, sendo ela uma pessoa que ele deliberadamente afirma que não suporta. 

A menina não conteve um sorriso inocente que, para Ranma, brilhava mais que o sol daquela manhã, pintando seu rosto de vermelho mais uma vez. 

— Legal! Digo... err... - ela fica ainda mais tímida por não conseguir esconder sua empolgação - Pra onde você quer ir? 

— Ah... - ele também deixa escapar um sorriso tímido e desajeitado, ainda não conseguia encará-la nos olhos de tanta vergonha – Sei lá... Foi você quem me chamou... 

— Ah... verdade... ha ha... - ela ri, sem jeito. Ela de fato não parou pra pensar nos detalhes, estava mais preocupada se Ranma iria aceitar ou não, mas agora, colocada sobre a parede, ela precisava ser ligeira, então sugeriu a primeira coisa que lhe veio à cabeça - Que tal o cinema? 

—Tá bem... - a voz dele desafina, parecendo um garotinho na puberdade, arrancando uma risadinha dela e deixando-o ainda mais envergonhado. Ele tosse e tenta fazer sua voz parecer mais grossa do que realmente era – Quando? 

— Hum... sexta? Depois da aula? 

— Pode ser... 

— Então tá... 

— Uhum... 

— Legal... 

— Legal... 

A cena era pateticamente adorável. Dois marmanjos na porta da maioridade agindo como duas crianças do jardim de infância sem nenhuma experiência com paquera. Lutando bravamente contra o seu orgulho e sendo, pela primeira vez, sinceros. Não foram perfeitos para uma primeira investida, mas tratando-se dos dois, dava pro gasto. 

Sequer se olhavam nos olhos de tanta vergonha, e mais uma vez repetiam a mesma cena de ficarem cabisbaixos em silêncio por vários minutos sem perceberem. Mas felizmente foram salvos pelo gongo, ou melhor, pelo alarme da escola, que chamava os alunos de volta para suas classes. 

— Bom... e-eu vou pra sala – Akane vira de costas e retorna para o caminho de onde veio, dá uma última olhada em Ranma, ainda com muita vergonha, mas muito meiga - Não fica aí parado, bobo. Vamos! 

— T-Tá! - ele responde, obedecendo e seguindo-a. 

Ambos seguem seu caminho completamente atônitos pelo que acabaram de experienciar, e decididos a não se encararem até o fim do dia.  

“... Mas afinal, o que diabos acabou de acontecer?!”. 

Essa foi a pergunta que se repetiu na cabeça dos dois nas próximas horas. Ou melhor, dos três. 

Uma terceira cabeça, que se encontrava por entre as moitas do matagal, saía lentamente de seu esconderijo enquanto via o casal se afastando de volta para o prédio da escola. Ukyo, que com maestria não foi percebida por nenhum dos dois pombinhos, seguiu Ranma até o lugar marcado por Akane e ficou ali até o último segundo, espionando cada movimento daquela cena bizarra protagonizada pela garota que até então era sua maior concorrente. 

Mas Ukyo nunca, nem nos cenários mais improváveis que montava na sua cabeça, imaginava ver o dia em que Akane tomaria uma iniciativa como aquela. 

— Isso tá muito estranho... - a pizzaiola comenta consigo mesma enquanto limpa seu uniforme que sujou de terra – A Akane não é assim tão... tão dada!?! 

Ela estava em negação, começou a andar em círculos e chutar a terra, sentia uma mistura de ciúme, indignação e MUITA curiosidade, como se tivesse acabado de presenciar um gore proibido em pelo menos sete países. E fuxiqueira como era, se via incapacitada de conter seus impulsos e deixar isso pra lá. 

— Tem caroço nesse angu – Ukyo pondera, caminhando sozinha até o prédio da escola. Alguma coisa certamente aconteceu para Akane tomar aquela atitude, e ela daria um jeito de descobrir – Me aguarde, Akane Tendo. 

 

—--

 

O sol já estava se pondo quando a velha amazona ouviu o sino da porta balançar, este era o horário em que o café gato mais costumava receber fregueses voltando do trabalho para um happy hour, mas ela se surpreendeu quando avistou Ranma Saotome passando por aquela porta, vindo em sua direção. 

— Genro! - Cologne o chama com um sorriso no rosto – Que surpresa mais agradável! 

— E aí, demônia – ele olha para um lado e para o outro e avista uma garçonete que nunca viu na vida servindo as mesas – Quem é aquela? 

— Ah, esta é Shiharu – a senhora chama a atenção da garota que parecia ter vinte em poucos anos – Shiharu, conheça meu genro. 

— Olá! - ela acena. 

— Oi – ele a responde, lançando um olhar impaciente para Cologne em seguida – E eu não sou seu genro. 

— Não seja mal educado – Cologne faz um sinal com as mãos para que a garota volte aos seus serviços - Shiharu está substituindo Mousse enquanto ele não volta da China. 

Ranma então se lembra um dos motivos de seus dias não estarem mais tão caóticos. Mousse foi para a China com a promessa de passar uma temporada com sua família e retornar mais forte para derrotar Ranma, já haviam alguns poucos meses desde que o garoto cegueta partiu, e ele poderia aparecer a qualquer momento propondo mais uma luta inoportuna na tentativa de conquistar o coração de Shampoo. Mas por enquanto, o café gato parecia incompleto sem ele. 

Cologne dá uma tragada lenta em seu longo charuto e olha para Ranma com muita curiosidade. 

— Se você veio até aqui, é porque quer alguma coisa – ela afirma. 

Ranma quase se retrai, sabendo o quão esperta e ardilosa era a velha, mas não recua de seu plano inicial. 

— Cadê a Shampoo? Quero falar com ela. 

— Veio ver a Shampoo?! - os olhos dela arregalam pela surpresa, em seguida ela bafora com um sorriso satisfeito no rosto - Há! Esse é meu genro! Gosto de ver assim, tomando a iniciativa! 

— Para de pensar besteira! - ele ordena, envergonhado, mas ela obviamente não dá atenção. Ele a segue até a parte interna do restaurante, onde ficava um humilde lar para as amazonas. 

— Shampoo, seu noivo veio lhe ver! - grita a senhora. Ser intitulado como noivo de Shampoo sempre o deixava desconfortável. 

Ranma ouve passos apressados se aproximarem do corredor, ele não pôde nem pensar duas vezes antes da menina que vinha correndo se atirar em seu pescoço, completamente eufórica. 

— Ai Ren! - a amazona mais nova enchia o rosto dele de beijinhos enquanto ele tentava inutilmente afastá-la – Shampoo tão feliz! Ranma vir ter encontro romântico?! 

— Ai Shampoo, que coisa! - ele a empurra com um pouco mais de força, mas ainda tomando cuidado para não a machucar – Eu quero ter uma conversa séria com você! 

— Aiya... - a menina se retrai, percebendo no tom e no olhar que seu noivo não estava para gracinhas. 

Shampoo leva o menino até uma pequena salinha onde ela e sua bisavó tinham suas refeições, eles se sentam de joelhos de frente um para o outro, apenas com uma mesa de centro os separando. Cologne, que de boba não tinha nada, se pôs no pé da porta para espiar a conversa sem ser percebida. 

A amazona mais nova, muito educada, serve um pouco de chá para os dois, e apoia os dois braços na mesa, muito interessada no que seu noivo tinha a dizer. 

— Tá bom, Ranma – ela leva a xícara de chá até sua boca - Vá em frente. 

Ranma também bebe um gole de chá e assente. 

— Seguinte, Shampoo – ele cruza os braços, o tom da sua voz era sério - Eu sei que você adora bancar a espertinha, então não minta pra mim. 

— Aiya! Shampoo nunca mentir pra Ranma – ela finge um olhar inocente, cínica. 

— Sei... - ele franze o cenho e suspira – Bom... Aquele mochi que você fez ontem... 

— O que a Akane comer? - ele acena a cabeça positivamente – Ela já tá melhor? 

— É aí onde eu quero chegar – Ranma se escora na mesa, aproximando seu rosto de Shampoo para tentar ler com cautela as expressões da amazona, queria garantir que ela não viria com gracinhas - Você tem certeza que aquele mochi não dá nenhum outro efeito colateral em garotas? Nenhum comportamento esquisito, ou feitiço bizarro? 

— Humm... - Shampoo leva o seu dedo indicador até o canto da boca, pensativa sobre o que Ranma acabou de lhe perguntar. Ela se levanta, abre uma gaveta da cômoda ao lado, e de lá tira um livro. Senta-se mais uma vez e começa a folhear o livro, até parar em uma página específica - Aqui! Mochi do amor! 

Ranma dá meia volta na mesa e fica lado a lado com Shampoo, encarando aquele livro que parecia ter saído das velharias de Cologne. Obviamente era um livro chinês, mas ele se alivia ao avistar uma tradução japonesa na ponta da página, se certificando de que a amazona não teria como mentir. 

— Ser receita lendária das amazonas para conquistar homem amado. Ser feito com arroz, água, amido de milho e ervas de feitiçaria - ela lê cautelosamente enquanto passa o dedo indicador sobre as letrinhas – O homem amado deve comer mochi de frente para a amazona, e após cinco minutos, ele se apaixonar perdidamente por quem preparar o doce. O efeito durar vinte e quatro horas, então homem deve comer todos os dias para efeito ser permanente. 

Ranma levanta a sobrancelha desconfiadamente para ela. 

— Então você pretendia me dar essa porcaria pra comer todos os dias? 

— Hi hi! Sim! - ela confirma, sem nenhum pudor, deixando-o irritado. Ela volta a ler os avisos do livro – Mas cuidado! Este mochi não poder ser consumido por mulheres, caso acontecer, mulher vai ter séria crise de labirintite. Efeitos colaterais como enjoo, tontura e vômito serem comuns. 

— Hum... - Ranma lê o verso em japonês silenciosamente, se certificando de que batia com o que ela dizia, procurava algo mais além daquilo, mas a escrita parecia ter terminado ali – Tem certeza que não tem mais nada? 

Shampoo vira a página, e dá de cara com uma outra receita mágica. 

— Não, ser só isso mesmo. 

— Mas... - ele tenta encontrar alguma lógica na sua cabeça - E se a garota que comeu o mochi for uma chata, bruta e violenta que mais parece um homem? Será que o mochi não se confunde? 

— Ranma, não ser bobo – Shampoo ri perante as baboseiras do noivo – Aqui dizer claramente que mochi só fazer homens se apaixonar por quem cozinhou o mochi, e mulheres passar mal.  

Ranma começa a ter mais certezas daquilo que parecia impossível. De fato, Shampoo não estava mentindo, tinha uma tradução em japonês ali para comprovar. Mesmo que o mochi achasse que Akane era um homem, ela teria se apaixonado por Shampoo, e se o efeito da receita é de vinte e quatro horas, já teria passado antes mesmo dela chamá-lo pra sair. 

Agora não restavam dúvidas. Akane não estava sob efeito de nada. Ela estava 100% sã. 

E aquilo arrancou um sorriso bobo totalmente involuntário de Ranma, acompanhado de um rubor nas bochechas e um olhar de encanto, surpreendendo Shampoo. 

— Então tá! - Ranma levanta num pulo muito animado, sorrindo para a amazona e caminhando até a saída - Valeu, Shampoo! 

Shampoo acena para ele e vai até a entrada, observando-o ir embora tão feliz que cantarolava no caminho, andando a passos que mais pareciam uma dança de alegria. Ela nunca o viu assim. 

Cologne, que estava bem ao lado de Shampoo, levanta uma sobrancelha e semicerra os olhos, muito interessada no comportamento do genro. 

— Shampoo, é bom você ficar de olho nesse garoto. 

— Muito estranho né, bisavó? - a esperteza era de família, Shampoo começa a ponderar todas as possibilidades do que poderiam justificar a visita de Ranma, seguida de perguntas muito específicas e uma reação inédita - Será que acontecer algo com Akane? 

— Não sei, minha neta – a senhora responde, voltando para a entrada do café e lançando um olhar sério para a mais nova – Mas eu sugiro que fique em alerta para proteger o que é seu. 

Cologne retorna aos afazeres, deixando uma Shampoo muito desconfiada e curiosa para entender o que se passava na cabeça do seu noivo. E ela iria descobrir, custe o que custar. 

 

—--

 

À noite daquele mesmo dia, Akane entra no seu quarto após jantar com sua família, tendo seu primeiro momento de privacidade desde que chegou em casa. A menina se atira em sua cama, afoga o rosto no travesseiro, e libera um grito que estava guardado na garganta desde o primeiro olhar que trocou com Ranma naquele dia.  

O travesseiro abafou o som, ela também batia perna no colchão, estava extravasando toda a vergonha e frustração acumulada. Só mesmo uma situação tão atípica quanto aquela para fazê-la engolir seu orgulho a seco, de modo que sentia arranhar sua garganta. 

Como se já não bastasse a difícil tarefa de se deixar vulnerável para Ranma, ainda tinha de ouvi-lo soltar provocações sem o direito de revidar. Buscava um lugar de paz em sua mente, tão abarrotada por todos aqueles problemas e incertezas, tentando se lembrar a cada segundo de que aquilo era por um bem maior. 

O plano era “simples”, afinal. Casar com Ranma era a única solução palpável para salvar a sua família, então a partir daquele momento precisaria se dar melhor com ele, para que então a ideia de se casarem não pareça tão intragável para ambas as partes, e assim, levarem o compromisso adiante. As duas famílias se juntam, a academia estará a salvo, e problema resolvido. 

Só tinha um obstáculo: ela. 

Ele também, mas ela principalmente. Sua personalidade forte como um touro, sua delicadeza de um tijolo e seu pavio exageradamente curto combinados a tornavam completamente incapaz de tomar as rédeas daquele plano sem que acabasse colocando tudo a perder, arremessando Ranma a quilômetros de distância na primeira provocação.  

E como ele a provocava com facilidade. 

Com aquele olhar cínico, e a proeza que ele tinha de encontrar os mais diversos adjetivos para ofendê-la. Com aquela risada de gralha que ele dava quando ela se irritava, e sorria debochadamente, exibindo aquelas covinhas charmosas nas bochechas. Ou quando ele piscava para ela quando percebia que ganhara uma discussão, dando destaque àqueles olhos pretos, que mais pareciam um azul escuro, ou um céu a noite, com estrelas que brilhavam mais forte quando ele notava a sua presença. Ou quando ele jogava a sua trança para atrás do ombro quando estava sendo arrogante, e ela podia jurar que conseguia sentir o cheiro do cabelo dele, que era surpreendentemente agradável. O simples fato dele ter cabelo grande já a irritava, pois ela adorava homens de cabelo comprido, e ele não merecia ter aquele cabelo tão perfeito. Ou aquele corpo tão atraente, tanto como garoto, quanto como garota, que arrancava suspiros de todos, sem nenhuma exceção. Ou aquela pele que, apesar de viril e calejada de tantas batalhas, era tão macia. E aquela boca que... que... 

Akane arregala os olhos e quase dá um pulo, percebendo que seu coração estava acelerado, e seu corpo inconvenientemente quente. Sem ela perceber, acabou embarcando em uma viagem nas fantasias que ela não queria admitir em voz alta. Enterra novamente a cabeça no travesseiro com força e extravasa mais um urro de frustração. 

Por um segundo ela pensou em desistir de tudo aquilo por ser vergonhoso demais, mas não tinha mais pra onde correr. Seria duplamente vergonhoso se ela amarelasse. E este orgulho ela se recusaria a engolir. 

A menina fica de barriga para cima, ainda abraçando o travesseiro com as mãos. Seu rosto ficava mais e mais quente à medida que criava os cenários na sua cabeça de como sucederia seu encontro com Ranma em poucos dias. Suspira, assustada e insegura, pensando se no fim das contas, estaria fazendo mesmo a coisa certa. 

Olha para a cômoda ao lado de sua cama e busca pela foto de sua mãe, que deixava o mais perto de si para que ficasse inspirada. Ela se senta, pega a foto e volta a se deitar, erguendo o porta-retrato e buscando conforto naquele sorriso doce que a sua mãe registrou. 

— Mamãe... - ela alisa o rosto da figura materna com o dedo, delicadamente, como quem pudesse sentir a presença dela ali consigo - Será que é isso que você ia querer?... 

A menina abraça a fotografia com força em seu peito. 

— Por favor... Me dê coragem... 

 

—--

 

Tanto para Ranma quanto para Akane, aquela semana se prolongou a passos de tartaruga. Mas depois de torturantes horas recheadas de interações desconfortáveis, deslizes por parte do noivo que ainda não se acostumou com a ideia de não provocá-la, e muitas explosões internas contidas pela menina durante o período escolar, finalmente chegara a sexta-feira. 

Ambos estavam trêmulos em seus assentos, lado a lado, evitavam ao máximo cruzar os olhares tímidos, quase derretendo de tanta ansiedade naquelas cadeiras esperando o fim da aula. Akane mordia intensamente seu lápis enquanto Ranma balançava sua perna, eram tantas perguntas que pairavam em suas cabeças. E se desse tudo errado? E se ele mais uma vez falasse alguma besteira que a deixasse tão irritada a ponto de deixá-lo plantado no cinema? E se ela ficasse tão nervosa a ponto de não conseguir mais bancar a “nova Akane” e colocar tudo a perder? E se eles começassem a brigar por alguma besteira e isso se escalasse para uma troca de farpas violenta e destruísse toda e qualquer possibilidade deles finalmente se darem bem? 

Definitivamente, tinha tudo pra dar errado. E o clima começou a esquentar mais ainda no momento em que o último sino da escola tocou, arrancando arrepios dos noivos. 

— Por hoje é só, classe! Até semana que vem! - a professora libera a turma e os alunos começam a se levantar, quebrando o silêncio que reinava antes. 

Ranma e Akane permanecem sentados, olhando para direções opostas. Seus amigos os convidam para se juntarem a eles, mas ambos os rejeitam e permanecem em seus assentos, esperando que todos os alunos se retirassem. Eram tão tímidos e desajeitados que não conseguiam conceber a ideia de serem flagrados saindo juntos, sabendo do alvoroço que seus colegas fariam. 

Quando enfim ficaram a sós, Ranma respira fundo, soltando ar pela boca. Se levanta, e fica de frente para Akane, que se vê na obrigação de finalmente olhar para ele. 

— E aí, vamo? - ele pergunta, num tom quase autoritário. Ele realmente era péssimo nisso. 

— Vamos... 

Ela pega sua maleta, se levanta e o segue. Evitando ao máximo trocarem qualquer tipo de contato visual para que não haja um constrangimento ainda maior, os noivos caminham lado a lado, atravessando a porta da sala, saindo pelo caminho menos movimentado possível. 

Mas manter o silêncio seria constrangedor demais, a nível de doer a espinha. Então Ranma atreve mais uma tentativa desastrada de quebrar o gelo: 

— Tomara que ninguém veja a gente – ele se arrepende segundos depois, percebendo que aquilo poderia ser muito mal interpretado, dito e feito. 

— Você tem tanta vergonha assim de ser visto comigo? - a alfinetada dela atravessa seu coração. 

— Não é isso! - ele resmunga - É só... Ah, você sabe como são esses otários! Não vão calar a boca se virem a gente num... num... - ele fica tímido ao lembrar da situação em que estava inserido. Akane então decide deixar mais essa passar, respirando fundo e contendo a vontade de perder as estribeiras, aos poucos ela estava pegando o jeito. 

Eles saem do prédio da escola e caminham em direção à saída, tentando chamar o mínimo de atenção possível. E quando atravessam o portão da escola, viram para o lado oposto de suas casas, para o lado mais urbano de Nerima. 

Logo atrás deles, uma figura sapeca se escora no portão e torce o nariz diante da cena. 

— Quero só ver onde isso vai dar – Ukyo lambe os beiços, confiante de que o encontro seria um desastre. 

 

—--

 

— E aí, qual você quer assistir? 

— Hummm... - Ranma leva a mão ao queixo enquanto analisa os pôsteres no telão. 

Fazia tempo que ele não ia ao cinema, e quando ia, não costumava escolher o filme, sempre era arrastado pelos amigos ou pelo pai para ver algum blockbuster do momento. Mas Akane não tinha cara de quem gostava de filmes de ação violentos, aí ficava difícil de opinar. 

— Sei lá, qual você quer ver? 

— Ah... - tão desajeitada, nem mesmo esse detalhe ela parou para pensar. Era um encontro, então fazia sentido eles assistirem algo que favorecesse o clima – Que tal aquele? 

Akane aponta para o cartaz mais cor-de-rosa, estampado por um casal abraçado e uma logo em letras cursivas. Parecia uma comédia romântica de quinta categoria, coisa que fez o garoto querer vomitar. 

— Só uma menina sem graça como você pra gostar dessas coisas... - ele nem percebeu que a provocou mais uma vez, era tão automático dele, tão espontâneo. Ele olha para ela de relance e se arrepia ao ver as sobrancelhas juntas, o punho fechado e uma cara de quem estava segurando um tabefe – M-Mas se você quer tanto, tudo bem. 

— Não Ranma, tá certo – ela se sai vitoriosa lutando contra seus instintos de revidar, fazendo-o mais uma vez se questionar se aquela era mesmo Akane e não uma sósia. Mas a verdade é que Akane não era tão fã daquele tipo de filme, só pensou que combinava com a ocasião. E já que ele não queria, ela decidiu arriscar sugerindo algo mais distante de sua zona de conforto – E aquele lá? 

Ranma se espanta quando olha na direção em que o dedo dela apontava. Era um filme de terror, parecia extremamente sangrento e nem um pouco atrativo para uma menina da idade dela. 

— Tem certeza? 

— Você não gosta? - ela pergunta, desapontada de antemão. 

— Gosto, mas... - ele fica sem jeito, deixando um riso escapar – Eu sabia que você era bruta, mas não pensei que também fosse carniceira! Há há há! - ele gargalha espontaneamente, mas para quando percebe que, mais uma vez, a provocou sem nenhum motivo.  

Akane torce o nariz, morde o lábio e respira fundo. “Vamos lá, Akane. Ele é um canalha insuportável, mas é o canalha que vai salvar a sua família da desgraça”, ela tenta canalizar isso em sua mente, apagando a chama da fúria que crescia dentro de si. 

— Bom, vamos comprar os ingressos – ela sorri para ele, arrancando um rubor em suas bochechas. Essa nova postura dela o fazia se sentir um completo imbecil quando ele a provocava sem perceber, precisava controlar aqueles velhos hábitos. 

Os dois vão até a bilheteria, enquanto isso, um par de olhos cor de vinho os avista de longe, escondida por entre as plantas artificiais da praça.  

— Humm, cineminha né, Ranma? - Shampoo fala consigo mesma, mordendo o lábio de tanto ciúme - Mas o que acontecer pra Akane do nada agir como uma florzinha? Não fazer sentido! 

Shampoo começa a montar várias teorias na sua cabeça, e ainda assim nenhuma delas conseguia dar um pingo de coerência para a Akane que acabou de presenciar, engolindo os desaforos de Ranma como uma donzela, coisa que ela nunca foi. Será que ela bateu a cabeça? Ou comeu algo estragado, provavelmente cozinhado por ela mesma? Ou pior, será que foi abduzida por alienígenas e sofreu uma lavagem cerebral?? 

Viu o casal se afastar e seguir seu caminho para as salas de cinema, tirando-a de seu transe. A amazona pensa em agir, mas é surpreendida por mais uma conhecida indo até a bilheteria. 

— Ukyo? - Shampoo sai do meio das plantas e se aproxima lentamente, tentando captar alguma coisa sem ser notada. 

— Qual foi o filme que aquele casal escolheu? - pergunta a garota de uniforme masculino, apontando para os pombinhos que acabaram de entrar na sala. 

— O massacre do homem encapuzado com um aspirador de pó e uma metralhadora: parte III – responde o bilheteiro com muito desânimo. 

— Me veja um ingresso, por favor! 

Ukyo paga por um bilhete e vai em direção à mesma sala que Ranma e Akane entraram, ela tinha uma feição maliciosa e um olhar determinado. Shampoo, logo atrás, e sem ser percebida, espera a pizzaiola sair de sua vista para que também possa tomar sua vez na bilheteria. 

— Shampoo querer mesmo ingresso que aquela ali! 

 

—--

 

O clima de tensão ia aumentando a medida em que a mulher dentro da tela atravessava um corredor escuro segurando apenas um taco de baseball, o assassino do aspirador de pó uma metralhadora estava à solta, e ao que tudo indicava, no final daquele corredor. Se passaram apenas vinte minutos desde que o filme começou, mas já estava horripilante pra dedéu. 

Ranma não ia admitir nunca que estava com um pouco de medo, como homem, ele foi criado pra ser orgulhoso e nunca admitir suas fraquezas. Akane, por outro lado, já estava arrependida de ter se arriscado assim, era muito medrosa com filmes de assombração e suspense, estava quase se encolhendo por inteira na poltrona, tampando os olhos com as próprias mãos. 

O noivo olha para ela de relance e se delicia ao vê-la tão vulnerável. 

— É uma bobona mesmo – ele tira sarro, arrancando uma das mãos dela de frente do rosto – Akane, como você paga pra ver um filme se você nem tem coragem de assistir? 

— Cala a boca! - ela ordena, puxando a mão de volta para cobrir seus olhos – Eu escolhi essa porcaria porque achei que você ia gostar! 

Ele se surpreende com mais uma atitude da noiva, que acaba de confessar que se submeteu às preferências dele. E ele secretamente achou aquilo uma graça. Agora se encontrava no dever de tornar aquilo mais prazeroso para ela. 

— Relaxa aí, mulher – ele pega o balde de pipoca que estava em seu colo e coloca no meio dos dois – Toma uma pipoquinha. 

Ela espia pela brecha entre seus dedos, trêmula, leva suas mãos até o balde, quando o som estrondoso de um jumpscare a fez saltar na poltrona. 

— AHH! - ela solta um gritinho demasiadamente feminino e volta a tampar os olhos, se encolhendo toda e arrancando uma risada baixinha de Ranma. 

— Mas é medrosa, viu! - ele ri, baixo o suficiente para não incomodar as outras pessoas da sala. 

— Urgh... E você fica aí rindo às minhas custas – ela faz um biquinho emburrado – E você? Não tá nem com um pouco de medo? 

— Eu não - ele alega, arrogantemente – Mas confesso que nem tô prestando muita atenção, te assistir tá bem mais engraçado. 

— Sei... - ela começa a se empanturrar de pipoca com uma cara emburrada, mas ainda assim agradável aos olhos dele, quase fofa.  

Ranma e Akane voltam seus olhos para o filme, dividindo o mesmo balde de pipoca. Apesar das ocasionais amedrontadas da menina, o clima estava surpreendentemente bom, eram dois jovens aproveitando a companhia um do outro sem nenhum sinal de que estavam prestes a se estapear. Como dois amantes normais. 

E aquilo estava muito mais amedrontador que o próprio filme para Ukyo e Shampoo, que se escoravam em seus assentos àlgumas fileiras atrás do casal. Ukyo estava incrédula, tinha certeza que aquele encontro tinha tudo pra sair da forma mais desastrosa possível, mas lá estavam eles, parecendo um belo par de namorados. Ela queria muito ir até lá e acabar com tudo, mas sua curiosidade em ver até onde os dois iriam era muito maior. Shampoo, por outro lado, alternava entre espiar os noivos e Ukyo, que ainda não notou a presença da amazona. Ela era um pouco mais ardilosa que a pizzaiola, quanto mais o tempo se passava, mais as engrenagens rodavam na sua cabeça, montando planos maquiavélicos silenciosamente. Mas ela só poderia colocar eles em prática no momento certo, então se contentou em analisar cada movimento dos envolvidos tal qual uma gata que caça sua presa. 

O par estava tão distraído que acabaram enroscando seus dedos no momento em que foram pegar mais pipoca, e aquilo foi mais apavorante que o mais barulhento dos jumpscares. Se afastaram em um pulo e trocaram olhares tímidos, mas ainda, com certa ternura. Como um bom e velho clichê. 

Eles se ajustam nas cadeiras e fingem que aquilo não aconteceu, tremendamente envergonhados. Akane precisou respirar fundo para se controlar, não estava nem um pouco habituada com situações como aquela, e quando se sentia intimidada, era aí que acabava saindo da linha e sendo ríspida. Ranma estava se divertindo tanto que acabou esquecendo que aquilo se tratava de um encontro, e ele, enquanto homem, sentiu o corpo ficando mais quente quando começou a ponderar se deveria tomar uma iniciativa. 

“E se eu segurasse a mão dela?... Não! Não consigo!... Mas e se ela estiver esperando por isso?... Argh! Mas é vergonhoso demais!” 

Olha discretamente para a menina, que estava com os olhos grudados no filme, tentando fingir que não estava tão nervosa a ponto de explodir. Os olhos dele grudam naqueles lábios trêmulos, poderia passar horas e horas os admirando como se fossem uma pintura. Seu coração começa a bater mais forte, e então, procurando pensar o mínimo possível, ele se deixou guiar por seus instintos. 

Ranma volta o seu olhar para a tela, finge um bocejo seguido de um espreguiçar, que conduziu seu braço para em torno da poltrona de Akane, ela felizmente não percebeu a sua tática clichê. Ele tinha visto poucos filmes de romance na vida, então precisou se guiar pelo pouco que aprendeu.  

Faltava pouco, era só descer um pouquinho a sua mão e tocaria o ombro dela. Um movimento tão simples requeria uma coragem que ele não sabia se teria, uma gota de suor escorre em seu rosto, seu coração batia tão forte que ele se tornou capaz de ouvi-lo, e sentiu que causaria uma explosão no momento em que sua mão trêmula encostasse nela. E estava tão perto. 

Respirou fundo, decidido a agarrar o ombro daquela menina nem que fosse a última coisa que fizesse. Quando de repente, são surpreendidos com mais um estrondoso jumpscare. 

— AHH! - sem aviso, ou que ela mesma pudesse prever, a menina se atira no peito do maior, enfiando sua cara ali buscando proteção daquele assassino em série por trás da tela.  

Estava tão inerte com o susto que demorou uns bons segundos pra se ligar do quão abrupto e íntimo foi o seu movimento, e ficou tão envergonhada que se aterrou ainda mais ali, com medo de ver a reação do seu noivo. Ele, por outro lado, foi totalmente pego de surpresa, e acabou entrando em êxtase. Tê-la ali, abraçando-o com a cara enfiada em seu peito, assustada, e de certa forma, entregue, o jogou nas nuvens. 

Ela ouviu o coração dele bater bem forte, e tomou aquilo como uma resposta positiva, lhe dando coragem para se ajustar e olhá-lo no rosto. Ambos estavam mais vermelhos que aquele sangue artificial jorrado na tela, e sentiam que poderiam gritar mais alto que as vítimas daquele assassino em série. 

— D-Desculpa... - ela pede, muito tímida e cabisbaixa. 

— Desculpa eu... 

“... Desculpa eu?!? Que sentido isso faz?!?”, ele grita pra si mesmo mentalmente. Estava tão nervoso que se embananou nas próprias palavras, falando a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Agora estava se sentindo um completo idiota e capaz de se comprimir todo naquela poltrona. 

Mas ele não esperava que ela sequer prestou atenção no seu deslize, também estava tão nervosa quanto ele e muito mais focada em sua própria performance. Ainda tinha um plano pra seguir, e talvez aquele impulso fora a brecha necessária para agir. 

Para o desespero do noivo, em vez de Akane voltar a sentar normalmente, ela se escora, deitando a cabeça no ombro dele. Um movimento totalmente ousado para alguém como ela, por mais simples que fosse. Agora ele estava quente como um vulcão entrando em erupção, era uma mistura de sensações: ansiedade, medo, alegria, dúvida, mas acima de tudo, estava maravilhado. 

Ela se preocupou quando percebeu que o ombro dele ficou duro como uma pedra, fazendo-a se perguntar se aquilo não foi cedo demais. Mas antes que ela pudesse dar meia volta e se afastar, a mão de Ranma finalmente alcança seu ombro, um gesto firme, porém amoroso. Akane arregala os olhos e sente a mesma explosão interna que ele, sentindo a exata mistura de coisas, entrando em total sintonia. E nem perceberam quando começaram a sorrir feito dois bobos, como se tivessem acabado de vencer uma batalha contra si mesmos. Talvez, se pudessem ficar assim mais vezes, tão perto um do outro sem trocar nenhuma palavra, quebrar aquela muralha de orgulho de vez em quando não parecia tão ruim. 

E cá entre nós, eles nem prestaram atenção no filme dali em diante, estavam muito ocupados contemplando aquele lugar de paz em suas cabeças, aproveitando cada segundo naquele refúgio mental desencadeado pelo toque um do outro. Como se a Terra tivesse parado de girar, e todos os outros tivessem desaparecido, restando apenas eles. 

Mas bem, era só uma sensação. Pois todo aquele clima romântico estava despertando uma inveja exacerbada das garotas algumas fileiras atrás, que agora tinham certeza que precisariam agir o quanto antes. 

 

—--

 

— E aí, você gostou do filme? - pergunta Akane com um sorriso no rosto enquanto eles caminham lado a lado, já era de noitinha e estavam voltando juntos para casa. 

— Eu achei os efeitos especiais meio exagerados – ele confessa, tentando parecer um crítico, mas estava mais parecendo um chato – E sinceramente, foi muito mais legal te ver chorando de medo. 

— Ah pois – ela decide entrar na brincadeira – quando o aspirador de pó arrancou a mão da menina pra fora você quase deu um pulo da cadeira! 

— Eu só fiquei surpreso com o quão mal feito aquilo tava! - ele se defende, mas ela nem dá a mínima, mostrando a língua pra ele. 

— Ah Ranma, deixa de ser chato! - ela dá um sorriso brincalhão, que o fez abaixar a guarda e sorrir de volta para ela. 

— Quer que eu te deixe em casa? - ele oferece, esbanjando um cavalheirismo que não era característico dele. 

— Nossa, que cavalheiro – ela não muda o tom brincalhão, deixando-o tímido - Não sabia que você era romântico, Ranma. 

— Ah, cala a boca... - ele tenta esconder a cara, mas só entrega que ficou com vergonha, aquilo foi o suficiente para ela ganhar o dia. 

Sumiram pelo quarteirão lado a lado, o menino se encurvava de timidez enquanto ela saltitava, cantarolando de satisfação. Aquela última vista dos dois juntos era a prova de que o encontro foi, ao contrário do que a pizzaiola pensava, um sucesso. 

E lá estava ela, estática no meio da rua enquanto rangia os dentes. 

— Mas o que foi isso?! - ela resmunga para si mesma, cerrando o punho e socando um poste repetidamente - É só a Akane ser um pouco boazinha que aquele canalha já se derrete todo?! E afinal, o que diabos deu naquela garota?!? Parece até que tá possuída!! 

Ukyo continua com seu monólogo, xingando Ranma e Akane em voz alta sem se importar se alguém a escutaria. Estava totalmente frustrada, não só teve suas expectativas quebradas como sente que fez papel de boba, pagando uma entrada de cinema crente de que assistiria um espetáculo de briga, mas acabou segurando vela para um show de horrores. 

Estava totalmente arrependida de não ter estragado o encontro quando teve a chance, mas ela realmente queria acreditar que aquela máscara de Akane cairia sozinha, e ela não queria perder isso por nada. Mas no fim das contas, apenas saiu mais convencida de que aquilo estava muito suspeito, e sobretudo, muito ameaçador para o seu noivado. 

A pizzaiola estava tão distraída em suas lamúrias que nem se tocou quando uma figura feminina pairou logo ao seu lado. 

— Ni hao! - chama Shampoo, tomando a atenção de Ukyo que a olha surpresa – Ranma ter encontro e tanto, não é, Ukyo? 

Ukyo levanta a sobrancelha, confusa e muito desconfiada. 

— Shampoo? Que é? - ela cruza os braços e semicerra os olhos - Você também viu aquele circo? 

— Sim. 

— Hum... E o que você quer? 

Nos dois anos em que conhecia a amazona, Ukyo conseguiu adquirir uma boa noção do quanto Shampoo era dissimulada. A chinesa nunca deu ponto sem nó, então se estava ali falando com ela, em vez de correr atrás de Ranma e fazer um escândalo para separá-lo de Akane, algum interesse ela tinha por trás. 

Shampoo sorri com um olhar meio indescritível, aumentando a curiosidade da mais alta. 

— Ukyo ter um tempinho? - ela pede – Mas... a sós. 

 

—--

 

As duas garotas atravessam a porta da pizzaria Ucchan, dando de cara com poucos fregueses e Konatsu atrás da chapa cozinhando pizzas de legumes, esta sorri para Ukyo no momento em que a vê. 

— Ukyo, seja bem vinda! - diz Konatsu com uma voz muito doce. 

— Oi Konatsu. Como foi o movimento hoje? 

— Bem normal, mas depois das oito vai encher mais com certeza – alega, baseado nos quase dois anos que trabalhava para a pizzaiola, tanto como garçonete quanto como cozinheira substituta quando Ukyo se encontrava ausente - Já coloquei as bebidas no congelador e separei as frutas pros drinks! 

— Bom trabalho – elogia Ukyo, arrancando um sorriso tímido e satisfeito de Konatsu – Me dá só um instantinho, eu vou ter uma conversa com essa daqui. 

Ukyo aponta para Shampoo, que acena amigavelmente. 

— Ni hao! 

— Ah, oi – Konatsu a responde, sem interromper o serviço com as espátulas. 

Ukyo conduz Shampoo para a mesa mais afastada da pizzaria, uma menorzinha e com lugar apenas para dois. A pizzaiola se senta e lança um olhar desconfiado, porém repleto de interesse sobre a amazona, que se senta logo em seguida com uma faceta sapeca. 

— Okay Shampoo, desembucha – ordena a mais alta. 

— Como você ser apressada – a amazona arrasta o cabelo para atrás dos ombros – Shampoo querer uma bebidinha. 

— Sem essa – Ukyo a corta, cerrando as sobrancelhas e apoiando os braços na mesa, aproximando o rosto do de Shampoo de forma intimidadora - Fala logo, qual é a tua? 

Shampoo então percebe que precisaria ser direta, a garota que ainda usava os trajes masculinos do Furinkan não estava para muito papo. O que era decepcionante, considerando o que Shampoo tinha em mente. 

— Bom, já que ser assim... - começa a menor, também apoiando seus braços na mesa – Bem Ukyo, como pode ver, nós ter problemas. 

— Nós? 

— Mas é claro! Ranma ser noivo de Shampoo. E Ukyo dizer que por alguma razão boba Ranma ser noivo dela também - o tom da amazona é quase debochado, arrancando um resmungo de Ukyo. 

— Pra sua informação, eu me tornei noiva do Ranma antes de todas vocês! 

— Bom, isso não importar agora – continua Shampoo, antes que Ukyo começasse a tagarelar – O que importar agora é que Akane vai roubar Ranma só pra ela. 

— Hu! - Ukyo cruza os braços e faz uma cara cínica - Você acha mesmo que aquela garota tem alguma chance de roubar o meu Ranma? - pergunta ela em tom de deboche, fazendo pouco caso de Akane. 

— Ukyo... Precisar ser realista – Shampoo apoia seu queixo em suas mãos, fitando Ukyo profundamente para garantir que ela prestaria muita atenção no que ela ia dizer – Shampoo detesta admitir, mas... - a amazona morde o lábio e parece travar uma batalha interna, como se estivesse prestes a proferir palavras muito sofridas e difíceis de aceitar – Mas Ranma sempre escolher Akane entre todas nós! 

Ukyo sente um estalo percorrendo sua mente, ela se retrai de imediato, se recusando a digerir o que acaba de escutar. Mas no fundo, não tinha como negar. Apesar de todos os desentendimentos infundados de Ranma com Akane, ele nunca mediu esforços para demonstrar que aquela menina bruta e desajeitada ocupava um lugar especial em seu coração. Mesmo que o próprio não admitisse, era nítido para qualquer um. 

Mas nenhuma pretendente de Ranma se permitiu aceitar essa realidade, acabando por requirir a tramoias mirabolantes que tivessem a chance de separar o casal. A única coisa que de fato impedia Ranma de assumir seu compromisso com Akane e enfim apagar a faísca de esperança de suas pretendentes, era a terrível convivência e gênio desastroso de ambas as partes. E agora, com a nova postura da menina, aquela faísca estava por um triz. 

— Você não ver Ranma hoje mais cedo? - Shampoo continua, num tom desapontado – Shampoo nunca antes ver Ranma tão... Argh! Tão bobo e feliz! - a amazona se altera um pouco por conta da indignação que sentia – Se Akane continuar assim, Ranma ficar com ela na hora! 

— Tá legal, já entendi! - a pizzaiola suplica, como quem pedisse para parar de ser torturada com a triste verdade – Mas o que isso tem a ver com a gente? Por que você veio falar comigo? 

— Não ser óbvio? 

Shampoo lança um olhar sapeca e um sorriso cínico, segurando suas bochechas com as mãos enquanto balançava as perninhas. 

— Shampoo propor uma aliança feminina! 

— ... Hein? 

A amazona percebe que fisgou a atenção de Ukyo com maestria, satisfeita, ela tosse e começa a se explicar. 

— Ser uma trégua necessária... Akane ter algum poder sobre Ranma que Shampoo nunca vai entender. E agora que Akane decidir fisgar Ranma de vez, ser muito mais difícil pra Shampoo separar os dois sozinha – ela enrola o próprio cabelo com os dedos, brincando com suas mechas roxas – E o mesmo vale pra Ukyo. 

— Tá falando sério, Shampoo? - pergunta a mais alta, com uma sobrancelha levantada, incrédula. 

— Muito sério! - afirma a amazona – Duas noivas serem muito mais fortes que uma! - Shampoo estende sua mão para Ukyo, fazendo sinal para que a pizzaiola a apertasse, selando um trato – E aí, Ukyo topar? 

Ukyo olha para a mão, olha para Shampoo, e ri cinicamente. 

— Só se eu estivesse louca. 

— Aiya! Mas por que?! - a amazona se escora na mesa, não esperava ser rejeitada daquela forma. 

— Eu não sei nem por onde começar - Ukyo cruza as pernas e apoia o rosto em uma mão - A gente tá brigando pelo mesmo cara há anos e agora você vem me sugerir uma aliança... Tem ideia do quanto isso é bizarro? 

— Mas ser por um bem maior! 

— Não entendo que bem maior é esse. 

— Ah, então Ukyo deixar Ranma ficar com Akane? Porque vai acontecer se não fazer nada! - Shampoo dispara, provocando um arrepio na espinha da pizzaiola. 

— Okay, então vamos supor que eu participe dessa “aliança” - ela gesticula os parênteses com os dedos - Daí o Ranma larga a Akane... E depois? Vamos voltar a brigar por ele? 

— Isso ser problema pra depois. Akane ser perigo muito maior – a amazona realmente não parecia se importar tanto com as consequências, seu foco era único e exclusivo na Tendo caçula - Akane sempre foi problema pra Shampoo... mas agora ser muito mais sério! Embora Ranma sempre preferir Akane, ela sempre ser muito chata com ele – Shampoo começa a se irritar – Shampoo não consegue entender... Shampoo toda vida ser boazinha com Ranma, mas Ranma ainda prefere Akane! Só agora Akane resolve ser boa noiva, e Ranma vai correndo pra ela?! Não ser justo! Ranma derrotar Shampoo em uma luta e ser noivo dela por direito! 

— Tá vendo?! É disso que eu tô falando! - Ukyo se escora na mesa, apontando o dedo para o rosto da mais baixa – Por que eu me juntaria à você sabendo que no momento em que o Ranma deixasse a Akane me apunharia pelas costas? Além de que eu sei do que você é capaz, Shampoo – a maior diminui a distância entre seus rostos, lhe lançando um olhar ameaçador, fazendo a amazona se retrair – Eu não confio em você. 

— Hunf! - Shampoo se levanta abruptamente, percebendo que aquela conversa não iria progredir muito, pelo menos não agora. Olha para Ukyo com desdém e joga o cabelo para trás - Ukyo estar sendo boba. Não perceber ainda que esta ser nossa maior ameaça até hoje. 

Shampoo se afasta de Ukyo, indo em direção à porta, lhe dá uma última olhada antes de partir e diz: 

— Shampoo pensaria bem se fosse Ukyo... E rápido. Se não em poucos meses Ranma casar com Akane e ter muitos filhinhos. 

A amazona se retira da pizzaria sem dizer mais nada, deixando a dona do estabelecimento atônita, confusa, e muito reflexiva sobre tudo o que acabara de escutar. Conseguia ver algum sentido em tudo que Shampoo disse, mas ao mesmo tempo, a amazona não era alguém de confiança, sempre muito ardilosa e dissimulada. 

Konatsu deixa escapar um suspiro apaixonado quando olha pra Ukyo, dá uma volta na chapa e se aproxima dela. 

— Você está triste, querida Ukyo? 

— Eu... - ela olha pra Konatsu, sem conseguir disfarçar sua frustração - não sei o que fazer. 

— É sobre o Ranma? - pergunta Konatsu com um olhar melancólico.  

Sabia que sua amada nutria sentimentos pelo garoto de trança, mas isso nunca a impediu de cultivar seu amor pela pizzaiola. 

— Você é esperta – diz Ukyo, se certificando de acertar o pronome dessa vez. Há pouco tempo atrás Konatsu pediu a todos para que usassem pronomes femininos com ela daqui pra frente, e apesar de não entender muito bem, Ukyo não poderia simplesmente questionar, e muito menos negar um pedido tão simples – Agora a Akane resolveu tomar ele de vez... 

— Humm... - a garçonete se senta de frente pra Ukyo, a encarando com ternura e acalento – Mas... Isso ia acontecer uma hora ou outra, né? 

Mais um estalo circula na mente de Ukyo, era tão difícil para ela aceitar que, talvez, aquela sempre fora uma luta perdida. Mas ainda assim não queria dar o braço a torcer. 

— O Ranma é meu noivo! - ela aponta, com uma voz muito firme - Há anos estou lutando pelo meu direito, não vai ser agora que eu vou desistir! 

Antes que aquela conversa pudesse se prolongar, meia dúzia de clientes entram na pizzaria, fazendo a mulher de negócios que havia dentro de Ukyo falar muito mais alto que aquela garota de coração partido. A menina em vestes masculinas se levanta e cumprimenta os clientes. 

Konatsu e Ukyo voltam aos seus afazeres, e quanto mais trabalhavam, mais clientes chegavam, como uma típica noite de sexta feira. Seria uma longa noite, e já estavam exaustas. 

— Konatsu, me lembre de anunciar uma vaga para assistente! 

— Tá bom! 

 

—--

 

Shampoo caminha pelos quarteirões, seguindo o seu caminho de volta para o Café Gato, já imaginando a bronca que levaria da sua bisavó por ter abandonado os afazeres sem aviso prévio. Mas sinceramente, perto da indignação que sentia por ser duplamente humilhada, primeiro pelo seu noivo que passou o dia todo se esfregando em outra, e agora por Ukyo que desdenhou dela como se fosse um pedaço de lixo, um grito ou dois da sua bisa não era nada. 

Definitivamente, aqueles não eram os dias de glória da amazona. Mas independente das circunstâncias, ela não deixaria aquilo barato. Pensava em maneiras de agir por conta própria sem que precisasse requirir à ajuda de Ukyo, mas nenhuma delas parecia funcionar, afinal sua maior aliada para separar Ranma e Akane sempre foi a própria Akane, que cavava a própria cova com suas explosões e teimosias para com o noivo. Mas agora que esse álibi não existe mais, as coisas ficariam muito mais complicadas. 

Ela cruza a entrada do café, e quando pensa que o seu dia não pode piorar, dá de cara com uma figura chorosa abraçando sua bisavó, com malas prontas derrubadas no chão. 

— Minha querida Shampoo, você tá ainda mais bonita que da última vez que eu te vi! - Mousse se esperneava com Cologne em seus braços. 

— Ponha os óculos, idiota! - a senhora ordena. 

Mousse obviamente não abandonou seus velhos hábitos de descansar os óculos engarrafados acima da testa, apesar de não enxergar absolutamente nada sem eles, ele tentava usar o mínimo possível, pois sabia que eles o faziam parecer um idiota. Bom, ele era um idiota, mas não queria deixar isso tão escancarado. Faz o que Cologne pediu e pousa as lentes de volta em seu nariz. 

— Ora, mas é a velha demônia - diz ele, levando um cascudo do cajado da amazona em resposta. 

Shampoo torce o nariz, irritada. Mousse retornar da China para importuná-la num momento como aquele era mais que fora de hora, estava sem o mínimo de paciência para quase nada, sobretudo as baboseiras do amigo de infância. Quando o amazona olha para entrada e nota a presença de Shampoo, torna a ficar emocionado e saltita em sua direção. 

— Shampoo, minha deusa! - lágrimas escorrem de seu rosto e ele abre os braços para ela – Como senti sauda-! 

É interrompido por uma bofetada na cara que o faz cair no chão, olha para cima e tem a visão de Shampoo, nesse ângulo, parecia uma divindade. 

— Mousse poder ter ficado mais tempo na China – dispara, pregando uma farpa no coração do rapaz. 

— Não, que bom que ele voltou – afirma a velha, tragando seu longo charuto - Ninguém serve as mesas melhor do que ele. 

— Hunf! Pra vocês eu sou só um escravo! - Mousse reclama, quase ameaçando um choro. Mas sinceramente, já estava tão acostumado com essa dinâmica, e se ele pudesse ficar ao lado de Shampoo todos os dias, dava pra suportar tantas humilhações. O rapaz se levanta e ajusta seus óculos, fazendo uma pose confiante para as amazonas – Mas muito em breve vocês vão ficar pianinho comigo. 

Cologne levanta uma sobrancelha, muito desconfiada com aquela postura do garoto de cabelos compridos. 

— O que está inventando agora, Mousse? 

O amazona ri cinicamente, escancarando que tinha uma carta na manga. Sabe-se lá o que ele fez na China nesses poucos meses que passou fora, talvez fosse uma nova técnica de artes marciais para derrotar Ranma e proclamar seu noivado com Shampoo. Mas elas sabiam que, mesmo se fosse isso, ele não teria chances contra Ranma, então não havia com o que se preocupar. Mas aquele olhar confiante e quase esnobe do rapaz era deveras curioso. 

Mousse fita Shampoo, que ainda o olha com muito desdém. 

— Minha Shampoo, – ele cruza os braços e fecha os olhos – eu não sou mais o mesmo homem de sempre. 

A mais nova, que antes tentava fingir desinteresse, deixou escapar um olhar de muita curiosidade sobre a fala de Mousse. Ele caminha em direção da parte interna do café gato, pega suas malas, e antes de cruzar a porta, lança mais um olhar determinado para a sua amada, e diz com firmeza: 

— Eu vou te provar que sou homem o suficiente pra ser seu marido! Pode apostar! 

Ele entra, deixando duas amazonas muito desconfiadas no café. Cologne semicerra os olhos e traga seu charuto mais uma vez. 

— Mais um que vamos precisar ficar de olho daqui pra frente – comenta a velha. 

Shampoo suspira, desgastada de um dia com emoções demais para uma pessoa só. 

— Ser só o que me faltava... 

 

—--

 

Depois do grande desafio que foi entrar em casa, inventar uma desculpa do porquê chegou mais tarde, e o pior de tudo, fingir apatia, Ranma Saotome se encontrava agora deitado em sua cama olhando para o teto com a cara mais boba do mundo. 

Ele rebobina as últimas horas vividas como um filme em sua mente, em especial os bons minutos que teve Akane repousando em seu ombro, e sua mão descansando no ombro dela. Nunca antes a teve tão perto, de forma tão íntima, e por tanto tempo. Sentia o seu coração batendo de tal forma como se ainda estivesse lá com ela, e por várias vezes rodou na cama, rindo sozinho, pensando alto, dizendo pra si mesmo coisas como: 

— Isso... aconteceu mesmo?... 

Esbanjando um sorriso inocente de ponta a ponta, rezando aos céus para não ser flagrado assim. 

 

—--

 

A alguns quarteirões de distância, Akane reproduzia a mesma cena em seu quarto, abraçando seu travesseiro com as duas mãos, afogando seu rosto nele de vez em quando, divagando em suas lembranças e suspirando de forma muito feminina. 

Embora ela tentasse se lembrar o tempo todo de que aquilo não passava de um mecanismo para manter sua família segura, a menina não conseguia conter toda a euforia que estava sentindo. O que experienciou naquele encontro fora algo que ela fantasiou há muito tempo, mas nunca admitiria, sobretudo em voz alta. 

Pelo menos ali, sozinha em seu quarto, ela poderia se dar ao luxo de se render às suas emoções e festejar internamente, extravasando em um sorriso largo, olhos marejados de alegria, alguns rodopios na cama, e até um ou dois gritinhos abafados no travesseiro, parecendo uma garotinha. 

Estava tão encantada com seu primeiro encontro oficial com o rapaz que já era seu noivo há quase dois anos, que nem se lembrou de ficar feliz por seu plano estar correndo surpreendentemente bem. Mas quer saber? O que custava se permitir ficar assim, pelo menos um pouco? 

— Ai, Ranma... - suspira, pensando em voz alta mais uma vez. Ela dá um sorriso tímido e afoga o rosto no travesseiro mais uma vez, pensando ser uma nuvem, pois por dentro, ela estava no céu - Bobinho... 

 

—--

 

O fim de semana passou num piscar de olhos, os noivos passaram os últimos dias muito distraídos e sem muitos planos. Evitaram se encontrar novamente pois ainda estavam envergonhados demais, e ainda tinham muito o que processar dentro de si até que conseguissem se encarar propriamente na escola. Mas a segunda-feira chegou, e lá estavam eles, lado a lado na sala de aula enquanto a professora passava a lição. 

As interações entre eles estavam cada vez mais esquisitas, ainda mais considerando que eles decidiram “manter as aparências” para não causar um alvoroço entre os seus colegas. Apenas deram um “bom dia” muito desconfortável um para o outro no momento em que se encontraram e permaneceram em silêncio. Aquele típico silêncio que dizia mais que mil palavras. 

Akane espia Ranma de relance, que está olhando para o quadro com muito desinteresse, e após alguns segundos admirando a feição esbelta do rapaz, que de perfil parecia uma estátua muito bem esculpida, ela pensa que talvez seria bom tomar mais uma iniciativa. 

Arranca um pedacinho de papel no seu caderno e escreve “Quer vir almoçar comigo no telhado depois da educação física?”, ela olha para a anotação e automaticamente sente o rosto queimar. Ela naturalmente nunca faria uma coisa dessas, mas bem, ela tinha seus motivos, além de que depois de sexta-feira, sentia uma abertura um pouco maior para se deixar vulnerável com Ranma. 

Ela cutuca o garoto de trança no ombro e lhe entrega o bilhete sem tirar os olhos da professora. Ranma, por sua vez, abre a folhinha dobrada e seu coração palpita mais forte quando lê o que está escrito. Sente a necessidade de respirar fundo para conseguir conter mais um sorriso largo que escancararia suas emoções. Escreve no papel e retorna ele à Akane, a menina abre e, assim como ele, se esforça para segurar um sorriso bobo. 

“Tá bom.” 

 

—--

 

Akane já estava sentada no chão do telhado da escola há uns dez minutos, mexia as suas pernas, ansiosa pelo momento em que o seu convidado cruzaria aquela porta. Passou cada segundo daquele fim de semana pensando nele, e em quando poderia voltar a ficar a sós com ele. Não estava tão tímida quanto em seu primeiro encontro, mas definitivamente não conseguia evitar ficar de nervosa e cheia de dúvidas. 

Antes que pudesse começar a divagar, a porta se abre e ela avista Ranma, um pouco rebaixado e de cabelos ruivos, segurando sua quentinha e tentando parecer muito confiante. 

— Cheguei – ele anuncia, se escorando na parede ao lado da menina e deslizando até que se sentassem lado a lado. 

— Ué, por que está como menina? 

Foi uma pergunta despretensiosa, mas Ranma ficou inseguro de que, talvez, se ele ficasse como garota o clima fosse partido ao meio. Ele então começa a se explicar, desconfortável: 

— Ah... É que foi aula de natação hoje, daí fiquei com preguiça de ir até o armário... - o tom da sua voz era um pouco desapontado, ele sempre tendia a achar que sua maldição era um inconveniente para os outros. E não conseguiria suportar a ideia de que Akane se incomodaria em ter um momento mais íntimo com ele na forma feminina. Antes que a garota pudesse responder, ele já ameaça se levantar – Bom, se você achar melhor eu posso me transformar em garoto... 

— Ah, que besteira. Senta aí – ela assegura, o puxando de volta pela manga da camisa. 

Ranma olha para ela com certo espanto, ainda mais quando ela sorria gentilmente para ele, demonstrando nenhum pingo de incômodo. 

— Tem certeza? - ele espreme os olhos, muito desconfiado. 

— Claro, ué - a forma como ela estava tratando aquilo com a maior naturalidade arrancou o peso de um elefante das costas dele, fazendo-o sentar de volta e relaxar como nunca.  

Aquela era uma insegurança muito presente em sua vida desde que caiu na fonte de Jussenkyo. Foram tanto os momentos em que se sentiu desconfortável, destratado, humilhado, mal-interpretado, menosprezado, e acima de tudo, rejeitado por ser um homem que também era mulher, quase a ponto de ser tratado como uma aberração.  

Mas se Akane realmente não se importava... que se dane os outros. Ainda mais ali, naquele momento, sozinhos mais uma vez, com a sensação de que nada no mundo poderia lhes atingir. 

— E aí, o que fez no final de semana? - Akane o faz sair de um mini transe. 

— Ah... eu treinei um pouco com o velho – ele responde, enchendo a boca de arroz – E a mãe pediu ajuda pra consertar o telhado. Só isso. 

— Humm – Akane também comia enquanto conversavam, saboreando aqueles deliciosos bolinhos de polvo feitos pela Kasumi - Também não fiz muita coisa. Eu treinei, ajudei na faxina, fiz o dever de química... 

— Tem dever de química?! - o garoto se espanta e ela acena que sim com a cabeça - Ai, porcaria... Eu... posso...? - ele começa, com um olhar pidão, que ficava muito adorável no seu rosto feminino. 

— Não vou te emprestar meu caderno. 

— Chata. 

Ela mostra a língua pra ele, e ele faz o mesmo, rindo em coro. Ficam um pouco em silêncio, a verdade é que a simples presença um do outro já era suficientemente satisfatória. Os dois olhavam pro céu, admiravam as nuvens, e o tempo passava sem que percebessem. Uma sensação parecida com a que tiveram no cinema, de que o mundo parou de girar, e de que todos os outros tinham evaporado. Poderiam ficar ali por horas sem trocar nenhuma palavra que não seria uma tortura. 

Mas Ranma acaba sendo o primeiro a quebrar a imersão, perguntando, sem pensar muito sobre: 

— E aí, pra onde a gente vai da próxima vez? 

Akane demora um pouco pra processar, um tanto feliz, um tanto chocada com o que acabara de ouvir. Já o garoto, agora garota, parecia bem distraído comendo sua deliciosa quentinha preparada pela mãe enquanto aguardava pacientemente uma resposta da noiva. 

— Próxima vez? - Akane levanta uma sobrancelha e sorri no cantinho do rosto, Ranma lentamente percebe onde acabara de se meter, e fica tão vermelho quanto seu cabelo – Ranma... Tá me chamando pra um encontro? 

Ele arregala os olhos e se arqueia pra trás, pego completamente desprevenido. 

— N-Não, claro que não! O que te faz pensar-...? Argh! Mas é uma bobona mesmo! Imagina, chegar numa conclusão dessas?! Eu?! Te chamando pra um encontro?! Deixa de ser boba, Akane!! Até parece!! - Ranma começa a balbuciar, tagarelando as primeiras coisas que lhe vinham à cabeça, todas elas provocadas pelo seu orgulho. E ele ficava ainda mais nervoso quando percebia que nada tirava aquele sorriso convencido do rosto de Akane – A-Além disso, qual o problema, hein?! E se eu estivesse?! Você me chamou pra um encontro, não foi?! Eu não posso te chamar também?!? 

Sua última frase impensada foi o xeque-mate de Akane, que fez os olhos dela brilharem e as bochechas ficarem vermelhas. Ele se retrai todo quando percebe que entregou os pontos para ela sem querer, ficando cabisbaixo de maneira adorável. 

— Ai, que droga... - ele resmunga, quase soltando fumaça pelos ouvidos. 

— Tudo bem Ranma, eu aceito o seu convite. 

A garota de cabelo vermelho volta a olhar para a de cabelos negros, com os olhos marejados pela vergonha e certa emoção. Não importa o quanto se esforçasse, ele agora não conseguiria esconder seus sentimentos. Acabou de realizar o sonho de anos que era chamar Akane para um encontro, ele só não imaginou que faria aquilo por acidente, e muito menos que ela aceitaria num clima tão romântico, mesmo que ele estivesse em sua forma de garota. 

Não era como ele imaginou. Mas era perfeito. 

— Mas você escolhe o lugar dessa vez – Akane completa, ainda tomando as rédeas da situação. 

— Humm – Ranma pensa um pouco. Ela se sacrificou indo a um filme de terror por ele, seria justo ele agradá-la dessa vez, então pensou em algo que talvez ela gostaria – Que tal aquele clube de patinação que abriu? 

— Eu pensei que você não sabia patinar – ela ri cinicamente, lembrando de todo vexame que ele passou patinando no gelo uma vez. 

— Eu posso fazer um esforçinho. 

Eles sorriem um para o outro e começam a rir, falar bobagens e se divertir enquanto planejavam os detalhes do seu segundo encontro. Por mais desajeitados que fossem com romance, até que estavam pegando o jeito. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Se o feminismo for legalizado, a aliança ShamKyo vai rolar!!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Pergunta" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.