Cinco Vidas escrita por Anna Carolina00


Capítulo 2
A witch - parte 2




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A vida em um vilarejo se movimenta muito antes do nascer do sol. Já era possível sentir o cheiro do pão fresco e o calor do forno ao se passar na porta da padaria, assim como os últimos bêbados da taberna se esforçavam para caminhar de volta para casa. Nas ruas, algumas carroças levavam sacas de trigo e centeio para a igreja; faltavam poucos dias para a celebração da colheita e como bons cristãos, todos os camponeses faziam suas doações para a comemoração.

Nicholas usava vestes comuns, como louco Spring havia requisitado, exceto pelo escudo de metal. Era de seu pai, também escudeiro da coroa e a quem de fato pertencia a vassalagem. Quando ele morreu, o pequeno assumiu a dívida e passou a trabalhar para um dos filhos do rei em troca de manterem assistência à sua família.

—Oi.

—Oi…

Assim que o encapuzado se virou para responder o loiro, seu capuz caiu revelando apenas um garoto de sua idade. 15 anos,14 anos? O escudeiro se questionava. Sua voz definitivamente não aparentava ser de um jovem, como se fosse calejada por uma árdua vivência.

O moreno ofereceu um pedaço de pão com frutas para o loiro, o que lhe despertou um olhar de surpresa e seu sorriso cativante habitual.

—Muito obrigado, lou…Senhor Spring!

—Me chame de Charlie -  o guia logo desviou o rosto e começou a caminhar em direção a saída do condado - Teremos um longo dia pela frente e não podemos perder a luz do dia, coma enquanto andamos. Não pretendo esperar sua refeição, sir.

—Nicholas Nelson.

—O que?

—Pode me chamar de Nicholas… Ou Nick, como preferir.

Como se experimentasse o sabor daquele nome em seu lábios, Charlie repetiu:

—Nicholas… Nick… Vamos andando, Nick.

Sem cavalos ou qualquer meio de transporte, a dupla seguiu em silêncio a pé até chegarem a ver os primeiros traços de uma floresta. O sol começava a pincelar os fios dourados de Nick com um tom cintilante, quase como magia aos olhos de Charlie, mas é claro que o moreno não diria isso a um forasteiro.Ele sabia muito bem como mesmo os forasteiros tratavam aberrações como ele.

Enquanto Charlie apreciava a vista de esgueira, Nicholas olhava fascinado para a altura das árvores compondo o bosque à sua frente. Altas e densas, como se tentassem barrar a entrada da luz do sol em meio às folhagens. Charlie tinha razão, precisavam aproveitar a luz do dia, pois seria impossível se mover ali durante a noite.

—Bonito…

— O que?! - o questionou o moreno encabulado como se fosse pego no flagra.

— As árvores, digo… Tudo isso. Moro perto do mar, que também é fascinante, mas não temos árvores como essas por lá.

— Eu nunca vi o mar…

—Pois faça uma visita ao sul! Seria um prazer lhe guiar pelos portos da costa.

Charlie não sabia como reagir. Estava tendo uma conversa de verdade pela primeira vez em muito tempo.

— Nunca saí do condado. Não é tão… Simples.

— Bem, é uma longa viagem mesmo a cavalos.E você deve ter família e tudo mais, desculpe. Estou tão acostumado com minhas viagens que às vezes esqueço que pessoas normais constituem família.

Pessoas normais? O moreno não podia deixar de rir ao ser comparado com alguém… Normal. Nicholas Nelson era, de fato, um forasteiro peculiar.

As árvores começaram a se inclinar formando um caminho estreito. Estavam enfim adentrando a floresta da  “bruxa”; já podiam ouvir o som de pássaros e as primeiras folhas secas caindo no chão. O semblante de Charlie mudou para aguerrido, com olhos atentos para o que quer que se movesse ao seu redor. Nick é quem realmente havia recebido treinamento real ali, mas ao ver a mão de Charlie indicando que ficasse atrás dele, apenas seguiu o que foi pedido.

O moreno sacou uma adaga e marcou uma árvore com uma seta quase invisível aos olhos, como quem ensinasse a Nick o que fazer quando estivesse sozinho ali. Indicou pedras no chão com o musgo crescendo para uma determinada direção e raízes que pareciam mais grossas e profundas na mesma direção.

—Na dúvida, encontre o rio e o siga na direção da água. Assim voltará para o condado não importa onde esteja 

—E na direção oposta?

O moreno não respondeu, apenas lhe deu um raro sorriso como se o avisasse para não abusar da sorte.

Caminharam até que o sol estivesse a pino quando passaram a ouvir o som do rio. No percurso, vez ou outra se abaixaram e deixaram que a vida da natureza seguisse seu curso, se escondendo de alguns veados, esquilos e até do que pareceu ser o som de um urso. Perto do rio, segundo Charlie, haveriam mais animais caminhando, mas o escudeiro não devia intervir na floresta, só assim poderia caminhar por lá em segurança. 

Charlie não sabia o que o motivava a precisar entrar na floresta e o moreno não fez questão de lhe contar. Talvez, sabendo o papel de carrasco do escudeiro, o guia se recusaria a mostrar o caminho. Pela forma respeitosa que o moreno tratava o lugar, estava cada vez mais certo de que não deveria lhe contar sobre sua caça às bruxas e isso lhe doía o peito. Não desejava enganar Charlie, mesmo que se conhecessem a tão pouco tempo.

—Chegamos.

Empolgado, Charlie estava prestes a correr sedento em direção a água cristalina do rio, quando as mãos delicadas do moreno pousaram sobre seu peito e indicaram, logo abaixo do rio, um grande urso negro bebendo água. Se esconderam atrás do tronco de uma árvore e esperaram sentados por um tempo, o moreno vez ou outra checava de esgueira onde se encontrava o urso.

—Podemos ir agora, Nick. 

O loiro parecia prender a respiração e só agora perceberam que as mãos do moreno ainda repousavam sobre seu corpo se enchendo novamente de ar. Corado, tentando disfarçar sua ação, o moreno ofereceu-se para ajudar o loiro a se levantar. Delicadas e ásperas, foi o primeiro pensamento de Nick ao segurar a mão de seu guia.O pensamento seguinte é que elas pareciam estranhamente reconfortantes.

— Por que te chamam de louco Spring?

Nick perguntou enquanto ambos atravessavam o rio com as botas em mãos.

—É complicado. Quando meus pais morreram e eu continuei o trabalho com as bill berries, o padre me chamou de louco na missa por eu me recusar a casar a filha do padeiro, uma moça chamada Imogen. Ela acabou indo para o monastério e eu virei o louco Spring, que mora numa floresta amaldiçoada e recusa o casamento de belas moças.

— Eu te entendo, Charlie…

—Entende?!

—Sim! Também tenho essa vontade de me casar apenas quando me apaixonar pela moça certa. 

—Hm…

—Mas se eu me tornar um cavaleiro, posso receber o título de baronete do meu suserano e terei de me casar por conveniência…

—Pelo menos ainda pode viajar por aí. Conhecer novos lugares…

—Fazer novos amigos! Experimentar novas comidas… Aliás, ainda tem algum pedaço daquele pão?

O moreno sorriu. Seu novo amigo era um belo glutão.

Assim que colocaram as botas novamente, Charlie repartiu novamente o pão entre os dois enquanto seguiam rio acima.

—Pensei que não deveríamos subir o rio.

—Correção, você não deve subir o rio, Nick. Eu sei quando parar… Além disso, para fazer um pão com bill berries como aquele, precisamos colher as melhores frutas!

 

Horas se passaram até chegarem em uma cachoeira onde muitos arbustos de bill berries se estendiam ao redor. A fruta era ainda mais saborosa fresca, segundo o moreno, e o escudeiro já imaginava que sentiria falta daquelas frutas ao voltar para casa.

Lá, Charlie pegou dois grandes sacos de sua mochila, entregando um ao loiro e outro para si. Nicholas estava prestes a pegar a fruta quando foi interrompido.

—Luvas. Sir. Ou vai passar os resto de seus dias com as mãos azuladas.

O loiro assentiu e pegou um par de luvas brancas delicadas, como as usadas em festividades de gala. Os dois não puderam segurar o riso da cena. Definitivamente não era esse tipo de luva que o moreno esperava.

—Imaginei que fosse óbvio que esse não é o tipo de luvas ideal para uma floresta, sir Nicholas.

—Agora que só posso concordar com o senhor Spring, mas pela madrugada, juro que me pareceu uma boa ideia…

Ainda rindo, o moreno sacou um segundo par de luvas de sua sacola, estas já azuladas pelo trabalho diário.

—Sorte a sua que não costumo confiar em forasteiros…

—Obrigado pela desconfiança, Charlie.

Seria uma longa tarde colhendo pequenas bolinhas azuladas. O moreno ensinava como lidar com os espinhos e como não esmagar as pequenas frutas, enquanto o loiro se mostrou hábil com os movimentos delicados e inevitavelmente também comia alguma de suas colheitas no decorrer do dia. 

O sol começava a baixar quando Charlie caiu a ficha de que não poderia voltar tarde da noite com Nick. Precisava acompanhá-lo até o condado.

Logo o loiro também percebeu o arrebol e se ofereceu para carregar os dois sacos de frutas no caminho de volta. O som dos pássaros aumentava, logo corujas eram vistas saindo de suas tocas e começaram a piar, assim como o coaxar de sapos. A floresta parecia definitivamente mais assustadora com a pouca iluminação do fim da tarde.

—Você já a viu?

—Quem?

—A bruxa.

—Ah… Então já lhe contaram sobre a crendice da bruxa. Nick, isso é besteira… Não há uma bruxa devorando criancinhas e sequestrando animais dos camponeses. Infelizmente existem pessoas ruins e não precisamos fingir que são bruxas para acreditar na sua maldade.

O loiro ficou pensativo por um momento e respondeu.

—Eu acredito em você, Charlie. Podem te chamar de louco, mas é a pessoa mais sensata que já conheci em minhas missões e entre lobisomens que não passavam de grande lobos ou maldições que na verdade eram venenos jogados em plantações, acreditar em pessoas ruins a bruxas me parece muito mais coerente.

—Obrigado!

—Mas você acredita..?

—Em quê?

—Bruxas…

—Nick… Isso é …

—Deixe-me adivinhar, complicado?

—Sim.

—Bem, se elas existirem ou não, caso apareça uma bruxa em nosso caminho hoje, fique comigo, por favor. Você é especialista em sobreviver em florestas, mas é meu trabalho te proteger.

Ali, no breu que se instalava em meio às árvores, sir Nicholas poderia não ver, mas havia deixado o jovem Charlie Spring completamente corado com um sorriso no rosto.

Um chiado incomum foi ouvido, seguido de um rastejar no chão. Charlie sabia muito bem o que aquilo significava, então sussurrou:

—Não… Se…Mexa… Não…fale…

Prendendo a respiração, o loiro observou o que parecia ser uma serpente se rastejando ao lado de sua bota. Charlie sabia que ela estava apenas interessada em caçar ratos, mas movimentos bruscos poderiam levar a mesma a atacar por segurança.

Segundos pareciam durar uma eternidade. Continuaram imóveis enquanto se ouvia o sibilar do lagarto sem patas. No escuro, Charlie tocou as costas de Nick para tirá-lo do transe.

—Pode respirar agora. Já passou.

Ali, no escuro, Nicholas abraçou Charlie como  se sua vida dependesse disso. O medo já havia passado, restava apenas o alívio e a constatação de que estava tudo bem.

Charlie não podia negar que gostava daquele contato, mas precisavam seguir em frente.

—Nick…

—Eu sei… Ok. Vamos voltar.

Seguiram pelo escuro a dentro sem comentar o fato de estarem de mãos dadas.

 

Chegaram no ponto em que deviam atravessar o rio novamente pela correnteza fraca. Não foi preciso dizer nada para concordarem que não era uma boa ideia retirar as botas naquele escuro para atravessar o rio, valia mais a pena encharcar um par de botas.

Soltando as mãos por um momento, Charlie atravessou o rio com um dos sacos de frutinhas azuis e depois voltou para segurar na mão de Nick na travessia. A correnteza parecia ligeiramente mais forte que mais cedo, o que só acentuava o receio de fazer aquela travessia. 

Quando o loiro estava prestes a encerrar a passagem, um pisar em falso o levou a escorregar. Charlie não conseguiu segurá-lo o suficiente e Nicholas chocou-se contra as pedras na beirada. Seu último pensamento antes de desmaiar foi olhar para cima e perceber a grande lua cheia passando alguns rastros de luz pelas frestas das árvores. Se houvesse menos árvores, aquela seria, de fato, uma bela vista.

Com esse pensamento em mente, o jovem escudeiro perdeu os últimos sentidos e foi levado para o mundo dos sonhos.

 

* * *

Nicholas acordou em uma clareira, deitado sobre o que pareciam ser muitas almofadas empilhadas num lugar iluminado por velas.  Ao seu lado, Charlie ainda segurava sua mão, seu corpo parecia sujo de água e lama como o de Nick e se encontrava num sono profundo. 

—Ele tem um sono de pedra, pode falar a vontade.

O loiro se surpreendeu com a figura de uma moça de cabelos pretos, vestido longo e uma coroa de alce sobre a cabeça.

—Você é…

—Meu nome é Victória Spring, mas pode me chamar de Tori… Ou como os moradores do condado me apelidaram: eu sou a bruxa.





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Notas finais do capítulo

E agora? O que nosso escudeiro fará a respeito desse encontro inesperado?



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