Em qualquer dia num possível futuro escrita por Nemui


Capítulo 3
Capítulo 3




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            Sísifo entregou o pão à jovem que todos os dias vinha especificamente para comprar dele. Com um gentil sorriso, agradeceu:

            “Aqui está. Obrigado pela preferência!”

            “Mas é claro! O seu pão é perfeito!”

            “Na verdade, não é meu pão. É dela. Eu só estou ajudando.”

            “Hum… E não quer me ajudar também? Eu pago bem!”

            “Não, obrigado. Prefiro continuar por aqui.”

            Aquelas conversas andavam cada vez mais frequentes, de pessoas querendo um contato maior com Sísifo, atraídas por sua simpatia, o que gerava em Korina a sensação de estar ao lado de alguém muito importante sem dar o devido valor.

            “Você está cada vez mais popular, hein?”, comentou ela, tentando esconder o pouco de raiva ao vê-lo tão procurado.

            “É só gentileza. As pessoas se sentem bem quando são tratadas bem.”

            “Não é só isso. Você não notou como as mulheres adoram comprar de você?”

            “Bem, a maioria dos clientes são mulheres, não é?”

            “Sim, mas… Ah, esquece. Você não entende.”

            “Heh, eu entendo sim, mas não tenho tempo para essas coisas. Estou muito focado no meu objetivo.”

            “Ser meu guarda-costas… Está mais para ajudante de padeiro agora.”

            “É verdade. Já estou aqui há tanto tempo, e nada mais aconteceu. Aqueles assaltantes, um sujeito que quis se engraçar com você… e mais nada. Até parece que vim aqui à toa. Mas é melhor assim. Eu gosto dessa paz, você não? Esta brisa… e os pássaros voando alegres sobre a vila, enquanto todos se ocupam com seus trabalhos. Este é um bom lugar para viver.”

            “Acha mesmo? Às vezes me pergunto por que meu pai, que tanto viajou, escolheu um vilarejo tão minúsculo como este.”

            “Talvez ele quisesse ficar longe de grandes encrencas… Ou então…”

            “Ou então…?”

            “Ou então ele só estivesse preocupado em se deslocar muito com uma criança pequena. Ele fazia tudo por você”, respondeu o cavaleiro, com aquele sorriso gentil que parecia, mais uma vez, esconder algo.

            “Você sempre omite coisas… Agora, no diário… O que você sabe que eu não sei, Sísifo?”

            “Há coisas que não precisam ser ditas porque são, digamos, trabalho em andamento. Não costumo dizer tudo o que penso quando o assunto é minha missão. Mas não se preocupe, eu não estou sendo falso, garanto. Tudo o que quero é protegê-la bem até o seu aniversário.”

            Eles foram interrompidos por mais um cliente, que levou todo o restante dos pães. Agora, com a carroça vazia, Korina espreguiçou-se e preparou-se para voltar para casa mais cedo.

            “Hoje terminamos mais cedo por causa das suas fãs. Cada vez mais elas querem comprar de você.”

            “Podemos aumentar a produção então, pelo menos até seu aniversário, que, aliás, está chegando. Só mais alguns dias.”

            Era verdade. Aquelas semanas passaram rápido, à medida que ela se acostumou com a presença de Sísifo, acompanhando-a em todas as tarefas, feito um irmão. E agora era estranho imaginar-se sem ele por perto, dando-lhe certo conforto. Não tinha mais medo de andar pela estrada, pois a força absurda dele colocaria qualquer assaltante para correr. Também não conseguia imaginá-lo traindo a confiança delas, sendo sempre tão honesto, incluindo o dinheiro dos pães.

            Pensava que tudo estava prestes a acabar em alguns dias, quando ele lhe segurou o pulso, assustando-a.

            “Ah! O que foi?!”

            “Não foi nada. Desculpe, eu só pensei em levá-la para lá.”

Ele apontava para um morro próximo à vila, onde havia vegetação em abundância.

            “Por que quer ir lá?”

            “Temos tempo, não? É só para nos distrairmos. Você tem trabalhado tanto, chega a ser mais séria do que eu, e isso não é um elogio neste caso. Vamos, sua mãe pode esperar. Vamos deixar o carro com o senhor Samaras e relaxar um pouco.”

            Praticamente arrastada pelo cavaleiro até o velho cliente deles, deixaram o carro e só levaram a égua para que Korina a montasse. Sísifo foi a pé, na frente, guiando o animal e empolgado para ver a paisagem da região. Toda a desconfiança do início da relação voltou, e Korina pensou em recusar. Contudo, aquelas semanas em que ele se mostrou tão amável e prestativo pesaram em seu coração. Sísifo trazia uma delicadeza rara nos homens, de considerar os sentimentos e as vidas das pessoas e até dos animais em cada pequena ação. Não queria que tudo aquilo fosse mentira.

            Permitiu que ele a levasse até o ponto mais alto do morro, escolhendo o caminho mais fácil para a égua. Encontraram uma pequena trilha, que os ajudou bastante, e Sísifo chegou e expulsar uma cobra, não sabiam se venenosa ou não. Quando alcançaram o topo, fez Korina desmontar da égua e observou a região em volta. De lá, era possível ver cinco vilarejos, incluindo a dela, todos pequenos diante da vastidão de campos cultivados. Longe da agitação das pessoas, o som predominante era dos pássaros e das folhagens das árvores. Ele respirou fundo e soltou o ar devagar.

            “Ah, eu gosto disso. É a melhor parte das viagens.”

            “O quê? A paisagem?”

            “O mundo. Não está vendo? Abra bem os olhos. É o mundo à sua volta, Korina. Tudo parece tão pequeno quando vemos de cima, não é? E, quando olhamos de perto, são tantas pessoas, sonhos, futuros… Eu sei. Há muitos perigos, em toda a parte, como a cobra que encontramos no meio do caminho. Mas não acha que vale a pena subir até aqui para ver tudo de cima? Ter uma visão que vai além daquilo que nos causa medo?”

            Então tudo aquilo era mais uma tentativa para convencê-la a acreditar nos outros? Korina ainda não estava muito convencida. Mesmo assim, precisava admitir que era uma bela paisagem. Reconhecia algumas casas ao longe, tão pequeninas que cabiam em sua mão, assim como as pessoas.

            “Já pensou em ver o mundo tal como ele viu? O seu pai?”

            As palavras dele dessa vez foram fundo em sua mente, atingindo um pedaço de alma que ela não imaginava. Era como uma parede entre seu coração e o mundo, sendo estraçalhada num instante. De repente, o desejo de ver tudo de forma diferente surgiu. O dia após dia, na mesma padaria, sem a perspectiva de algo além daquele trabalho, pareceu um cotidiano um tanto esvaziado. Afinal, qual era seu objetivo? Apenas sobreviver? Nunca tinha pensado daquela forma.

            “Acho… que eu gostaria de ver mais. Mas isso é fácil para alguém como você, que é tão forte. É tão difícil para mim.”

            “Será? Força não se resume a força física. E sim, desconfiança é necessária para sobreviver. Contudo, tudo o que você precisa é redescobrir as asas que tem e criar um pouco de coragem. Você é tão jovem, tem um futuro inteiro pela frente. Depois de conhecer um pouco mais sobre como ele via o mundo, talvez consiga sair um pouco do buraco onde se meteu.”

            “Eu? Num buraco?”

            “Você ainda não percebeu, não é? Fugindo de qualquer relação com os outros, desconfiada de tudo e de todos, incapaz de acreditar nas pessoas, se concentrando em excesso no trabalho… Se continuar assim, dificilmente encontrará a felicidade que deseja ter. Não viva sozinha, Korina. Não há nada melhor do que viver trabalhando em conjunto com companheiros e se arriscando ao acreditar neles, mesmo que cometam erros e a decepcionem. Nada é mais bonito do que ver o esforço de um companheiro que acredita em você. Ver os meus companheiros se esforçando em busca de um objetivo é quando eu me sinto mais feliz. E este mundo à nossa volta é nosso para moldar. Podemos torná-lo mais ou menos amigável… basta acreditarmos.”

            “Acreditar… nos outros? Difícil…”

            “Mas não impossível. Bem, isso cabe a você decidir. Minha mensagem está dada.”

            Sísifo voltou-se à égua, dando-lhe afagos no focinho. Ele era sempre gentil com todos os animais da casa, apesar de ser odiado pelo galo, de quem acabava fugindo para não ser arranhado. Korina acabou se divertindo bastante com sua companhia. Um novo sentimento surgia dentro dela: ela acreditava e confiava em Sísifo. Em nenhum momento ele a traíra. Sempre a protegera, tal como prometera, e agora ela desejava que aquele aniversário demorasse um pouco mais para chegar. Talvez aquelas clientes da cidade estivessem certas ao procurá-lo com tanta avidez.

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            O dia do aniversário chegou, com um Sísifo cada vez mais zeloso com sua segurança. Permanecia o tempo todo perto, fazia mais rondas e observava em volta com cuidado. Ainda assim, nada aconteceu. Ele ainda informou que permaneceria alguns dias a mais depois da comemoração a fim de assegurar-se de que tudo estava bem antes de voltar ao Santuário de Athena, para a alegria de Korina. Agora que confiava nele, não conseguia vê-lo indo embora de forma tão súbita quanto apareceu. Precisava admitir: Sísifo era um bom homem.

            Ele foi o primeiro a cumprimentá-la quando acordou:

            “Feliz aniversário, Korina! Estava ansioso para dizer isso.”

            “E finalmente se livrar de mim?”, retrucou ela, brincando.

            “Está mais para você se livrar de mim, não é? De qualquer forma, aqui está o seu presente. Pegue.”

            Não esperava por qualquer presente vindo dele. Nem sabia que ele tivera um momento para comprá-lo, sendo que ficara o tempo todo perto dela durante o trabalho de venda dos pães. Uma gigantesca onda de felicidade a atingiu, diferente de quando os clientes lembravam o aniversário dela. Ficara de fato empolgada.

            Abrindo o embrulho, encontrou um broche metálico, bastante delicado, costumeiramente vendido em uma das vilas perto, mas com uma figura inédita para ela. Aquilo era… um centauro? Armado com um arco e flecha?

            “É o símbolo de Sagitário. Não é o seu signo, mas é o meu. Imaginava que acabaria se lembrando de mim depois de me ver com minha arm... bem, deixa pra lá. É só uma lembrança.”

            “Eu nunca tinha visto esse broche à venda.”

            “Eu o encomendei.”

            “Quando fez isso?”

            “Enquanto estava ocupada com as vendas, dei uma pequena escapada. Gostou?”

            “Sim! É lindo. Obrigada, Sísifo.”

            “Só estou feliz que não esteja mais desconfiada de mim.”

            Era verdade. O cotidiano acabara apagando aquela desconfiança, apesar de ela saber que o marido de uma amiga acabou se transformando tão logo se casaram. Mas poderia alguém mudar de forma tão brusca? Sísifo não demonstrava nenhum sinal de comportamentos raivosos, até quando enfrentou os assaltantes. A maior prova era de que, todas as manhãs, fugia do galo que o atacava, mas não mostrava nenhum desejo de vingar-se dele, apenas se desviava agilmente das investidas, como numa brincadeira.

            “Não confio cem por cento em ninguém. Mas eu acho que você merece um voto de confiança.”

            “Já é muito. Bem, logo não estarei mais aqui, então ficará tranquila.”

            Só que ela não estava tranquila. Tê-lo por perto nas estradas e durante as vendas era reconfortante. Saber que estaria segura caso fosse atacada ou qualquer pessoa com más intenções aparecesse dava-lhe paz de espírito suficiente para pensar além da própria sobrevivência. Vinha pensando muito nas palavras do cavaleiro sobre ver o mundo com outros olhos. Talvez ela devesse mesmo pensar em um objetivo além daquela padaria.

            “Não sei… Acho… que me acostumei a tê-lo por perto.”

            “Hum, isso é perigoso. Não vá ficar com saudades de mim!”

            Ele riu ao responder, e ela não sabia se soltava um riso sem espírito ou não fazia nada. Acabou rindo, sem saber por quê. Era um pouco tarde para não sentir falta antecipada da companhia dele.

            Mesmo no dia do aniversário dela, não deixava de trabalhar. Afinal, os animais e o vilarejo dependiam dela todos os dias do ano. Além disso, alguns fregueses vinham trazer presentes em agradecimento pelo bom serviço. Ao final do dia, sua mãe fazia um bolo especial, que ela amava, também receita de família e que não podia faltar aos aniversários. Naquele ano, não seria muito diferente.

            Fixou o broche no peito, surpresa com a grande alegria de receber um presente dele, e preparou-se para o trabalho do dia. Sísifo fez questão de aliviar-lhe as tarefas, mas sem deixar de esconder a preocupação extra por sua missão de protegê-la. Provavelmente nada aconteceria e ele acabaria indo embora dentro de alguns dias, infelizmente. Tinha sido um mês até divertido com o bom humor e gentileza dele naquelas horas em que ela normalmente estaria sozinha.

            A comemoração começou desde o desjejum de sua mãe, bastante caprichado. Ela amava aquele pão doce de maçã! Comeu com gosto, antes de sair de casa para entregar as encomendas. Estava sendo um dia perfeito. Mesmo que fossem assaltados, não estava preocupada: sabia que Sísifo a defenderia com aquela força monstruosa dele.

            Prepararam o carro, como sempre, e Sísifo foi quem assumiu as rédeas. Durante o caminho, Korina lembrou:

            “Você me disse para mudar minha forma de ver o mundo no dia em que subimos a montanha. Desde então, tenho pensado bastante. Hoje fico mais velha, mas me pergunto se tenho um objetivo mais importante do que sobreviver… E vejo que não tenho nenhum, além de ajudar a minha mãe. Será que, se eu visse o mundo da forma como os meus pais viram, encontrarei um desejo só meu?”

            “Quem sabe?”, respondeu ele. “Expandir a visão é o primeiro passo para encontrar-se no mundo. Mas, para isso, é preciso ter um plano. O que pretende fazer?”

            “Não sei. A única coisa que eu sei é fazer pães e desconfiar das pessoas… Não presto para muita coisa além disso.”

            Depois de alguns segundos de silêncio, Sísifo respondeu:

            “Há algo que eu não disse para vocês ainda… Algo que informarei antes de ir embora.”

            “Não agora?”

            “Não agora. Antes, quero me certificar de que está mesmo segura. Aí, quem sabe… encontrará um caminho da felicidade para você. Mesmo eu tendo dito todas aquelas coisas, ser livre é algo muito difícil para uma simples padeira solteira. Talvez eu não devesse ter dito aquilo…”

            “Você não pode voltar atrás!”

            Ele riu e acrescentou:

            “Não, né? Mas não disse nenhuma mentira. Acho que seu pai também deseja que você seja livre para buscar seus próprios objetivos, sejam eles quais forem… Huh?”

            Sísifo deteve a égua, subitamente.

            “Sísifo? O que foi?”

            “Não saia do carro”, ordenou ele, sério, enquanto alcançava a urna.

            Pela primeira vez, Sísifo pegou a caixa que o acompanhava a toda a parte, de prontidão para usá-la. Mesmo quando enfrentaram assaltantes, ele sequer pensara em recorrer-se a ela, o que deixou Korina mais tensa. Algo de fato aconteceria de perigoso no dia de seu aniversário?

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Continua...


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